Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crítica literária > Madame Bovary – Gustave Flaubert (trad. Mario Laranjeira)
Romance icônico é assim: você lê e importa saber quem fez a tradução. Aqui é Mario Laranjeira que desbravou o francês inovador com que Gustave Flaubert (1821-1880), no século XIX, criou esta obra-prima, Madame Bovary (1857). Obra-prima, diga-se, anos depois, posto que o livro foi condenado por contemporâneos que ficaram chocados com a aderência do narrador à vida adúltera da personagem principal, levando Flaubert a revelar (ou a descobrir, vai saber), no momento de seu julgamento, que Mme. Bovary tinha sido inspirada nele próprio.
Categorizado como romance realista, é frequentemente visto como um dos que instituiu a narrativa moderna. Nós o lemos e não nos damos conta de todas as inovações de que foi porta-voz, mas são elas: o já citado narrador que, embora onisciente, adere a um ponto de vista; a menção de objetos e paisagens para compor eloquente atmosfera que traduz o que se passa na cabeça dos personagens ou de como se desenrolará a história; a análise psicológica impulsionando a narrativa e a fluidez na marcação do tempo da narrativa; um léxico carregado de verbos e substantivos sensoriais; linguagem sem formalismos e diálogos nus e crus. Quanto ao tema, o adultério, Flaubert não poderia ter escolhido um tão banal, mas sua genialidade foi a de inseri-lo como opção dramática na vida banal de uma mulher em briga constante com sua condição feminina.
Por esta tradução, Mario Laranjeira ficou em terceiro lugar na categoria Tradução da 54ª edição do Prêmio Jabuti (2012). Fosse o francês uma língua com tão poucos adeptos quanto o grego e o russo de seus concorrentes (a saber, Trajano Vieira, que ganhou o primeiro lugar por ter traduzido a Odisseia; e Rubens Figueiredo, por Guerra e Paz, segundo lugar), Mario teria levado o prêmio, pois não é fácil transpor para o português todos os sussurros e suspiros da língua francesa e fazer com que enxerguemos, na tradução de Madame Bovary, todos os azuis, verdes pálidos e lilases desfocados que existem na versão original.
Para completar o entusiasmo por esta edição, ela ainda traz um texto que o poeta Baudelaire (1821-1867) escreveu sobre romance e mais dois estudos sobre a obra: um prefácio de Lydia Davis e uma introdução de Geoffrey Wall.
Vá lá, releia este Madame Bovary. Abaixo selecionei meus novos trechos favoritos, à parte os de sempre, que não transcrevo pra não estragar a surpresa.
Não queira ser médico
“À noitinha, quando Charles voltava para casa, ela tirava de debaixo das cobertas os longos braços magros, passava-os em torno do pescoço dele e, tendo-o feito sentar-se na beirada da cama, punha-se a falar de seus infortúnios: ele se esquecia dela, amava alguma outra! Bem que lhe haviam dito que ela seria infeliz; e acabava por pedir a ele algum xarope para a saúde e um pouco mais de amor.” (p. 87)
– Charles Bovary, na literatura francesa, e Bentinho, na brasileira, foram coroados com o título de os maridos mais babacas do mundo. Mas Bentinho, graças ao feito de ter sido a voz por trás de Dom Casmurro, nunca ficou de fora dos holofotes, enquanto, sinto, Charles jamais teve quem fizesse por ele. Então estou aqui para compensar. Muito se fala sobre a inevitabilidade do destino de Emma, que se casou, como toda mulher; mas e o coitado do Charles, que teve que ser médico sem querer sê-lo?! Essa cena, do primeiro casamento de Charles, é uma desolação só: imagine uma mulher, que não o ama, lhe pedir xarope, que é tudo o que você tem coragem de prescrever com sua medicina, e mais amor, que é tudo o que você não tem para dar? Pobre Charles Bovary…
“A fratura era simples, sem complicação de espécie alguma. Charles não podia desejar nada mais fácil. Então, lembrando-se da atitude de seus mestres junto do leito dos feridos, reconfortou o paciente com toda sorte de boas palavras, carícias cirúrgicas que são como o óleo com que se lubrifica os bisturis.” (p. 91)
– Meu coração parte quando o narrador fala de Charles Bovary. Existe uma cena em que ele se debruça sobre apostilas para aprender sobre uma nova técnica cirúrgica que ele teme aplicar. É um quadro pungente. Os leitores perdoam o abismo que existe entre as ilusões e a realidade da vida de Emma, mas nunca puderam perdoar a conformidade que existe entre o temperamento e a vida de Charles, toda ela marcada pela mediocridade de querer levar uma vida comum.
