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O corpo guarda as marcas – Bessel Van der Kolk

Postado às 21:03 do dia 08/04/23

Talvez você já tenha ouvido falar sobre epigenética, que é a forma como genes se tornam ativos ou silenciados sem que haja alguma mudança em sua sequência. O curioso da epigenética é que ela gera marcações nos genes que podem ser herdadas, como metilações e modificações nas proteínas histonas responsáveis por “enovelar” sequências inteiras do DNA, tornando-as inacessíveis ao processo de síntese proteica. No senso comum, explica-se a epigenética como a forma através da qual o meio-ambiente e nosso estilo de vida alteram a expressão de nossos genes. Entre experiências que talvez possam alterar esta expressão, há apostas em favor de traumas.

No livro O corpo guarda as marcas, o autor sustenta que traumas ocasionam mudanças fisiológicas, sobretudo na forma como o cérebro reage a sinais externos, separando o que de fato é perigo e o que é apenas “fumaça”. É através destas mudanças que surgem pacientes hipervigilantes e com dificuldade de superar o trauma experenciado.

Bessel é um psiquiatra experiente, que mora em Boston, nos Estados Unidos. Ele iniciou sua carreira trabalhando com veteranos de guerra e, em algum momento, passou a se dedicar ao transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em crianças. Embora tenha participado de diversos estudos de abordagem farmacológica para o tratamento de TEPT, interessou-se pelas abordagens psicológicas, desenvolvendo pesquisas e liderando grupos de estudos em técnicas como yoga, EMDR (do inglês, “Eye Movement Desensitization and Reprocessing”; em português, Dessensibilização e Reprocessamento através do Movimento dos Olhos), SFI (do inglês, Internal Family Systems; em português, Sistema Familiar Interno) e neurofeedback.

O livro é o relato de todo este percurso e se tornou um best seller mundial. É uma leitura obrigatória pra todo terapeuta que lida com traumas em consultório, seja oferecendo uma terapêutica principal, seja oferecendo uma terapêutica complementar e integrativa. Estou com um ano de atraso na resenha desta obra. Mas creio que você gostará muito do que vai ler. Aproveite as melhores partes que selecionei pra comentar.

 

Instrumental necessário

” (…) Descobrimos que o trauma afeta a imaginação. (…)

“A imaginação é absolutamente fundamental para a qualidade da vida. Ela nos permite abandonar a rotina do dia a dia – fantasiamos viagens, refeições exóticas, sexo, namoros e ter a última palavra numa discussão: tudo o que torna a vida interessante. Ela nos dá oportunidade de contemplar novas possibilidades – é uma alavanca fundamental para fazer com que esperanças se tornem realidade. Aciona a criatividade, alivia o tédio, reaça os prazeres e enriquece os relacionamentos mais próximos. Quando as pessoas são arrastadas para o passado de modo compulsivo e constante, para a última vez em que sentiram um envolvimento intenso e emoções profundas, elas padecem de uma falha de imaginação, de uma perda da flexibilidade mental. Sem imaginação não há esperança, nenhuma possibilidade de antever um futuro melhor, nenhum lugar aonde ir, nenhuma meta a alcançar.” (p. 25-26)

> Enquanto digito este trecho, me recordo do filme italiano A vida é bela (1997), de Roberto Benigni. Se você não assistiu e quer uma lufada de imaginação, a incrível capacidade que permite sobreviver às piores atrocidades, recomendo.

“Um dos motivos pelos quais as memórias traumáticas se tornam dominantes no TEPT é porque a pessoa tem extrema dificuldade em sentir-se viva no presente. Se ela não consegue estar aqui de maneira plena, busca lugares onde de fato se sentiu viva, mesmo que esses lugares sejam dominados por horror e sofrimento.

“(…) Devemos, antes de tudo, ajudar os pacientes a viver no presente com plenitude e segurança.” (p. 87)

> Um dos receios da hipermedicamentalização de transtornos é subtrair da pessoa a capacidade de viver no momento presente. Parece que eles têm a capacidade de fazer exatamente o contrário, não é? Mas, em um devaneio filosófico, recaídas talvez sejam um chamamento àqueles momentos em que a vida é bastante vívida, ainda que terrível.

