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Ignorância – Stuart Firestein

Postado às 19:46 do dia 07/06/24

A primeira coisa que chamará sua atenção nesta resenha é que eu selecionei muitos trechos em que o autor do livro cita outros autores. Devemos, ele e eu, ter uma quedinha por citações. Então eis aqui o livro de um biólogo e neurocientista – que inclusive já esteve às voltas com pesquisa sobre olfato – fazendo o louvor da ignorância no método científico. Dito de outra forma: mais vale o que você não sabe do que aquilo que sabe, inclusive porque aquilo que sabe tem grande chance de não ser verdade.

O livro é suficientemente leve pra cativar qualquer tipo de leitor, de cloroquiners a teólogos leigos da ciência, pra recuperar uma expressão da psicanalista Elisabeth Roudinesco, que acabei de resenhar. Identifiquei-me com o pensamento. Já me vi falando em palestras sobre aromaterapia que conhecer o que não sabemos ainda sobre os óleos essenciais é mais importante do que o que conhecemos. O vasto mundo da aromaterapia é-me, a mim, ainda muito misterioso – e nisto reside parte do que me atrai a ele.

Abaixo selecionei citações, comentei-as, naquele estilo que você já conhece. Bora!

 

Crushs acadêmicos

James Clerk Maxwell, talvez o maior físico entre Newton e Einstein, nos aconselha: ‘Uma ignorância totalmente consciente é o prelúdio a todo avanço real na ciência’.” (p. 9)

– Bom, esta é a tônica do livro. Mas esta ignorância parte de um patamar, é bom entender. É tipo uma “ignorância douta” ou, pra trazer outro referencial, ignorância do efeito Dunning-Kruger.

(…) Pascal disse uma vez, à guisa de desculpa, no fim de um longo bilhete escrito para um amigo: ‘Eu teria sido mais breve se tivesse tido mais tempo’.” (p. 11)

– O que é a elegância em uma tese, é a concisão na linguagem.

O poeta John Keats imaginou um estado mental ideal para a psique literária e chamou-o de Capacidade Negativa — ‘que surge quando um homem está cheio de incertezas, mistérios, dúvidas, sem nenhuma irritável busca de fato & razão’.” (p. 19)

– Ótimo nome pra este estado. Eu o chamo de pânico no início de mais um bimestre na faculdade de Farmácia.

Erwin Schrödinger, um dos grandes filósofos-cientistas, diz: ‘Numa busca honesta de conhecimento, você com frequência tem de se conformar com a ignorância por um período indeterminado’.” (p. 20)

– Da mesma forma que as pessoas se dividem entre as que comem a batata-frita primeiro e as que comem a salada primeiro, existem as que diante de uma dúvida dão respostas e as que acrescentam uma segunda pergunta.

“Perguntaram a Max Planck, o brilhante físico que conduziu a revolução na física hoje conhecida como mecânica quântica, com que regularidade a ciência se modifica. Ele respondeu: ‘A cada funeral’, numa alusão ao modo como a ciência costuma mudar numa escala de tempo geracional.” (p. 24)

– O quanto isto é verdade. Idem pras ideologias, pras correntes políticas etc etc etc.

“George Bernard Shaw, num brinde em um jantar em homenagem a Albert Einstein, proclamou: ‘A ciência sempre está errada. Nunca resolve um problema sem criar outros dez’. Não é glorioso?” (p. 30)

– Sim, é glorioso; Shaw também foi um brilhante satirista.

“J. B. S. Haldane, renomado biólogo do século XX, conhecido por seus argutos e perspicazes insights, advertiu que ‘o universo não apenas é mais estranho do que supomos: ele é mais estranho do que somos capazes de supor’.” (p. 34)

– Cá pra mim, tenho que esta coisa estranha a que chamamos universo é porque a natureza acontece basicamente por meio de mudanças aleatórias que deram certo. Então, as coisas são na real um grande puxadinho. Emenda daqui, emenda acolá e vai.

“Num espírito semelhante, Nicholas Rescher, filósofo e historiador da ciência, cunhou o termo ‘cognitivismo copernicano’. Se a revolução copernicana original demonstrou que nossa posição no espaço nada tinha de privilegiada, talvez tampouco privilegiada seja nossa paisagem cognitiva.” (p. 34)

– O que seria irônico, não é mesmo, descobrir que logo, não pensamos tão bem assim.