“A conversa de Charles era chata como uma calçada de rua e nela as ideias de todo mundo desfilavam em seu costume ordinário, sem excitar emoção, riso ou sonho. Nunca tinha tido a curiosidade, dizia ele, enquanto morava em Rouen, de ir ver no teatro os atores de Paris. Não sabia nem nadar, nem combater, nem atirar com revólver, e não pôde, um dia, explicar-lhe um termo de equitação que ela tinha encontrado num romance.” (p. 122)
– Médicos, Emma, estudam muito, sabe como?
“ (…) Olhe para mim, antes: todos os dias, levanto-me às quatro horas da madrugada, faço a barba com água fria (nunca sinto frio), e não uso malha, não pego nenhum resfriado, tenho estômago de avestruz! Vivo ora de um jeito, ora de outro, como filósofo, ao acaso do garfo. É por isso que não sou delicado como você, e me é perfeitamente indiferente dissecar um cristão como a primeira galinha que aparecer.” (p. 287)
– A fala é do médico Canivet, gabando-se de poder ver sangue, ao passo que o farmacêutico do livro não podia nunca. Hilária!
Ciúmes. Ciúmes?!
“E ela a detestou, por instinto. Primeiro, ela se aliviou com alusões, Charles não as entendeu; em seguida, por reflexões incidentes que ele deixava passar, com medo de uma tempestade; finalmente, por apóstrofes à queima-roupa às quais ele não sabia o que responder.” (p. 95)
– Em todo o romance, aqui foi a única vez em que duvidei da parvoíce de Charles. Mas mesmo o mais parvo dos homens, quando está apaixonado por outra, faz-se de desentendido.
“- Sim – murmurava ela rangendo os dentes – , ele me perdoará, ele a quem não bastaria oferecer-me um milhão para que eu o desculpe de ter me conhecido… “ (p. 427)
– Pra saber se Charles perdoa ou não sua esposa Emma, leia o romance.
Alegria de pobre
“As outras pessoas do casamento conversavam sobre os seus negócios ou pregavam peças pelas costas, estimulando-se com antecedência para a alegria (…)” (p. 106)
– Se você precisa se estimular pra ficar alegre num casamento, ai ai…
“No dia seguinte, em compensação, ele parecia um outro homem. Tomar-se-ia mais ele pela virgem da véspera, enquanto a recém-casada não deixava transparecer nada por que se pudesse descobrir algo.” (p. 109)
– A descrição é da manhã seguinte à noite de núpcias entre Charles e Emma. Não sei quando as pessoas deixaram de achar bonito um homem que conhece o amor…
“Parecia-lhe que certos lugares na terra deviam produzir felicidade, como uma planta particular ao solo e que cresce mal em outro lugar.” (p. 121)
– Há lugares que produzem mais felicidade.
“ (…) e ela observava a felicidade do filho com um silêncio triste, como alguém arruinado olha, através da vidraça, pessoas à mesa em sua antiga casa.” (p. 124)
– Nada pode ser mais triste que ver pessoas ocupando sua antiga casa, o local que produzia felicidade.
“Paris, mais vago do que o oceano, cintilava, pois, aos olhos de Emma numa atmosfera escarlate.” (p. 142)
– É interessante que Mario Laranjeira tenha optado por nomear Paris no masculino, uma vez que o adjetivo original, “vague”, serve para ambos os gêneros. Concordando que Madame Bovary é um romance moderno, é certo que Paris seja nomeada no masculino. Até o período romântico, Paris era vista como uma amante, caprichosa e generosa. Foi apenas depois que os burgueses a transformaram em ele, o símbolo do progresso e do século das luzes.