“O desafio da recuperação está em restabelecer a propriedade do corpo e da mente – do self. Sentir-se livre para saber o que você sabe e sentir o que sente sem ficar arrasado ou sucumbir à raiva, à vergonha ou ao colapso. Para a maior parte das pessoas, esse processo envolve: 1) encontrar um meio de ficar calmo e focado; 2) aprender a manter-se tranquilo ao reagir a imagens, pensamentos, sons e sensações físicas que lembrem o passado; 3) buscar uma maneira de estar plenamente vivo no presente e envolvido com as pessoas ao redor; e 4) não precisar esconder segredos de si mesmo, inclusive segredos sobre os artifícios usados para sobreviver.” (p. 243)

> Obviamente que isto é tarefa pra uma vida! Mas se você pensar que basta alcançar isto pra uma ou duas áreas de sua vida com as quais você normalmente tem problema, parecerá mais factível.

“O trauma não é apenas uma questão de se estar preso ao passado, mas também de não se estar plenamente vivo no presente.” (p. 263)

> Talvez você queira conhecer o livro que trouxe o “agora” pro hype?

“Se um terapeuta, professor ou mentor tentar preencher as lacunas deixadas pela privação, logo se defronta com o fato de que é pessoa errada, no momento errado e no lugar errado.” (p. 339)

> Um bom terapeuta, professor ou mentor sempre acaba sozinho.

“Uma coisa é processar lembranças de um trauma; outra, totalmente diversa, é enfrentar o vazio interior – as lacunas na alma que resultam de não ter sido desejado, visto ou não ter tido permissão para dizer a verdade.” (p. 351)

“Como ajudar as pessoas a conhecer visceralmente sensações antes ausentes em sua vida?” (p. 352)

> Se você já leu sobre a história de Helen Keller (1880-1968), sabe que sua tutora deixou sua mão sob água corrente enquanto lhe escrevia no dorso a palavra água. Helen era surda e cega. Sempre que penso no que é possível aprender quando todas as circunstâncias indicam que não, recordo esta passagem da biografia daquela que se tornou a primeira deficiente auditiva e visual a se graduar nos Estados Unidos.

 

Torre de vigia e detector de fumaça

“O trauma provoca uma reorganização fundamental no processo de cérebro e da mente administrarem as percepções. Ele modifica não só o modo como pensamos e o que pensamos como a própria capacidade de pensar. Descobrimos que ajudar as vítimas a encontrar palavras para descrever o que lhes aconteceu é de enorme importância, mas às vezes não basta. Contar a história não necessariamente altera as respostas físicas e hormonais automáticas, de corpos que permanecem hipervigilantes, preparados para ser agredidos ou violados a cada momento. Para que ocorra uma mudança real, o corpo precisa aprender que o perigo passou e a viver na realidade do momento atual.” (p. 30)

>  Duas metáforas úteis do livro, quando Bessel explica como o cérebro lida com o estresse, são o que ele chama de “torre de vigia”, o cortéx pré-frontal medial, e de “detector de fumaça”, a amídala. A torre lida com o estresse de cima para baixo, quando o bom senso surge e, avaliando a situação, entende-se que ela é administrável. O detector lida com o estresse de baixo pra cima, quando o corpo entende que deu ruim e não há cristo que interrompa a resposta instintiva pra se proteger do perigo percebido. Na regulação de cima pra baixo, ferramentas como yoga e meditação ajudam; na de baixo pra cima, técnicas respiratórias, de movimentos específicos ou que envolvam o tato. Ou seja, ou fortalecemos nosso sangue-frio, ou resfriamos nosso sangue-quente.

“Em geral, os psicólogos tentam ajudar as pessoas a usar o discernimento ou a compreensão da situação para controlar o comportamento. No entanto, pesquisas da neurociência mostram que raríssimos problemas psicológicos resultam de defeitos de compreensão; na maior parte das vezes, originam-se em regiões mais profundas do cérebro, responsáveis por governar a percepção e a atenção.” (p. 78)

> Em favor dos psicólogos, há aqueles que estudam Reich e Navarro.

