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Mal Líquido – Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis

Postado às 18:56 do dia 22/06/19

Mesmo que não tenha lido nenhum livro de Bauman, o adjetivo líquido, pra definir o que vivemos hoje, deve ter cruzado seu vocabulário. Amor líquido, tempos líquidos, mundo líquido, vigilância líquida, vida líquida, medo líquido – tudo foi pro liquidificador na pós-modernidade. Liquidez é a própria definição de pós-modernidade, com sua mania de escapar a definições.

Mal Líquido é um diálogo entre o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) e o filósofo e cientista político lituano Leonidas Donskis (1962-2016). Com uma dicção que lembra bastante a verborragia inventora de novas semânticas de Gilles Lipovetsky (de O Império do Efêmero, seu livro mais famoso), a conversa entre os dois começa próxima da gente mas vai se afastando, afastando, como uma poça d´água que seca sob o sol.

A ideia é que a queda do Muro de Berlim, em 1989 (me lembro nitidamente de assisti-la pela televisão Globo e a comoção que isso representou, pois se entendia que, com ela, não morreríamos mais num ataque de bomba nuclear; apenas pessoas da minha geração têm este medo impresso em seu DNA), marcou a mudança do tempo em que conseguíamos nitidamente identificar os caras maus, pra uma época em que eles estão disfarçados sob uma capa de invisibilidade, como a do Harry Potter, misturando-se à paisagem, seduzindo-nos com um argumento óbvio: nenhuma utopia deu certo nestes 2 mil anos de histórias: ou é o neoliberarismo, ou é NHA – Não Há Alternativa.

Tudo faz bastante sentido no livro, este sentimento que os diálogos tentam capturar pra explicar o que vivemos hoje, nossa desilusão com as instituições e a política, nossa fé no mercado e nas transações comerciais como reguladoras das emoções e do convívio, nosso aparente bem-estar que é sustentado por uma massa de pessoas transparentes, que vivem à margem das sociedades de mercado, que vivem em constante diáspora, que não servem mais ao capital e cuja presença, incômoda, preferimos ignorar.

Mas então, muito mais por Leonidas que por Bauman, o livro começa a versar sobre o estado catatônico da Europa Central e do Leste – e aí perdemos o fio da meada, porque se há algo distante pra nós são as fronteiras além da península itálica e da Alemanha. Não conhecemos bem a história dos balcãs nem do leste europeu, seus dramas vão no máximo até a influência que a antiga URSS exercia sobre esta vasta região, principalmente porque, quando viviam seus dramas particulares, vivíamos o nosso próprio aqui, no período da Ditadura Militar e da redemocratização após. O livro fica um poco enfadonho citando nomes de artistas e obras naquelas línguas nacionais que só ouvimos em época de Copa do Mundo.

O recado fica dado, apesar disso. Líquido, mal líquido, não se esqueça disso.

Catei vários melhores trechos pra você, e vou comentá-los. Espero que curta.

 

Otimismo x pessimismo

“O otimismo é, antes de tudo, uma construção cristã – baseia-se na fé de que o bem pode vencer o mal, e de que sempre é possível encontrar possibilidades e alternativas inexploradas.” (p. 12)

– Acho a coisa mais curiosa do mundo que a grande alternativa do século XX, o comunismo, tenha sido a fé de ateus e de homens racionais.

“Esse é um tipo de crise com um túnel escuro no final da luz […]” (p. 111)

– Sempre que algum otimista irritante vier te animar com a ideia de luz no final do túnel, saia com esta: parece mais um túnel no final da luz.

 

Mal líquido

“O que significa o conceito de mal líquido? […] [o mal líquido] assume a aparência de bondade e amor.” (p. 13)

– Mal líquido é o mal sociopata: você não sabe que ele é o vilão até que a novela revele todos seus planos.

