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Manual de medicina baseada em evidências – José N. Alencar (org.)

Postado às 08:34 do dia 20/11/21

Com a pandemia de covid-19, todos voltaram os olhos pra ciência e descobriram, surpresos, que nem médicos nem os próprios cientistas concordam entre si sobre o que sejam evidências científicas suficientes pra transformar pesquisas em medicamentos e em protocolos na saúde pública. Quando medicamentos consagrados na medicina como ivermectina e hidrocloroquina começaram a ser prescritos off-label pra doença causada pelo Sars-CoV-2 e quando a testagem em grupos humanos das vacinas começaram em caráter emergencial, todos passamos a nos interessar pelos meandros do fazer científico e entender sobre vieses (bias), revisão de pares (peer review) e artigo em em pré-publicação (pre-print).

Neste contexto, o Twitter virou cena de profissionais lutando pela ciência e profissionais lutando por seus pacientes, como se ambas as lutas fossem excludentes. Existe uma discussão complementar à da MBE – Medicina Baseada em Evidências que é a da EBM – Evidência Baseada em Medicina. É preciso ter coragem pra afrontar a MBE dado que ela nos trouxe até a uma maior expectativa geral de vida, à possibilidade de conviver com a AIDS, à cura de diversos cânceres, ao controle de inúmeras doenças infecciosas, inclusive da pandemia atual. Mas creio que a vontade pra afrontar a MBE diminuiria se passássemos a entender as inúmeras dificuldades envolvidas nela e, sobretudo, se entendêssemos o que não é MBE: as dezenas de milhares de estudos científicos fracos e com baixo grau de confiança que encontramos no PubMed e que são divulgados ad nauseam por uma parte do jornalismo que busca manchetes e por profissionais e saúde que buscam um santo graal capaz de alçá-los ao Olimpo dos influenciadores digitais.

É minha opinião que as redes sociais deram uma estraga geral no ambiente de saúde no Brasil. Antes, tínhamos pouco acesso, sempre à mercê de médicos e divulgadores da indústria farmacêutica. Não era bom. Saúde é algo que precisa estar nas mãos de cada um em vez de ser delegada a alguém. Agora, no entanto, fomos pro lado oposto: todo mundo entende de saúde, todo mundo lê artigos no PubMed e os cita, todo mundo compra cursos de marketing e fórmulas de lançamento e se fabrica influenciador pra vender cursos online, promover semanas disso e daquilo pra turbinar os preços de consultas. Infelizmente, virou apenas marketing em uma esmagadora maioria das vezes.

O consumo de saúde está descontrolado e, talvez, esteja causando mais iatrogenia que os próprios medicamentos.

Já na minha bolha, a da Aromaterapia e das PICS – Práticas integrativas e complementares de saúde, lidamos há tempos com a marginalidade de nosso status científico. Piorou com a última portaria no Ministério da Saúde que incluiu mais uma leva de PICS na PNPIC do SUS: depois de fazer sucesso com um Ted Talk intitulado A ciência brasileira e a síndrome de Cassandra, a hoje conhecida Natália Parternak fundou uma organização – o IQC – Instituto Questão de Ciências – com o propósito declarado de lutar contra as PICS no SUS. Particularmente, não a critico. Acho que a discussão não apenas é importante, como necessária, ainda mais em um país com tantas dificuldades no acesso à saúde básica e saneamento como o Brasil. Gosto dos questionamentos que o IQC faz, pois eles servem pra nos fortalecemos e até pra refletirmos em qual arena queremos nos posicionar: no da ciência terapêutica ou no da arte terapêutica. Entretanto, me entristece perceber que o IQC não se abre ao diálogo pra entender o que são as PICS e como os recursos científicos atuais não estão preparados pra lidar com terapêuticas complexas e com alto grau de personalização. Se fossem mais abertos, eles – se fôssemos mais compreensíveis, nós -, talvez pudéssemos, juntos, elaborar métodos adequados pra evidências científicas em aromaterapia. Quem sabe um dia?

É dentro deste contexto todo que conheci o Twitter do cardiologista e professor universitário José N. Nunes e passei a segui-lo. Quando ele lançou este Manual, comprei e o li rapidamente e acabei até dando uma palestra no CONAROMA deste ano sobre (esta palestra pode ser revista aos assinantes do CONAROMA Play).

O livro é escrito da forma a mais didática possível, lembrando que boa parte da MBE requer conhecimentos em estatística, o que não é o forte do povo nem das “biológicas”, nem das “humanas”, justamente o pessoal que, respectivamente, lida com saúde (médicos, farmacêuticos, psicólogos, fisioterapeutas etc.) e divulga saúde (jornalistas). José Alencar escreveu boa parte dos capítulos e organizou capítulos escritos por outros profissionais: cardiologistas, endocrinologistas, oncologistas, radiologistas, dermatologistas, ortopedistas e jornalistas.