“No consultório, com frequência me deparo com a despersonalização, pacientes que me contam histórias horrendas sem demonstrar qualquer emoção. Toda a energia se esvai da sala, e tenho de fazer um esforço tenaz para continuar a prestar atenção. Um paciente sem ânimo exige do médico um esforço muito maior para manter viva a terapia, e muitas vezes eu pedia aos céus que a hora passasse depressa.” (p. 86)

> Pensei aqui nos dementadores da saga Harry Potter. De toda forma, Bessel salienta que em casos assim é que o enfoque “de baixo para cima” é útil.

“Enquanto registramos as emoções basicamente na cabeça, podemos controlá-las com bastante segurança, mas ter uma sensação de opressão no peito ou de um murro no estômago é insuportável. Faremos qualquer coisa para evitar essas sensações viscerais, seja nos apegando de maneira desesperada a outro ser humano, seja buscando a insensibilidade com álcool ou drogas, ou ainda cortando com uma faca a pele, de forma a substituir emoções insuportáveis por sensações definíveis.”(p. 91)

> Na tipologia de Jung, a função intuitiva superior gera uma função sensorial inferior e, se o tipo for extrovertido, tudo que ele sentir em seu ambiente interno será avaliado de forma equivocada. Não sei se alguém já chegou se há qualquer relação entre a tipologia de Jung e TEPT, mas me facilita pensar na função sensorial inferior pra entender este detector de fumaça completamente desregulado.

“Como terapeuta, meu objetivo maior não é determinar exatamente o que aconteceu a pessoas com um passado de trauma, mas ajudá-las a tolerar seus sentimentos, emoções e reações sem ser o tempo todo sequestradas por elas.” (p. 209)

> Autonomia é uma palavra chave aqui.

“Compreender por que você se sente de determinada forma não muda como você se sente. Mas pode evitar que você ceda a reações intensas (…)” (p. 244)

> Pondé sempre nos faz lembrar que pecadores confessos são pessoas mais autoconscientes.

“Desde então, a neurociência constatou que temos duas formas de autopercepção: uma que rastreia o self no tempo, outra que mantém contato com o self no momento presente. A primeira, nosso self autobiográfico, cria conexões entre experiências e as reúne numa história coerente. Esse sistema tem raízes na linguagem. Nossas narrativas mudam com a narração, assim nossa perspectiva se modifica quando incorporamos novas informações.

“O outro sistema, a autopercepção de momento a momento, se baseia sobretudo em sensações físicas, mas, se nos sentimos em segurança e não nos precipitamos, encontramos palavras para comunicar também essas experiência. Essas duas formas de conhecimento se localizam em diferentes partes do cérebro, praticamente separadas uma da outra. Só o sistema dedicado à autopercepção, com base no córtex pré-frontal medial, pode mudar o cérebro emocional.” (p. 280)

> Todo mundo que já passou por psicoterapia sabe que contar uma história sobre si é diferente de saber o que aconteceu a si.

“Médicos têm uma única obrigação: fazer o possível para oferecer alívio para os pacientes. E por isso a prática clínica sempre tem se mostrado um campo rico para a experimentação.” (p. 311)

> Creio que esta frase ganhou todo um contorno novo depois da pandemia de covid-19 e as experimentações iniciais com cloroquina e ivermectina.

 

À cada época suas obsessões

“O modo como a medicina aborda o sofrimento humano sempre foi determinado pela tecnologia da época.” (p. 37)

> É bem importante ter em mente que, embora a tecnologia possa determinar o que é verdade, uma nova tecnologia pode desmentir a verdade da tecnologia anterior. Então, não é porque hoje os comportamentos disfuncionais humanos sejam reputados a um desequilíbrio bioquímico no cérebro que sempre será assim.

“Os fármacos tornam as crianças mais controláveis e menos agressivas, mas também interferem na motivação, nas brincadeiras e na curiosidade, indispensáveis para o desenvolvimento de sujeitos ativos e úteis.” (p. 49-50)

> Caso você ainda não tenha lido a resenha que fiz do Anatomia de uma epidemia, do jornalista Robert Whitaker, leia! Trata do aumento assombroso da medicalização da saúde mental nos Estados Unidos e o papel  de uma indústria em conluio com uma organização profissional pra que isto esteja ocorrendo.