“A transição do kafkiano ao orwelliano assinala a linha divisória entre o mal sólido e o mal líquido, como diria você, Zygmunt: no mundo de Kafka, anterior à Segunda Guerra Mundial, não conseguiríamos compreender como e por que tudo isso iria acontecer conosco – apenas aconteceu, sem deixar no ar nenhum vestígio de clareza e lógica, porém saberíamos que havia uma alternativa a se apresentar mais cedo ou mais tarde; no mundo de Orwell, nós entendemos como e por quê, mas há pouco ou nada a fazer em relação a isso, já que não existe alternativa alguma. Faça você mesmo – essa é a lógica do mal líquido. E você faz. Eles fazem com que você faça por si mesmo. Você – e não eles – grita: ´Não faça isso comigo, faça com a Julia.´ No final, você ama o Grande Irmão.” (p. 108)

– Me incomoda “Eles fazem com que você faça por si mesmo”. Parece conspiratório demais, do jeito que o líquido falaria. Então, ou não estamos entendendo patavina, ou há uma alternativa: liquidá-los, sem chiste.

 

Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós

“Em termos simples, nossa liberdade hoje está localizada na esfera do consumo e da autorrenovação, mas perdeu toda conexão com a coisa mais importante: acreditar que se possa mudar algo no mundo.” (p. 19)

– Exceto pros sonhadores do capitalismo, que creem que o consumo pode mudar o mundo.

 

Vazamentos

“Vivemos numa realidade de possibilidades, não de dilemas. Isso é algo próximo à ética do WikiLeaks, em que não existe mais moral. É obrigatório espionar e vazar, embora não esteja claro por que motivo e com que finalidade. E funciona nas duas direções – pelo Estado e contra ele -, mas jamais assume a responsabilidade por um indivíduo genuinamente angustiado. É algo que deve ser feito só por ser tecnologicamente viável.” (p. 23)

– Ah, não, Bauman e Donskis, o motivo e a finalidade são claríssimos, meus caros, claríssimos. O mal líquido coloca a justificativa em algo impalpável como “liberdade de imprensa”. Talvez possamos dizer que “é algo que deve ser feito só por ser um pressuposto democrático, a liberdade de imprensa.”

“A tendência a apresentar uma maldição como ´bênção disfarçada´é a característica constitutiva e definidora da atual tecnologia de lavagem cerebral. A vigilância em nome da segurança dos vigiados talvez seja seu mais emblemático e superficial exemplo.” (p. 54)

– Precisamos de mais uns 25 anos no mínimo pra saber se a perda da privacidade é algo que apenas nós, os velhos e os quase-velhos, ressentimos.

 

Moral laica

“Na linguagem do Evangelho, somos todos pecadores. Na linguagem laica, somos todos culpados.” (p. 43)

– Donde se deduz que seja no Evangelho seja no laicismo, somos sempre condenados.

 

Meu Deus do céu!

“Existe um paradoxo endêmico ao credo monoteísta: ele insiste em que o Deus de sua escolha é um e somente um – embora o próprio fato de reiterar com persistência essa afirmação signifique admitir indiretamente a presença de rivais desse Deus. Em função desse paradoxo, a religião monoteísta precisa estar sempre preparada para o confronto – eriçada com baionetas, combativa e belicosa em conflito com pretendentes alternativos (falsos, como é compelida a declarar) ao status de Deus.” (p. 61)

– Sempre achei mais divertido o Olimpo ou o panteão Hindu. Uma festa entre deuses sempre esteve mais próximo da minha sensibilidade.

“Em nosso planeta incuravelmente politeísta, os deuses monoteístas são obrigados a viver muitos próximos entre si; na verdade na companhia uns dos outros.” (p. 62)

– E, quer saber, devem estar se divertindo mais que nós!

 

A insustentável sustentabilidade do ser

“Podemos ter recentemente falado e escrito mais do que antes sobre os perigos que ameaçam a sustentabilidade de nosso planeta e também sobre nossas perspectivas de sobrevivência coletiva. Mas nossa conduta e as realizações dela decorrentes não acompanham as palavras – não importa quantos de nós tenham sido abordados nem o nível de poder e influência em que elas foram pronunciadas; isso também é, em si mesmo, uma manifestação da ´liquidez´ do mal. Nosso discernimento coletivo ainda deve – assim parece – cobrir uma grande distância a fim de alcançar nossa consciência coletiva, e através dela gerar uma adequada ação conjunta.” (p. 66)

– Pouparíamos esforços se aceitássemos que somos incuravelmente politeístas e predadores: construir uma filosofia com base na desgraça que é a humanidade é mais sustentável que uma baseada na bênção que ela acha ser.