“Faraday, a propósito, não fazia ideia da utilidade da eletricidade, e respondeu a uma pergunta sobre o possível uso de campos eletromagnéticos com a réplica: ‘Para que serve um bebê recém-nascido?’. Essa frase, aparentemente, ele tomou emprestada de ninguém menos que Benjamin Franklin, o primeiro a fazer essa analogia quando respondeu a alguém que lhe perguntou de que serviria voar, após testemunhar a primeira demonstração de balões de ar quente.” (p. 53)

– A pesquisa básica continua lutando por financiamento, mas assim também os museus de arte.

“Assim, nunca poderemos saber algumas coisas, e, veja só, isso não importa. Não podemos saber o valor exato de pi. Isso tem pouco efeito prático na geometria.” (p. 43)

– Por isto, Stuart: é exatamente porque se conhece o limite da praticidade que se pergunta sobre a serventia de voar.

“Prever ou visar a algum avanço específico é menos útil do que mirar numa compreensão mais profunda. Ora, isso pode parecer muita elucubração e perda de tempo, porém é quase sempre assim que a maioria dos grandes avanços na ciência e na tecnologia vem ocorrendo. Escavamos mais fundo em mecanismos fundamentais e só então fica claro como fazer as aplicações.” (p. 51)

– É preciso ressaltar que o autor é do campo da biologia, um campo onde isto realmente parece ser assim. Mas dá pra imaginar outros campos da pesquisa científica onde o empreendedorismo (com sua costumeira ganância) é que traz grandes avanços.

“Francis Crick, prêmio Nobel e um dos descobridores do DNA, aconselhava os cientistas a trabalhar naquilo sobre o que conversam no almoço, porque é isso que realmente lhes interessa.” (p. 80)

– Bom, este é o sonho de 11 em 10 pessoas: trabalhar no que tem interesse. E, como cientista que foi, devia estar ao par do viés do vencedor.

“W. B. Yeats advertia que ‘educação não é o encher de um balde, mas o acender de um fogo’.” (p; 160)

– Adorei esta metáfora!

“Envolver-se com detalhes de resultados de experimentos ou com sistemas ou com equações diferenciais faz tanto sentido quanto ficar envolvido com estruturas de acordes e harmonias numa composição musical.” (p. 116)

– Alguém mais cínico diria que a capacidade de gostar de coisa chata é distribuída de forma bastante democrática na humanidade.

 

Louvor da ignorância

“É muito difícil achar um gato preto num quarto escuro, adverte um antigo provérbio.” (p. 6)

– O surpreendente é alguém suspeitar da existência do gato!

Assim, não se trata tanto de que haja limites para nosso conhecimento; o mais crítico é que pode haver limites para nossa ignorância.” (p. 31)

– A reflexão mais bacana que já li sobre a ignorância foi Foucault falando sobre o axioma de Sócrates. Vale a pena você ler.

“Para um mau uso dos dados existem procedimentos de correção — precisam ser replicáveis, precisam responder ao escrutínio dos pares —, mas o mau uso da ignorância pode custar caro, é mais difícil de perceber e, portanto, mais difícil de corrigir.” (p. 45)

– Sobre o efeitos deletérios da ignorância em outra área – a da formulação de leis e políticas públicas – indico um livreto com 150 anos: O que se vê e o que não vê, de Frédéric Bastiat.

“As previsões na ciência podem ser de dois tipos. Um diz respeito ao rumo que ela vai seguir. O outro, igualmente importante para sua mecânica diária, se não mais, é sobre a capacidade dos cientistas de fazer previsões passíveis de serem testadas.” (p. 47)

– Um trabalho que pouco chega ao público leigo é a construção de métodos de investigação.  Você não tem ainda uma hipótese de trabalho se ela não puder ser testada decentemente. Como James Cameron disse que tinha Avatar 1, e depois o 2 na cabeça, mas não tinha ainda a tecnologia, assim muito do que se passa na cabeça de pesquisadores.

“Assim, a estratégia de Hilbert, e faríamos bem em aprender com ela, era predizer ignorância, e não respostas.” (p. 50)

– Predizer o que não se sabe requer um bocado de repertório.

“Eis aqui alguns exemplos de boas perguntas feitas durante a aula dele [de John Morgan, depto. de Matemática da Universidade de Columbia]:

Você acredita que há coisas em seu campo que não há como saber? Quais são?

Quais são os atuais limites tecnológicos de seu trabalho? Você consegue ver soluções?

Quais são suas dificuldades atuais?

Como você se refere àquilo que não sabe?

Qual foi o principal item motivador de seu mais recente pedido de subvenção?

Qual será o principal item motivador de seu próximo pedido de subvenção?

