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Contra um mundo melhor – Luiz Felipe Pondé

Postado às 18:43 do dia 10/02/20

A primeira coisa que deve chamar sua atenção neste livro é o subtítulo “ensaios do afeto”. Embora afeto seja uma palavra que grudemos mais no Cortella que no Pondé, penso que a fala deste último sempre vem muito carregada de afeto, ao ponto do arcabouço filosófico só se dar por satisfatório se passar pelo crivo do coração. Tem muito de “gente” em tudo que Pondé faz, e por isso acho que sua fala é tão sedutora, porque é aquela de alguém que lê as coisas mais complexas pra entender por que a gente, mesmo sabendo que pão branco não é saudável, come todos os dias. As grandes questões, em Pondé, estão a serviço do comezinho. E o comezinho, tragicamente, encontra validação das grandes questões.

Se você acompanha Pondé pelo You Tube ou pela TV Cultura, sabe que ele é professor e já o deve ter ouvido falar que ele envelhece, mas seus alunos não: sempre têm 18 anos. Penso que isso seja uma posição privilegiada pra observar o efeito das décadas sobre as gerações, algo que nós, que costumamos circular apenas em grupos de pessoas com nossa mesma idade, não temos. Então, se em 2018 Pondé lança um livro intitulado Contra um mundo melhor, talvez porque esteja exagerada mesmo esta coisa de Poliana e ela, em vez da velha que tenta ajudar, é quem esteja precisando de ajuda.

As citações escolhidas e comentadas abaixo devem dar as pistas pra você figurar o problema.

 

A vida é uma dor de barriga

“A ideia de que nossa natureza humana seja um tormento me parece a mais verdadeira de todas as descrições de nossa vida. Sei que muita gente julga essa visão ultrapassada, mas sinto um prazer todo especial em ser ultrapassado num mundo superficial como o nosso. Por que superficial? Porque parasitado por engenharias da felicidade. Somos escravos da felicidade, mas é a infelicidade que nos torna humanos.” (posição 483 Kindle)

– “Engenharias da felicidade” é uma expressão muito feliz pra descrever todo o aparato de auto-ajuda, que começa com os livro de Napoleon Hill e segue até a terapia quântica e ao “empreendedorismo de palco”, outra expressão genial.

“Sim, eu acredito na infelicidade como matéria de vida. Não que a procuremos, nem precisa, ela nos acha, mas creio na infelicidade como medula, espinha dorsal de nossa dignidade. A infelicidade é a lei da gravidade que reúne elementos que compõem nossa personalidade.” (posição 507 Kindle)

– Meu pai, que adorava Chico Anísio, Jô Soares e Juca Chaves, sempre nos dizia que quem faz humor é mais inteligente do que quem faz coisa séria. Talvez quem louve a infelicidade tenha mais chances de ser feliz, até por uma questão de lógica: se você estiver preparado pro pior, as coisas boas que acontecem (e elas sempre acontecem), te deem a sensação de estar no lucro.

“Como diria o filósofo alemão Horkheimer no século XX: somos uma raça de exilados abandonados à própria má sorte, ninguém ´cuida´de nós.” (posição 820 Kindle)

– Ainda bem. Quanto menos gente no pé, melhor. O único cuidado digno é aquele pelo qual você paga, onde nada é imposto nem fingido.

“As virtudes máximas da tragédia são a coragem e a humildade: humildade de se saber um nada, coragem de se manter de pé sabendo-se sempre um derrotado.” (posição 855 Kindle)

– Fiquei na dúvida se a coragem é um fetiche e se deveria ter colocado esta citação, por conseguinte, lá embaixo. Por que mantemos a coragem diante do absurdo? Em outro livro, Pondé já disse que é porque ela torna a vida mais bela. A beleza, assim como o sucesso, preciso dizer que são irresistíveis.

“O destino humano é sobretudo fisiológico. Carregamos moiras em nossas células.” (posição 918 Kindle)

– Esta frase só poderia ter sido escrita por um ex-futuro médico.

“Mas reconheço que a ausência de beleza torna o homem um monstro, por isso entendo que a busca desenfreada da beleza mova o espírito humano em meio às trevas que é a sobrevivência. Os minutos de beleza são fruto da coragem de resistir ao mundo que é mais afeito às baratas do que aos humanos. Uma beleza restrita aos desgraçados. Encanta-me uma ética que brote dessa desgraça.” (posição 975 Kindle)

– Sempre, no final, somos anjos caídos.

“Sobretudo, o que nos faz babelianos e descendentes de Adão e Eva é nossa revolta banal contra a evidente infelicidade da vida.” (posição 1064 Kindle)

– Ou seja, nossa revolta mi-mi-mi.