“Hoje em dia, [na psiquiatria,] compreender o que está ‘errado’ com as pessoas é mais uma questão da atitude mental do médico (e das despesas que os planos de saúde se dispõem a reembolsar) do que de fatos objetivos e verificáveis.” (p. 165)

> Este livro foi escrito em 2014. Apenas um cínico diria que a opinião de um renomado psiquiatra especialista em trauma já ficou datada porque a ciência avançou muito nestes 9 anos…

“O manual [DSM] se transformou numa indústria virtual que já rendeu à APA [Associação Americana de Psiquiatria]mais de 100 milhões de dólares. Será que proporcionou aos pacientes benefícios comparáveis?” (p. 165)

> Sempre fico pensando se quando as gerações anteriores lutavam pra que a saúde mental fosse considerada tão importante quanto a saúde física se eles queriam realmente que todo mundo estivesse sob medicação psiquiátrica… Isto me lembra um questionamento que Sheryl Sandberg (ex-COO do Facebook) fez em sue livro feminista Faça acontecer: quando as feministas queimaram sutiãs, será que elas queriam que suas filhas crescessem pra decidir ser mães em tempo integral?

“Não se pode criar um tratamento para um distúrbio que não existe.” (p. 172)

> Isto parece óbvio, mas a consequência é menos: quando uma coleção de sintomas não se encaixa como uma luva na descrição de um distúrbio, os médicos precisam encaixá-los em qualquer outro distúrbio existente. O diagnóstico fica meia-boca, mas o tratamento do paciente segue o protocolo padrão. E, assim, há pacientes recebendo medicação pra transtorno bipolar sem o serem de fato, recebendo medicação pra depressão sem a terem de fato, etc. A ideia do TEA – Transtorno do Espectro Autista é uma ideia tanto inteligente quanto perversa pra lidar com a dificuldade e notória lentidão da APA de classificar novos transtornos: cria-se um transtorno abrangente o suficiente pra que muitos diagnósticos consigam encontrar um nome, ao mesmo tempo em que se ganha tempo pra estudar as particularidades de cada conjunto de sintomas. Evidentemente, o risco é que mais gente seja diagnosticada como autista embora talvez não o sejam de fato: o que elas são ainda não tem nome. Veja que Bessel comenta que antes do diagnóstico de TEPT entrar no DSM, veteranos de guerra eram tratados como alcoólatras, depressivos ou até esquizofrênicos, mas nunca como pacientes de TEPT.

> Bessel participou de um grupo de trabalho que buscou incluir o Transtorno do Trauma de Desenvolvimento no DSM-5. A inclusão foi negada com a justificativa de ser um diagnóstico muito nichado. Talvez o livro tenha sido uma resposta à negativa (divago…).

“Médicos dão forma à maneira como seus pacientes comunicam o sofrimento: se um sujeito se queixa de pesadelos tenebrosos e o médico pede uma radiografia de tórax, ele entende que receberá melhor tratamento caso se concentre em seus problemas físicos.” (p. 226)

> A moral da história é: nunca vá a um especialista se você não sabe o que tem.

“Entretanto, o que médicos veem em prontos-socorros, pavilhões psiquiátricos e campos de batalha difere bastante do que cientistas observam em laboratórios protegidos e organizados.” (p. 230)

> Isto não significa que médicos tenham o direito de ignorar os laboratórios, da mesma forma que estes não devem ignorar a clínica. O difícil desta relação entre evidência e clínica está bem resumido nesta citação de William Osler: “a Medicina é uma ciência da incerteza, e a arte da probabilidade” (apud in Manual de MBE).

“Contudo, medicamentos não ‘curam’ o trauma: o que fazem é moderar as expressões de uma fisiologia perturbada. Tampouco ensinam as lições duradouras da autorregulação. Conseguem ajudar a controlar sensações e comportamentos, mas sempre a um preço – porque atuam bloqueando os sistemas químicos que regulam o comprometimento, a motivação, a dor e o prazer.” (p. 267)

> Bessel não é contra a psicofarmacologia e ele mesmo diz que prescreve psicotrópicos com frequência. Mas ele insiste em dizer que eles não são suficientes.

“Esse período de experimentação e de muito otimismo em relação ao potencial da mente humana chegou ao fim em meados da década de 1970, com o lançamento no mercado de medicamentos psiquiátricos recém-criados. A psiquiatria e a neurologia adotaram um modelo químico da mente e do cérebro, e outras abordagens terapêuticas foram relegadas a segundo plano.” (p. 373)

> Acho que o que todos sentimos em relação à psicofarmacologia é o quanto ela desacredita no potencial da mente humana. Pode parecer que não, pois foi uma mente humana que criou os psicotrópicos. Mas quando uma mente forte cria psicotrópicos, ela também cria mentes fracas.