Há algo em que você gostaria de trabalhar mas não pode?

Devido a limitações técnicas? Dinheiro, recursos humanos?

Qual era o estado de ignorância em seu campo há dez, quinze ou 25 anos, e em que isso mudou?

Existem dados de outros laboratórios que não batem com os seus?

Com que frequência você tem palpites?

Você se surpreende com regularidade? Em quais situações?

Há coisas que acabam não sendo feitas?

Que perguntas você está gerando?

Que tipo de ignorância seu trabalho produz? (p. 82-83)

– Adorei estas perguntas. Pra mim, valeu o livro.

“Gosto dessa ideia de “vislumbre”. É como a noção de descobrir, porém ainda mais humilde; com frequência, é tudo que dispomos.” (p. 93)

– Ah, a excitação do tudo que há por descobrir.

“A explicação, e não a ignorância, é a marca registrada da estreiteza intelectual.” (p. 153)

– Volto a dizer: a ignorância douta.

“Uma questão ainda mais profunda, que à primeira vista vai parecer tola (é assim que as questões profundas frequentemente se disfarçam) (…).” (p. 133)

– Uma questão aparentemente tola tem aquela aparência clássica de ponta do iceberg.

“É aprendendo a aceitar a ignorância que um estudante se torna um cientista.” (p. 153)

– E o rito de iniciação exato deve ser o do orientador riscando todo o rascunho do estudante com a caneta vermelha.

“Na ciência, burro e ignorante não são a mesma coisa.” (158)

– Nem fora dela.

“Num presciente e notável documento de 1949, em ‘As universidades alemãs’, leem-se as seguintes linhas num relatório da Comissão para a Reforma Universitária da Alemanha: Todo palestrante numa universidade técnica deveria ter as seguintes capacidades:

(a) Enxergar além dos limites de sua disciplina. Em seus ensinamentos, fazer com que os estudantes tenham consciência desses limites, e mostrar-lhes que além desses limites entram em ação forças que não são mais totalmente racionais, mas que surgem da vida e da própria sociedade humana.

(b) Mostrar em cada assunto o caminho que leva além de seus estreitos confinamentos a horizontes por si mesmos mais amplos.” (p. 159)

– Primeiro você amplia o horizonte do aluno, cativa-o, e depois você corta suas asas na escolha do tema de seu mestrado/doutorado.

 

Teologia da ciência

“Não estou fazendo proselitismo da ciência como a única maneira legítima de compreender o mundo; ela não é. Muitas culturas viveram, e continuam a viver, muito felizes sem a ciência. Mas numa cultura cientificamente sofisticada como a nossa é tão perigoso desconhecê-la como ignorar as finanças ou a lei. Se é importante estar familiarizado com tudo aquilo que nos torna bons cidadãos, é igualmente importante reconhecer a ciência como interessante e divertida demais para ser ignorada.” (p. 20)

– Toda vez que leio ou ouço cientistas falando isto penso no quanto são educados. Eles omitem que a fatia do que concedem não ser explicado pela ciência é bem reduzida.

“Se existem estímulos sensoriais que estão além da nossa percepção, por que não existiriam ideias além da nossa concepção?” (p. 36)

– Entenda que esta frase na boca de um cientista é chique; na boca de qualquer outro é pseudociência e negacionismo.

“Imagine ser agraciado com um prêmio pelo que você não sabe: “Aqui está algum dinheiro pelo que você não sabe”. Qualquer outra pessoa no mundo está sendo paga pelo que sabe — ou alega saber. Mas cientistas são remunerados por sua ignorância.” (p. 59)

– Imagine você ter um emprego do qual não podem te mandar embora. Imagine um emprego no qual te remuneram por passar o dia na floresta. Imagine um emprego no qual você é pago pra cheirar lindos perfumes – e construí-los! Receber pelo que não se sabe é apenas um jeito de colocar as coisas em uma perspectiva que pareça bom.

“Uma das coisas surpreendentes que aprendi ao dar aulas sobre ignorância é que a ciência é notavelmente idiossincrática. Cientistas, embora ligados por algumas regras cruciais sobre o que será aceitável, adotam abordagens bem distintas de como fazer seu trabalho.” (p. 60)

– Me parece que a criatividade finds a way.

“A ciência não é exclusiva; ela não pertence a uma panelinha de intelectuais que falam uma língua secreta. Você é capaz de acompanhar um evento esportivo sem ter treinamento ou habilidades de atleta. Você pode apreciar um quadro ou uma sinfonia sem ter o know-how de um artista plástico ou de um músico.” (p. 115-116)

– Ela é menos exclusiva sobretudo quando aceita pagamento em pix pra curso que ensina a entendê-la.