“O segredo da maturidade é perceber que muito da vida é uma meditação sobre a morte. De novo, mortal. Amadurecer é se aproximar da morte e sentir o cheiro da insignificância de tudo.” (posição 1162 Kindle)

– Explica-se nossa síndrome de Peter Pan.

 

Não fale isso, Pondé.

“Sou daquele tipo de pessoa que simpatiza fortemente com o mundo da aristocracia (não necessariamente de sangue nem de dinheiro, às vezes apenas de mérito puro e simples) simplesmente porque julgo que a minoria sempre carregou a humanidade nas costas. Isso acontece desde o recinto doméstico da sala de aula (poucos alunos valem a pena) até os grandes fatos históricos (fruto do esforço de poucos homens e mulheres).” (posição 523 Kindle)

– Se um dia assistir à série The Tudors, tenho certeza de que não achará tão escrota a opinião de Pondé, não pelo menos na premissa de que os fatos históricos se curvam ao desejo de poucos.

“A intimidade só existe quando há invasão do outro. Acho muito engraçado quando os arautos da chamada ´ética da alteridade´(o respeito ao ´outro´como pilar das relações humanas) querem contaminar a promiscuidade da vida sexual e amorosa com esse papo de respeito ao outro. Quando você respeita o outro é porque já ficou indiferente a ele. Quando amamos e desejamos, violamos.” (posição 546 Kindle)

– Não tenho certeza se entendi este parágrafo em todas suas camadas de sentido. Na mais óbvia, sim, quando desejamos, foda-se o respeito. Mas quando amamos é que não sei.

“O amor familiar pode ser apenas resultado de falta de opção.” (posição 581 Kindle)

– As crianças, quando têm sua primeira briga série com os pais, descobrem isso da maneira mais cruel possível jogando-lhe na cara que “não pediram pra nascer”. Sempre considerei isso a pior coisa pra ser dizer a uma mãe e a um pai. Quando entrei no mundo “esotérico”, aprendi que, sim, pedimos pra nascer. Ainda não estou convencida.

“O que é marketing de comportamento? Sinto muito, não estou com vontade de explicar isso agora. Só porque comprou meu livro, acha que sou obrigado a explicar tudo que você não sabe? Sinto muito, não sou uma pessoa ética. E como disse antes neste livro, aceito a preguiça como um alento moral em meio ao massacre cotidiano.” (posição 606 Kindle)

– Trabalhando no mercado da educação continuada há quase duas décadas, constato que os alunos confundem seguidamente relação pedagógica com relação comercial. Ao que sempre lhes digo: relação de consumidor é quando você paga na secretaria da escola. Aqui dentro da sala de aula é professor-aluno. Desista de querer fazer valer seus direitos de consumidor aqui. Você paga na secretaria, e não diretamente a mim, justamente pra que seu direito a um professor, e não a um fornecedor, seja garantido em sala de aula.

“Você deveria levar a sério a afirmação de que existem pessoas burras no mundo.” (posição 675 Kindle)

– Hahaha. Só rindo. Com certeza, pela régua dos outros, a gente sempre é burro.

“O pensador americano Henry Adms, no século XVIII, dizia que um professor é um empregado encarregado de contar mentiras às crianças e de velar as verdades aos adultos”. (posição 1000 Kindle)

– Escola sem partido já! Hahaha

“[…] a felicidade que o dinheiro compra é vã. Verdade, devo dizer. Mas qual tipo de felicidade não é?” (posição 1012 Kindle)

– Tô até agora tentando pensar em alguma que não seja…

“Carro, celular, laptop. Desejar algo não necessariamente passa pela falta que esse algo faz, mas sim pela humilhação imaginária de que outros desfrutem aquilo que você não tem.” (posição 1044 Kindle)

– Meu primogênito aprendeu algo no You Tube e veio nos contar (não me julgue por isso): sempre que quer comprar algo (ele tem 15 anos; então o correto seria afirmar “sempre que quer nos pedir pra comprar algo”) ele faz o QUEMEPREPODE, que é o acrônimo pras seguintes perguntas: quero? mereço? preciso? posso? devo? Segundo ele, nenhum desejo sobrevive a esta enquete.

“Viver diante de Deus demanda uma estrutura psicológica que resista aos pequenos afetos de inveja e revolta.” (posição 1422 Kindle)

– Gosto muito da elegante proposta do hinduísmo de que somos todos marionetes do Shiva Lilah, ou seja, Shiva brinca conosco como se fôssemos peças em uma tabuleiro de xadrez. Se você aceita que sua vida é efeito do Shiva Lilah, toda a tensão é desfeita, e alcançar felicidade vira um mero jogo de superstição e não aquela coisa pesada se deixar de ser um pecador.