“A economia consumista é ajudada e instigada pelo papel hegemônico exercido pela filosofia do ´bem-estar´ (´Ser uma boa pessoa atualmente não significa controlar os instintos corporais pecaminosos – significa viver bem´, como afirmou Hervé Juvin em L´Avènement du corps, citado por Carl Cederström e André Spicer; ´Hoje, o bem-estar se tornou uma demanda moral – da qual somos constante e incansavelmente relembrados´, sugerem eles próprios […]” (p. 82)

– Quando dou aula sobre a evolução da perfumaria, com base numa palesta da maravilhosa Sonia Corazza, de quem primeiro ouvi a história, mostro como o zeitgeist evoluiu de sexo, drogas e rock´n´roll pra o sexo seguro, drogas pra ficar mais saudável e Zumba. Os alunos ficam putos comigo, porque é exatamente assim que são todos hoje em dia. Ser gordo, feio e, sobretudo, ser doente, é defeito de caráter.

“[…] ´Há um aumento espetacular do que poderíamos chamar de biomoralidade (assim como moralidade de sentimentos e emoções, que promove o seguinte axioma fundamental: uma pessoa que se sente bem (e está feliz) é uma pessoa boa; uma pessoa que se sente mal é uma pessoa má.” (p. 84)

– Também cito aos meus alunos um comercial de um antigripal, que era feito com Giovana Antonelli numa época em que ela figurava alguma de suas várias protagonistas de novela. A atriz aparecia andando, atendendo pessoas e no texto dizia que desempenhava vários papéis (de sucesso): atriz, mãe, esposa, empresária. E então dizia que quando ficava gripada, o medicamento não deixava ela parar. Sempre achei este comercial o ápice da negação de nossa humanidade: não podemos nem mais ficar doentes, pois adoecer é sintoma de fracasso – e uma espécie como a nossa não pode ser fracassada, não uma espécie como a nossa.

“Ele [Orwell] acreditava que nossa necessidade existencial de raízes e de um lar, caso negligenciada – ou pior, desprezada -, poderia retornar estranhamente sob a forma de uma compensação simbólica, tal como uma adesão ferrenha à doutrina ou ideologia que se torna nosso lar simbólico.” (p. 106)

– Tenho impressão de que em Homo deus, Harari disse que quando tudo o mais fica ferrado, inventamos mitos pra pormos ordem no caos.

 

Aos vencedores, batatas.

“A verdade na política é produzida pela pessoa que gera a ação e alcança resultados, não por aquela que define, articula e questiona, à luz da virtude, essa ação e esses resultados, ou os examina no contexto do cânone clássico. Isso significa que verdade é sucesso e, inversamente, sucesso é verdade.” (p. 118-119)

– A última vez que concordamos que existe apenas um tipo de sucesso digno de ser nomeado foi quanto Arthur Weasley desafiou Lucius Malfoy na Floreios e Borrões. Depois disso, tornamo-nos cínicos e passamos a consumir distopias e finais frustrantes (exceto potterheads, que nunca se frustraram com o final da saga como fãs de GOT).

“A vergonha e o estigma são associados não à recusa da virtude, à adesão à perversidade ou a uma escolha ativa do mal, mas à perda de poder, à incapacidade de sustentá-lo, à derrota dolorosa.” (p. 119)

– Uma decisão perversa sobre acentuação, e o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa derrotaria a virtude da crase.

“Na verdade, foi Herbert Spencer, e não Charles Darwin, que cunhou a expressão ´sobrevivência do mais apto´em seu Principles of Biology, publicado em 1864. Na visão de Spencer, essa expressão enunciava concisamente a essência da ideia darwiniana de ´seleção natural´. O próprio Darwin só a empregou na quinta edição de A Origem das Espécies, publicada em 1869. Mas será que esses dois homens tinham em mente o mesmo fenômeno ao recorrerem à mesma expressão? Para Darwin, o volante do motor da ´seleção natural´era mais adequado para um ambiente local imediato – enquanto Spencer escrevia sobre a preservação de raças favorecidas em sua luta de vida e morte. Diferentes abordagens de uma expressão ambiguamente pleonástica (Quem sobrevive? Os mais aptos. Mas quem são os mais aptos? Os que sobrevivem) e duas mensagens morais profundamente diferentes. Tautologia ou não, Darwin define a capacidade de sobreviver como a aptidão dos sobreviventes (com o que quer dizer, permita-me repetir, melhor adaptação às condições de vida atuais/locais), enquanto Spencer inverte a ordem ao definir aptidão como o fato de sobreviver a outros (sendo sobreviver a outros a única prova – tanto necessária quanto suficiente – da aptidão).” (p. 175)

– Trouxe este longo parágrafo citado porque achei que gostaria de recolocar num frame adequado a tal história da seleção privilegiar o mais forte.