O ponto central é a compreensão da análise bayesiana nos estudos científicos, quando índices como os de especificidade e sensibilidade deixam de ser lidos de forma absoluta, mas relativa. É tudo muito bem claro, de forma que, com um pouco de esforço, mesmo os mais azedos com a matemática têm capacidade de entender o recado. Gostei também do capítulo sobre a pirâmide da MBE, quando José mostra que ela é fluida, em vez de estática, e, de forma particular, apreciei as extensas exemplificações dos múltiplos vieses a que estamos sujeitos, seja em nosso clínica, seja em ensaios clínicos.

Penso que todos que trabalham com saúde deveriam ler este livro. E penso que, principalmente aqueles que querem evidências científicas em aromaterapia, têm a obrigação de entender o que é MBE pra que percebam que não dá pra ver o Santo sem ajoelhar. Pretender que a aromaterapia seja científica significa pautá-la na MBE, para o bem ou para o mal. O que não dá é pretender que a aromaterapia seja científica sem que ela reze aos salmos da MBE. Isto seria safadeza. Mas quantos de nós está pronto pra assumir as consequências do que queremos?

Seguem algumas citações.

 

PARADOXO DA MBE

“Costumo dizer que William Osler, o pai da Medicina Interna moderna, já praticava MBE antes mesmo da existência dela. Para se convencer disso, basta transcrever uma de suas célebres frases: ´a Medicina é uma ciência da incerteza, e a arte da probabilidade´.” (José Nunes de Alencar Neto, p. 25)

“É no fundo do poço de Dunning-Kruger que o médico se depara – e pela primeira vez vê isso de maneira otimista – com o paradoxo da MBE: sendo uma ciência de incerteza, não podemos tratar nossos pacientes como números. Mas, sendo a arte da probabilidade, o médico precisará sim de um pouco (eu prometo que é só um pouco) de matemática para definir se aquele resultado de exame na mão dele é mesmo verdadeiro, ou qual a chance que aquele fármaco tem de salvar a vida do paciente.” (José Nunes de Alencar Neto, p. 25)

– A sutileza é entender que a ciência demora a construir certezas.

 

DO ARTIGO CIENTÍFICO À EVIDÊNCIA CIENTÍFICA

“Cerca de dois mil artigos são indexados ao PubMed diariamente, sendo 75 ensaios clínicos randomizados e 11 revisões sistemáticas. Nassim Nicholas Taleb sugere que quanto maior a frequência com que consultamos informações, mas desproporcionalmente propensos estamos a captar ruídos no sinal. Ruídos são informações irrelevantes – que não nos respondem ou enganam – e são muito comuns no mundo das evidências científicas: ao contrário do que você pensava antes de abrir este livro, mais que 99% dos artigos publicados, mesmo no PubMed, são ruídos.” (José Nunes de Alencar Neto, p. 29)

– Cunhei um termo pra falar do que muitos perfis de aromaterapia, nutrologia, fitoterapia, cosmetologia fazem com artigos científicos: sciwashing, de sciencewashing. Se greenwahsing são falsas práticas sustentáveis que empresas praticam, sciwashing são falsas evidências científicas que estes campos de conhecimento trazem pra vender seus produtos e serviços. O pior, pra mim, é a extrapolação de pesquisas pré-clínicas.

“É bem verdade que apenas 12% dos medicamentos testados em estudos clínicos (ou seja, que dão um bom pontapé inicial e depois são levados aos testes mais robustos) acabam sendo comercializados, muitos deles com benefícios apenas marginais. É de se esperar que a quantidade de drogas com boa ação in vitro que depois foram descartadas seja ainda menor que 12%.” (José Nunes de Alencar Neto, p. 45)

– Com drogas vegetais, elas estão disponíveis primeiro e aí é que vão pras pesquisas científicas. Isto porque são produtos das medicinais tradicionais de um povo. Neste sentido, quando um pesquisa in vitro com uma planta traz bons resultados e ela TAMBÉM é usada para a mesma finalidade por pessoas em uma cultura/país há tempos, alguns entendem certas etapas estudos poderiam ser suprimidas. Existe a questão da padronização fitoquímica, entretanto, que é um desafio considerável no processo, ainda mais quando se considera que plantas medicinais muito usadas em um lugar acabam sendo cultivadas em outro, supondo-se que continuarão a expressas os mesmos efeitos terapêuticos que lá.