“Então viu-se avançar sobre o palanque uma velhinha de porte tímido, e que parecia encolher-se em suas roupas pobres. Trazia nos pés pesados tamancos de madeira e, ao longo dos quadris, um grande avental azul. Seu rosto magro, envolto num gorro sem bordas, era mais plissado de rugas do que maçã murcha, e das mangas da camisola vermelha ultrapassavam duas longas m´~aos, com articulações nodosas. A poeira das granjas, o potássio dos detergentes e a suarda das lãs as tinham tão bem incrustado, esgarçado, endurecido que pareciam sujas, embora fossem enxaguadas com água limpa (…)” (p. 248)
– Acho essa descrição um soco do estômago.
Le charme discret de la bourgeoisie
“Os seus ternos, mais bem-feitos, pareciam de uma casimira mais solta, e os cabelos, puxados em cachos para as têmporas, lustrados com vaselinas mais finas. Tinham a tez da riqueza, essa tez branca a que realçam a palidez das porcelanas, o furta-cor do cetim, o verniz dos móveis finos e que o regime discreto de alimentação refinada entretém na saúde. O pescoço deles movia-se à vontade sobre gravatas baixas; as costeletas longas caíam sobre colarinhos rebatidos; enxugavam os lábios com lenços bordados com um grande monograma, de onde saía um odor suave. Os que estavam começando a envelhecer tinham aspecto jovem, enquanto algo de maduro estendia-se no rosto dos jovens. Em seus olhares indiferentes flutuava a quietude de paixões cotidianamente saciadas; e, através de seus modos delicados, transparecia aquela brutalidade particular comunicada pela dominação das coisas meio fáceis, nas quais a força se exerce e a vaidade brinca, o manejo dos cavalos de raça e a sociedade das mulheres perdidas.” (p. 133)
– Realmente, impossível que Emma, branquela, não se sentisse infeliz.
“Léon finalmente jurara nunca mais encontrar-se com Emma; e se censurava por não ter cumprido a palavra, considerando tudo o que aquela mulher ainda poderia atrair-lhe de confusões e de discursos, sem contar os gracejos de seus colegas, que eram feitos de manhã, ao pé da lareira. Aliás, ele estava prestes a se tornar primeiro escrivão: era o momento de ficar sério. Renunciava também à flauta, aos sentimentos exaltados, à imaginação; pois todo burguês, no calor da juventude, ainda que fosse um só dia, um minuto, acreditou-se capaz de imensas paixões, de altos empreendimentos. O mais medíocre libertino sonhou com sultanas; cada tabelião carrega em si os escombros de um poeta.” (p. 410)
– O que é a última frase, hein?!
Deprê
“ (…) todo o amargor da existência lhe parecia servido em seu prato e, com a fumaça do caldo, subia-lhe do fundo da alma como outras tantas baforadas de esmorecimento.” (p. 149-150)
– A descrição deste jantar, no capítulo 9 da parte 1 é clássica. Tem que ler.
“Um homem, pelo menos, é livre; pode percorrer as paixões e os lugares, atravessar os obstáculos, consumir as felicidades mais distantes. Mas a mulher é impedida continuamente. Inerte e flexível a uma só vez, tem contra si as molezas da carne com as dependências da lei. Sua vontade, como o véu de seu chapéu preso por um cordão, palpita a todos os ventos; há sempre algum desejo que carrega, alguma conveniência que detém.” (p. 178)
– Amém houve o movimento feminista.
“León estava cansado de amar sem resultado; depois começava a sentir aquele desânimo que é causado pela repetição da mesma vida, quando nenhum interesse a norteia e nenhuma esperança a sustenta.” (p. 211)
– Druris…
“E o pobre moço, além do mais, tinha inquietações financeiras.” (p. 318)
– Acho que essa frase tem que ir lá pra baixo, junto às Pérolas, não? O que é um pobre moço tendo inquietações financeiras exatamente?! Cômico, não fosse trágico.
“Não estava feliz, nunca tinha estado. De onde vinha então essa insuficiência da vida, essa podridão instantânea das coisas em que ela se apoiava?” (p. 403)
– É esse o estado de espírito da moça, percebe?