 

O corpo guarda, o corpo libera

“O que seu cérebro faz quando você não está pensando em nada em especial? Você acaba prestando atenção em si mesmo: o estado de descanso ativa as áreas cerebrais que colaboram para criar seu senso de ‘self’.” (p. 111)

> Com smartphones, abandonam abruptamente o hábito de “ficar pensando na morte da bezerra”. Ainda que seja difícil ficar sem fazer nada em específico, apenas pensando com seus botões deitado num sofá, penso que formas de meditação ativa possam trazer esta elaboração do self, como desenhar padrões repetitivos, exercícios de escalas musicais, bordar, esculpir um vaso no torno… Exercícios respiratórios são excepcionais pra elaboração do self e eu pude verificar isto em uma década como instrutora e praticante de yoga. Como aromaterapeuta, percebo que um dos benefícios inconfundíveis do óleos essenciais é tornar a respiração consciente um ato fácil.

“Se você tem uma boa conexão com suas sensações interiores – se confia que elas lhe enviam informações corretas -, você se sentirá dono de seu corpo, de suas sensações e de seu self.” (p. 119)

> Aí o tipo sensorial inferior de Jung de novo.

“O preço de ignorar ou distorcer as mensagens do corpo é tornar-se incapaz de detectar o que é verdadeiramente perigoso ou nocivo para si e, por outro lado, o que é seguro ou propício. A autorregulação depende de um relacionamento amistoso com o corpo, caso contrário a pessoa terá de depender de regulação externa – de medicação, de drogas como o álcool, de apoio constante ou de obediência compulsiva aos desejos alheios.” (p. 120)

> Embora, me parece, que hoje as pessoas não valorizem mais mecanismos internos de regulação, ainda acredito que eles sejam melhores que os externos. Parafraseando William Osler, digo a meus alunos que uma das primeiras obrigações de um aromaterapeuta é ensinar as massas a não usar óleos essenciais. Eles se chocam. É que quando você não precisar mais de apoios externos será porque já os criou internamente, explico.

> Bessel explica no livro o termo “alexitimia”, que vem a ser a dificuldade que algumas pessoas possuem de descrever sensações com palavras. Algumas delas acabam agindo quando sentem algo, pela incapacidade de nomear o que sentem. Eventualmente, a ação toma forma de sintomas sem nenhum sentido. Dá pra entender isto quando vemos uma criança fazendo birra ou fazendo xixi na cama: como ela não sabe nomear o que sente, externaliza. Apesar de o livro mostrar como a terapia da palavra é insuficiente pra reprogramar o corpo, ele não descarta a importância de levar a cabo a substantivação do ambiente interno.

“Se desejarmos modificar as reações pós-traumáticas, temos de alcançar o cérebro emocional e fazer a ‘terapia do sistema límbico’: consertar os sistemas de alarme defeituosos e devolver ao cérebro emocional sua missão de ser uma plácida presença de fundo que cuida da arrumação do corpo, fazendo-nos comer, dormir, nos relacionar, proteger os filhos e nos defender dos perigos.” (p. 245)

“Cerca de 80% das fibras do nervo vago (que liga o cérebro a muitos órgãos internos) são aferentes, isto é, correm do corpo para o cérebro. Ou seja: podemos treinar nossos sistema de alerta pela respiração, por cânticos e movimentos, técnicas que têm sido utilizadas desde tempos remotos em lugares como China e Índia, assim como em todas as práticas religiosas que conheço, mas que a cultura ocidental vê com desconfiança e rotula de ‘alternativo’.” (p. 246)

> Embora o corpo possa se movimentar de muitas formas, apenas o exercício físico tradicional recebe aval em 100% do discurso médico. Recordo de ter interpelado certa vez uma aluna que, durante um vriksasana, media seus batimentos cardíacos. A razão é que seu médico queria saber se o yoga de fato era uma atividade física. Iyengar, suspeito, talvez fosse capaz de sustentar o vriksasana por dezenas de minutos com batimentos a 58 por minuto. Teriam mandado-no fazer exercícios aeróbicos?