“A intuição humana é enviesada e cheia de armações, e a ciência surge com a finalidade de minimizá-las. Dado nosso contexto atual, de importante dependência do conhecimento, esse esforço é extremamente relevante, até mesmo porque a própria ciência, sendo construída por humanos, é sujeita a esses erros, chamados de vieses. A definição formal de viés é ´qualquer processo em qualquer estágio de inferência que tende a provocar resultados ou conclusões que diferem sistematicamente da verdade´.” (Josikwylkson Costa Brito et al., p. 67-68)

– Um viés que eu penso ser extremamente relevante nas PICS é o chamado Efeito Hawthorne. Ele foi observado pelo alemão Henry Landsberger nos anos 1920 em uma fábrica na cidade de Hawthorne, Illinois, EUA: enquanto o estudo sobre produtividade era conduzido na fábrica, a produtividade era alta; quando terminou o estudo, deixou de ser. Ou seja, quando as pessoas entendem que estão sendo observadas ou cuidadas, elas modificam seu comportamento, positiva ou negativamente. Nós sabemos que uma das principais motivações das pessoas que buscam as PICS é serem cuidadas de fato, é serem ouvidas de fato. Então, penso que o efeito Hawthorne não deve ser desprezado em parte dos êxitos que obtemos em clínica.

Trial, aliás, é outro nome para ´ensaio clínico randomizado´ (ECR). Neste capítulo, focaremos a análise de trials. E por quê? Porque eles sim é que podem confirmar hipóteses. O leito deste livro perceberá, contudo que não basta confirmar a hipótese (obter p significativo), tem que ser livre de vieses, tem que ter um bom power, esse resultado tem que ser clinicamente relevante, de boa magnitude e extrapolável para o mundo real. Poucas condutas na Medicina possuem todos esses pré-requisitos.” (José Nunes de Alencar Neto, p. 141)

– Entenda que a Medicina é praticada apesar da ausência de todos esses pré-requisitos. Por isso que MBE é um assunto discutido. Medicina não é sinônimo de medicina baseada em evidências.

“Só que a ´cura´ é um desfecho muito raro em Medicina, especialmente quando se trata de medicamentos.” (José Nunes de Alencar Neto, p. 142)

– Sempre me surpreendi com o entendimento que as pessoas fazem de que medicamentos curam doenças.

“O desenho de estudos [em dermatologia] também é frequentemente dificultado pelo fato de que é muito difícil cegar os grupos de intervenções, pois os pacientes monitoram de perto seus próprios resultados, afinal trata-se do tegumento externo facilmente avaliado todos os dias. Dessas forma é muito difícil separar o efeito puro da intervenção sem fatores de confusão.” (Cristina Van Blarcum de Graaff Mello et at., p. 359)

“Talvez no dia em que a dermatologia baseada em evidência esteja bem integrada na prática diária, torne-se mais fácil e valorizado conduzir pesquisas baseadas nas necessidades clínicas, mais do que nos interesses comerciais.” (Cristina Van Blarcum de Graaff Mello et at., p. 361)

“Muitos dos tratamentos estéticos disponíveis no mercado hoje prometem rejuvenescer ou melhor  pele sem evidências científicas para apoiá-los.” (Cristina Van Blarcum de Graaff Mello et at., p. 372)

– Acho sintomático que foi a dermatologia, e não outra especialidade médica, que tenha criado uma categoria de produtos (os cosmecêuticos) que fica entre o não-medicamento (o cosmético) e o medicamento.

 

HUMILDADE CLÍNICA

“Agora sim, com todos esses dados [estatísticos] em mente e com toda a humildade clínica que eles lhe trazem, entendemos melhor a célebre frase de William Osler, pai da Medicina Interna, cujos pensamentos parecem nunca envelhecer: ´uma das primeiras obrigações do médico é ensinar as massas a não usarem remédios’.” (José Nunes de Alencar Neto, p. 145)

– Quando eu digo o objetivo da aromaterapia é fazer com que a pessoa use cada vez menos óleo essencial, o povo fica pau da cara comigo. Olha aí.

“Você precisa entender que, da mesma forma como em uma metanálise, se os dados que você receber do paciente forem pobres, também pobre será a sua conclusão. Então, o primeiro conselho é que foque na qualidade e sistematização de sua anamnese e exame físico.” (José Nunes de Alencar Neto, p. 188)

– Fazer anamnese em 10 minutos e sair com um monte de exame é o jeito mais seguro de se obter uma porção de falsos-positivos.

“Daniel J. Boortstin, historiados americano no início do século XX, certa vez disse: ´O maior obstáculo para a descoberta não é a ignorância; é a ilusão do conhecimento´.” (Edmond Raymond Le Campion, p. 319)

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2021

 

ALENCAR, JOSÉ N. (org.) Manual de medicina baseada em evidências. Salvador: Editora Sanar, 2021.

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