“Tudo e ela mesma lhe eram insuportáveis.” (p. 412)
– Toda mulher já sentiu assim.
Imoralidades
“Porque é possível honrá-lo [a Deus] tão bem em um bosque, num campo ou até contemplando a abóboda etérea, como os antigos.” (p. 164)
– Uma coisa que Flaubert faz, além de escancarar a psicologia do adultério, é criticar a religião católica e os procedimentos financeiros de agiotas. A fala acima é do farmacêutico Homais, o personagem que encarna o fervor que se punha na Ciência (contra as crenças retrógradas da religião) em meados do século XIX.
“Então lembrou-se das heroínas dos livros que tinha lido, e a legião lírica daquelas mulheres adúlteras pusera-se a cantar em sua memória com vozes de irmãs que a encantavam.” (p. 263)
– Uma coisa que a igualdade de sexo desfez foi a possibilidade da mulher se sentir bem quando trai.
“De vez em quando, no fundo, um sacristão passava fazendo diante do altar a oblíqua genuflexão dos devotos apressados.” (p. 353)
– Depois do adjetivo “oblíquo” aparecer em Flaubert, ele foi dar o ar da graça em Dom Casmurro. Pra você ver que é um adjetivo poderoso, que não dissimula verdade nenhuma.
Pérolas
“Se ele ma pedir – disse consigo –, eu lha dou.” (p. 101)
– A frase é do pai de Emma dizendo a si que aceitará o pedido de casamento de Charles com sua filha. Queria muito perguntar ao Mario Laranjeira se ele hesitou usar a combinação dos pronomes “me” + “a” e “lhe” + “a” na tradução, posto que poderia ter feito simplesmente assim: “Se ele a pedir, disse consigo, eu a dou” (o objeto indireto é implícito). A solução dele, embora estranha, é impactante e acabou sendo mais forte até que no original, pois, no português, transformou Emma realmente num objeto, numa coisa. (Veja como é no francês: “- S’il me la demande, se dit-il; je la lui donne.”)
“Sua viagem a Vaubyessard tinha feito um buraco em sua vida, à maneira dessas grandes fendas que uma tempestade, numa só noite, cava às vezes nas montanhas.” (p. 139)
– As imagens de Flaubert são as melhores!
“(…) levantava-se, beijava-a, passava-lhe a mão no rosto, e dizia, meio rindo, meio chorando, toda espécie de brincadeiras acariciantes que lhe vinham à mente.” (p. 177)
– Acho delicioso que alguém receba brincadeiras acariciantes.
“(…) a palavra humana é como um caldeirão trincado onde batemos melodias para fazer os ursos dançarem, quando se quereria enternecer as estrelas.” (p. 296)
– Acho formidável que Flaubert tenha enfiado essa reflexão no romance, sabendo-se que ele corrigiu por 4 anos o manuscrito de Madame Bovary. O cara era dum perfeccionismo só. Outra boa dele é ter dito que levava uma vida regrada pra poder escrever coisas revolucionárias. Ele deve ter se colocado bastante na figura do farmacêutico positivista.
“(…) sucesso, e que não é senão a harmonia do temperamento com as circunstâncias.” (p. 300)
– Gustave Napoleon Flaubert Hill.
“(…) inefável sedução da virtude que sucumbe.” (p. 353)
– Se um dia lhe perguntarem porque você foi complacente com a corrupção, responda que não foi imune à inefável sedução da virtude que sucumbe, tá bem?
“Citava latim, de tão exasperado que estava. Teria citado chinês e groenlandês se tivesse conhecimento dessas duas línguas; pois achava-se numa dessas crises em que a alma inteira mostra indistintamente o que contém, como o oceano que, nas tempestades, se entreabre desde os sargaços de suas beiras até a areia de seus abismos.” (p. 363)
– Não me aguento com essas imagens que Flaubert desenha! “Até a areia de seus abismos”?! D+!
“(…) um pedido pecuniário sendo, de todas as borrascas que desabam sobre um amor, a mais fria e a mais desarraigadora.” (p. 435)
– Isso do ponto de vista deles.
revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012