 

Fetiches da modernidade

“Segundo o que nos dizem os especialistas sobre o Renascimento, é nesse período que começa surgir a ideia de que todos somos indivíduos. Movidos pelos avanços da ciência e pela ampliação da circulação dos livros, os burgueses, esses amantes da competência individual contra a herança aristocrática de sangue, pregam a virtude individual como experiência histórica total. De lá para cá, a moda de todo mundo ser indivíduo gerou, na realidade, grande inveja e ódio por quem de fato é indivíduo e suporta a solidão de sê-lo.” (posição 532 Kindle)

– Não é porque se conta isso que se quer a volta da monarquia, mesmo porque, da maneira com as famílias políticas se perpetuam no poder, continuamos tendo uma aristocracia. Talvez o fato delas serem sucessivamente eleitas traia um desejo secreto de aristocracia por parte da população. Fica aí a hipótese pros especialistas e chocados de plantão discutirem.

“O que alimenta a busca da saúde total é a velha e feia ganância como qualidade de caráter. Quando me encontro em jantares inteligentes em que tudo é orgânico e equilibrado, me sinto entre vampiros que sugam o mundo, em vez de se oferecer a ele como alimento permanente da vida.” (posição 568 Kindle)

– Uma ex-aluna querida certa vez me enviou uma charge que mostrava que, na verdade, as plantas é que pastoram a humanidade. Ou seja, elas nos criam porque sabem que viraremos adubo. É um ponto de vista interessante. Pondé costuma criticar os veganos, inclusive citando de Peter Singer o conceito de especismo pra demonstrar que não faz uma crítica apenas por implicância (eu acho que ele faz, sim). Mas nos comparar a um bando de vampiros é uma imagem muito boa, nada especista, aliás.

“Os ateus ou não, crentes na capacidade humana de reformar o mundo pelas ´mãos humanas´como nas utopias políticas descendentes de Rousseau ou Marx, são muito comuns em nossa época.” (posição 775 Kindle)

– Foi a leitura, Pondé. Se mantivéssemos todos analfabetos, apenas uma casta reformaria o mundo com as próprias mãos (contém ironia).

“A resposta para a falta de sentido no mundo seria: vamos progredir porque o progresso é o sentido.

“Claro que existe algum progresso, o problema para mim está em supor que seja o progresso o sentido do mundo e da vida.” (posição 791 Kindle)

– E é por isso que tenho implicância com o termo progressista na política, mas pouco com o termo conservador (que é diferente de reacionário).

“Um mundo que endeusa o futuro (os mais jovens) é um mundo sem futuro. Quando mais exaltamos as tecnologias da juventude, mais declaramos que a vida é um nada que despenca no abismo. A diferença é que hoje sabemos (ou achamos que sabemos) que os idosos nada sabem e, portanto, nada valem. Uma sociedade como a nossa, em que o jovem é o critério de valor, necessariamente esmaga qualquer dignidade possível do envelhecimento.” (p. 924 Kindle)

– Eu gostaria que todos pudessem ler este parágrafo. Recordo uma aula que dei a futuros consultores de imagem e causei uma certo mal-estar na sala mostrando como nos tornamos fúteis desejando ser jovens e saudáveis. Esta conclusão não foi intencional, mas surgiu naturalmente enquanto eu percorria a história da perfumaria (com base numa palestra a que tinha assistido de Sonia Corazza) e ia ficando claro como os perfumes foram se tornando cada vez mais infantis do início do século XX para o início do século XXI. Mostrei aos meus alunos que o preço que pagamos por desejar ser belos, e depois ser belos e jovens, e depois ser belos e jovens e ativos, e depois ser belos e jovens e ativos e saudáveis nos proibiu de ser qualquer outra coisa, tirando-nos a liberdade. A classe, nos seus 20 e poucos anos, olhava-me com incredulidade e um certo nojo. Com certeza me acharam velha (algo que meus cabelos brancos indubitavelmente confirma).

“Nossa maior preocupação é assegurar uma ideia construtiva de nós mesmos”. (posição 986 Kindle)

– Instinto de sobrevivência quando a sobrevivência está assegurada.

“Lutamos décadas pela liberdade dos indivíduos, sabemos quão duro é viver sob a bota da opressão. Mas hoje não temos a mínima ideia de como resolver o fato de que muito do que lamentamos ter perdido deixou de existir porque não resistiu à liberdade de escolha. A vida comunitária só sobrevive na ausência da liberdade de escolha.” (posição 1237 Kindle)

– Mais complicado fica isso quando lemos estatísticas mostrando que pessoas que vivem sob forte senso de vida comunitária vivem mais e melhor. Mas quem ousaria dizer que trocaria liberdade de escolha por vida tosca comunitária?

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2020

(Se compartilhar, por favor, cite a fonte. É algo simpático e eu fico agradecida.)

 

PONDÉ, Luiz Felipe. Contra um mundo melhor. São Paulo: Contexto, 2018. Edição do Kindle.

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