 

Democracia

” ´Vinte e cinco anos atrás as pessoas ultrapassaram um muro de arame farpado que encarnava sua falta de liberdade – esperando que, uma vez derrubados os muros, a democracia iria garantir-lhes liberdade e esta iria assegurar seu bem-estar. Vinte e cinco anos depois da queda do muro, a democracia atravessa uma crise sem precedentes (e, portanto, quase inimaginável).´” (p. 188)

– Quando quero exemplificar o que significa uma pessoa vir se tratar com homeopatia ou aromaterapia, conto aos meus alunos daquele paciente que, desenganado pela medicina convencional, que já lhe disse tudo que ele deveria fazer (dieta, exercícios, gerenciar o stress), chega na aromaterapia esperando que ela, pelo menos ela, lhe dê alguma alternativa que não implique em fazer a lição de casa. Então, na verdade, ele está bem puto quando chega até nós e torcendo pra que falhemos, pois assim poderá continuar acreditando que ninguém é capaz de dar um jeito na doença dele. Pessoas que depositam muita fé na democracia me parecem esse tipo de doente: na verdade, torcem pra que a democracia liberal dê errado porque é infinitamente mais doloroso encarar a realidade tal como ela é que ficar apegado à ideia de uma sociedade de bem-estar social que só existe na cabeça delas. Me parece que as pessoas não acreditam nesta balela de NHA. Os órfãos das utopias acreditam e estão denunciando o mal líquido; todos os demais estão indo trabalhar à espera de terem dinheiro pra curtir no final de semana e sendo acusados de fazerem exatamente o que o mal quer – acreditar que isso não é com eles.

“Uma ou duas décadas atrás, era crucial ter provas de que você era uma democracia para ser membro do clube. Mas agora é provável que estejamos entrando em um novo estágio de política mundial: o que realmente importa é sua disciplina financeira, sua capacidade de se adequar à união fiscal e sua conduta econômica. Houve uma época em que as nações do Leste Europeu acreditavam sinceramente que a regra da lei, um forte comprometimento com a democracia e um histórico decente em termos de direitos humanos serviam de passaporte para o céu da atenção ocidental, do respeito e mesmo da segurança.” (p. 192)

– A Europa Central sempre foi um pouco cínica. Apenas foi um pouco menos tolerante com o Leste porque as fronteiras são bastante próximas. Mas aqui com nós, sempre cagaram e andaram, contanto que o abastecimento de grãos e minério de ferro continue.

“Na era do Facebook, as nações estão se tornando unidades extraterritoriais que compartilham uma língua e uma cultura. […] uma nação parece um conjunto de indivíduos móveis com sua lógica de vida profundamente embutida num jogo de retirada e retorno. É uma questão que se relaciona ao fato de você estar on-line ou off-line em relação aos problemas de seu país e aos debates sobre eles, em lugar de decidir de uma vez por todas se vai permanecer no mesmo lugar ou votar nos mesmos atores políticos para o resto de sua vida. Ou você está on ou está off. Esse é o plebiscito diário de uma sociedade líquida moderna.” (p. 193-194)

– Tendo como premissa que as pessoas sempre estiveram super envolvidas com seu nacionalismo, até dá pra concordar. O defeito de pensadores europeus é que eles vivem na Europa, que sempre nos pareceu um conglomerado de países-lego. Venha pro Brasil, baby, onde ninguém fala inglês, onde cruzamos distâncias equivalentes a 3, 4 países europeus sem sair de um único estado, e então venha me falar sobre extraterritorialidade. Ninguém aqui dá a mínima pra “placas padrão Mercosul” porque a gente não sai pra fora do Brasil de carro. Quando pensamos em fronteiras, miramos a do Atlântico, baby. E cruzar um oceano nos dá uma sensação bem sólida de territorialidade, apesar de toda água em volta.

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2019

 

BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Mal líquidi: vivendo num mundo sem alternativas. Tradução Carlos Alberto Medeiros. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

 

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