“Podemos tolerar desconforto desde que estejamos conscientes de que as reações do corpo se alteram o tempo todo.” (p. 248)

“A consciência de que toda experiência é passageira muda a perspectiva em relação aos problemas.” (p. 324)

> Algo que sempre peço aos meus interagentes é que se tornem conscientes dos ciclos de altos e baixos em seus sintomas, sobretudo daqueles que têm um componente emocional forte. Eu lhe digo objetivamente pra, quando melhorarem, dizerem a si mesmos: eu estava ruim e melhorei; na próximo, vou me lembrar de que melhoro. Isto não costuma evitar a piora, mas a torna mais suportável.

“O ser humano sempre tem esperança. Na superação do trauma, é tão importante pensar em como sobrevivemos quanto naquilo que foi abalado.” (p. 253)

> Uma vez eu conversava com um interagente que havia descoberto seu TDAH na idade adulta, já com os filhos criados. Esta pessoa se concentrava em todas as tremendas dificuldades que teria pra levar a cabo seus planos futuros em função do diagnóstico. A certa altura lhe perguntei se ela acreditava que sempre tivera TDAH? “Ah, sim, o médico disse que eu sempre fui TDAH, mas não sabia.” Então, retruquei: mas se você já tinha TDAH e, ainda assim, se formou, criou seus filhos sem ajuda e tem um trabalho que lhe remunera e lhe dá boas condições de vida, porque o TDAH só a impediria a partir de agora? O rosto da pessoa se iluminou. Claro que na citação acima Bessel se refere a traumas, mas é um exemplo de que focar na superação é tão importante quando no que se perdeu.

“A capacidade de perceber sensações viscerais é o verdadeiro fundamento da consciência emocional. (…) Ao ativar suas sensações viscerais e escutar seu coração partido – quando você segue os caminhos interoceptivos que levam a seus recessos mais recônditos -, as coisas começam a mudar.” (p. 282-283)

> Quem não possui o hábito de prescrutar suas emoções intestinas costuma ter catarses violentar quando toma contato com elas. Neste sentido, gosto muito de pensar no yoga e nos caminhos que ele propõe pra alcançarmos o self pleno: jñana yoga, o yoga da mente, no qual o caminho da iluminação vem pelo conhecimento; karma yoga, o yoga da ação desinteressada, no qual a iluminação vem pelo trabalho; hatha yoga, yoga do corpo, a iluminação pelo controle do corpo; bhakti yoga, yoga da devoção, a iluminação pelo amor a Krishna. Todos estes yogas são capazes de nos gerar um coração partido, quando de restaurá-lo.

“Quando você começa a se aproximar de seu corpo com curiosidade, não com medo, tudo muda.” (p. 324)

> Que frase espetacular!

“Ninguém é criado em circunstâncias ideais – se é que sabemos que circunstâncias são essas. Como meu falecido amigo David Servan-Schreiber disse um dia: cada vida é difícil à sua maneira. Mas sabemos que para nos tornarmos adultos autoconfiantes e aptos é importante termos sido criados por pais firmes e previsíveis; pais que se alegravam conosco, com nossas descobertas e explorações; pais que nos ajudavam a organizar nossas idas e vindas; e que serviam de modelos para cuidados pessoais e para as relações com outras pessoas.” (p. 360)

> Se ignorássemos o que é necessário, teríamos mais filhos. Mas, na verdade, aprende-se, viu? Não será 100%, mas será suficientemente adequada a forma como lidaremos com nossos filhos.

“Crianças e adultos precisam experimentar a satisfação de trabalhar no limite de sua capacidade. A resiliência é produto da agência: saber o que se é capaz de fazer faz muita diferença.

“Esporte, música, dança e teatro promovem agência e senso comunitário, envolvendo as crianças em novos desafios e em papéis não habituais.” (p. 421)

> Esporte, música, dança, teatro. Fazer as crianças participarem de atividades comunitárias. Não há muito segredo – há é que se ter um sentido de urgência de implementar isto. Por nossas crianças.

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2023

VAN DER KOLK, Bessel. O corpo guarda as marcas. Tradução Donaldson M. Garshagen. Rio de Janeiro: Sextante, 2020. 480 p.

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