 

Fato ou fake

“No que concerne à ciência, porém, há uma diferença importante. Os fatos servem sobretudo para dar acesso à ignorância.” (p. 18)

– Bom, se hoje fake news servem sobretudo aos fatos, imagine quão longe a população está de discutir ou consumir qualquer divulgação científica que seja.

“Mary Poovey escreveu um livro digno de nota, A History of the Modern Fact, no qual descreve como a ideia do fato se desenvolveu até chegar a ser a unidade respeitada e preferencial do conhecimento. Até alcançar essa ilustre posição, ele supostamente teria se livrado de toda dívida com autoridade, opinião, viés ou perspectiva. Isto é, o fato seria confiável porque supostamente surgiu de observações e medições sem vieses, sem ser afetado por interpretação subjetiva.” (p. 23)

– Então, com as redes sociais, o fato retornou à Idade Média.

“Fatos científicos são ‘desinteressados’ o que decerto não soa muito divertido e pode ser o motivo pelo qual eles se tornam tão desinteressantes.” (p. 23)

– Fatos até podem ser desinteressados, mas jamais as pessoas.

“E talvez, contrariamente à intuição, quanto mais preciso é o fato, menos confiável ele pode ser; uma medição precisa sempre poderá ser revista e tornar uma vírgula decimal mais exata; uma previsão definitiva tem mais probabilidade de estar errada do que outra, vaga, que admite vários resultados.” (p. 24)

– E é assim como as artes divinatórias sempre acertam, exceto a cartomante de Rebeca em Ted Lasso.

“Fatos realmente bem estabelecidos tendem a se tornar impermeáveis à revisão.” (p. 26)

– Quando o são, ocorre o alardeado “negacionismo”.

“Um desabrido arrebatamento com o progresso científico é bom para as relações públicas, mas ruim para a ciência.” (p. 49)

– Também é ruim para o trabalho do Judiciário. A divulgação científica na lógica capitalista das mídias faz tão mal pra ciência quanto a transmissão das sessões do Judiciário e ministro postando no Twitter/X. (Desabrido aqui está no sentido de imoderado, tempestuoso, hiperbólico.)

“Como é possível ter pensamentos tão afastados de nossa própria linguagem que acabam por dificultar sua formulação e causar frustração tanto ao enunciador quanto ao ouvinte no momento em que são expressos?” (p. 105)

– O autor explica que, pra estes pensamentos, existe a matemática. Mas eu gostaria de te dizer: se os tiver, não os expresse – sobretudo em redes sociais.

 

Vencer o bicho papão

“Porque, veja, o único e maior problema para compreender o cérebro é possuir um. Não que ele não seja inteligente o bastante. Ele não é confiável.” (p. 116)

– Gosto muito dos livros que li de Leonard Mlodinow pra entender como o cérebro que os habita gosta de pregar peças.

“Precisaria desafiar Orgo, como a química é chamada pelos estudantes, o grande monstro que distingue e separa os verdadeiros estudantes de ciência dos que não têm tanto interesse por ela. Ou era essa sua reputação.” (p. 143)

– A reputação permanece. Na minha faculdade a gente sai do estado de preocupação pro de surto nesta ordem crescente: Fundamentos de química, Química Orgânica, Bioquímica, Fundamentos de Farmacologia, Farmacologia aplicada, Química farmacêutica.

“Fui atraído para o laboratório de Gordon porque ele considerava o olfato parte da linha principal da neurociência. Nem todos compartilham dessa ideia. Naquela época o olfato era uma espécie de beco da neurociência. Como sistema sensorial, era tido como idiossincrático, de certa forma único no modo como funcionava, e portanto de difícil progresso. Era o oposto de um sistema-modelo. Entretanto, Gordon o via de maneira diferente. Treinado em fisiologia sináptica e neurofisiologia básica nos Institutos Nacionais de Saúde, ele negava que o sistema olfatório fosse especial. Acreditava que o olfato devia obedecer, e obedecia, às regras da neurociência, as conhecidas e as desconhecidas, assim como qualquer outro sistema cerebral.” (p. 150)

– Curiosa forma de elevar o status do olfato rebaixando-o ao status do trivial (trivial, aqui, no sentido de comum).

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024

FIRESTEIN, Stuart. Ignorância: como ela impulsiona a ciência. [Tradução: Paulo Geiger] São Paulo: Companhia das Letras, 2019. E-book.

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