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Contos maravilhosos – Lord Dunsany

Postado às 20:03 do dia 02/08/13

Um detalhe delicioso no livro revela a paixão que sua editora tem pelo ofício: na tipografia escolhida, a letra Q, maiúscula, tem a “perninha” se alongando por debaixo das duas letras que a seguem. Teria que fotografar para você entender a graciosidade desta fonte, que faz com que, páginas após páginas, vejamos uma diminuta espada cindindo as linhas. Numa obra onde a tônica é o inusitado, esse Q acrescenta um charme metalinguístico.

A editora Arte & Letra, de  Curitiba/PR, que também funciona como livraria e café, prima pelos títulos e pelas edições especiais, a exemplo da coleção artesanal que foi notícia na mídia especializada. Com este Contos Maravilhosos não foi diferente: capa, contra-capa e primeira página dão sensação de obra antiga, daquelas encadernadas em couro desenhado, como as que Mortimer, da Trilogia Mundo de Tinta, teria feito. Já o miolo reúne dois títulos de Lord Dunsany: The Book of Wonder (1912) e Tales of Wonder (The Last Book of Wonder) (1916). Lord Dunsany é pseudônimo do 18º Barão de Dunsany, Edward John Moreton Drax Plunkett (Londres, 1878-1957), escritor que teria influenciado de H. P. Lovecraft a J. R. R. Tolkien. Prolífico autor, foi membro da Royal Society of Literature e teve peças encenadas na Broadway, EUA. Junto com Edgard Allan Poe, de quem teria recebido influência, ajudou a fundar o gênero fantástico.

As duas obras traduzidas contêm contos estranhíssimos, sobretudo se pensarmos em best-sellers do gênero fantástico, onde tudo fica muito bem amarrado, muito bem explicado quando acaba a história. Com títulos longos e finais abruptos, eles causam impacto com a artimanha de juntarem narrativas insólitas numa Londres contemporânea do autor. Aliás, o convite de Dunsany é para que o leitor mergulhe em mundos novos, principalmente se estiver cansado de Londres.

Para nós, o convite é ler um gênero consolidado – “fantasia, horror, suspense e ficção científica: Weird Tales”, como menciona Roberto de Sousa Causo no prefácio à edição – , mas numa dicção ímpar, como se o próprio fantasma estivesse contando sua história. Para fãs, vale a pena a incursão.

Abaixo selecionei alguns bons trechos.

 

Paisagens

“O vento outonal que adornava o mundo, subindo as encostas da montanha, batia gélido em seu flancos nus.” (do conto A Noiva do Cavalomem, p. 20)

– Existe uma descrição da Escócia, no conto O Monarca do Vale, de Neil Gaiman, no livro Coisas Frágeis, que é praticamente igual a esta de Dunsany. Leia lá.

“É uma longa viagem de Londres até o Fim do Mundo […]” (do conto As Preces Imprudentes de Pombo, o Idólatra, p. 43)

– Hahaha, imagino que seja!

“Havia um pequeno arquipélago que ele conhecia, no lado errado do Mar de Sargaços; existiam cerca de trinta ilhas lá, ilhas desocupadas e comuns, mas uma delas flutuava. Ela a havia notado anos atrás, desembarcara e nunca contara a ninguém, mas a ancorara em silêncio com a âncora do seu navio ao fundo do mar, que naquele ponto era incrivelmente profundo, e fez da coisa toda o segredo de sua vida, determinado a se casar e se estabelecer lá caso algum dia se tornasse impossível ganhar a vida do modo costumeiro no mar.” (do conto O Saque de Bombasharna, p. 48)

– Não sei o que é mais comovente: uma ilha ancorada no fundo do mar ou um pirata querer se estabelecer numa ilha que flutua.

“A história não é contada como se conta um fato casual, nem é comentada de boca em boca, pois é contada somente em volta daquela grande lareira e quando a ocasião, a quietude do lugar, o mérito do vinho e o proveito de tudo isso parecem justificá-la na opinião dos cinco homens responsáveis […]” (do conto Por que o Leiteiro Estremece Quando Percebe a Chegada do Amanhecer, p. 132)

– Tá entendendo, né, santa? Só quando o mérito do vinho permitir, tá bem?

 

Lógica

“Já estava bastante escuro quando passou pelas torres de Tor, de onde arqueiros disparavam flechas de marfim em estranhos para que nenhum forasteiros viesse alterar-lhes as leis, que são ruins, mas que não devem ser alteradas por meros estrangeiros.” (do conto O Angustiante Conto de Thangobrind, o Joalheiro, p. 26)

– É uma lógica bem maternal: só a mãe pode falar mal dos filhos. Só um nativo pode falar mal do próprio país.

“Não era com corrente que o dragão a mantinha lá, mas por meio de um dos feitiços de outrora. Para uma pessoa a quem os recursos da imprensa diária serviam há tanto tempo, feitiços seriam algo já saturado […]” (do conto A Srta. Cubbidge e o Dragão do Romance, p. 55)

– Esses contos trazem uma lógica sensacional: a realidade é sempre muito mais inacreditável que a própria mágica.

“Pode-se confiar em suas habilidades; já vi uma sombra, em uma noite de ventania, mover-se fazendo mais barulho do que Nuth, pois Nuth é um ladrão por profissão. Sabe-se de homens que passam algum tempo em uma casa de campo e, mais tarde, enviam um negociante para conseguir por um bom preço alguma tapeçaria que viram no local, algum móvel ou um quadro. Isso é de mau gosto; porém, aqueles de trato mais requintado invariavelmente enviam Nuth uma noite ou duas após a visita.” (do conto Como Nuth Teria Praticado sua Arte Contra os Gnoles, p. 69)

– Também acho mau gosto chegar na casa de alguém, ver um objeto que você amou, fotografá-lo com a câmera do seu celular e depois pedir a senha do wi-fi pra buscar a marca do objeto no Google.

“Ser um deus e fracassar na realização de um milagre é uma sensação desesperadora; é como quando, entre os homens, tem-se vontade de soltar um espirro vigoroso e não se consegue espirrar […]” (do conto Chu-Bu e Sheemish, p. 88)

– Hahahaha, muito frustrante, muito frustrante mesmo.

 

Seres fantásticos

“[…] e logo se depararam com o pequeno e inofensivo mipt, meio fada e meio gnomo, soltando guinchos agudos de satisfação a orla do mundo.” (do conto A Provável Aventura dos Três Literatos, p. 37)

– Mais uma criatura pra sua coleção: um “mipt”.

“Da sacada da casa do pai na Prince os Wale´s Square, a sacada pintada de verde-escuro que escurecia a cada ano, o dragão ergueu a Srta. Cubbidge e estender suas troantes asas, e Londres ficou para trás como uma moda passageira.” (do conto A Srta. Cubbidge e o Dragão do Romance, p. 54)

– É o seguinte: na próxima vez em que cogitar ser raptada, que seja por um dragão.

“É preciso que se compreenda ainda que, aquele que puder obter em uma vasilha as lágrimas da Besta Gaudiosa e embriagar-se com elas, poderá levar todas as pessoas a lágrimas de alegria, contanto que permaneça inspirado pela poção a cantar ou a tocar alguma música.” (do conto A Demanda das Lágrimas da Rainha, p. 59)

– Bem útil seria ter uma Besta Gaudiosa no jardim de casa.

 

Chavões

“Lá ele e sua prisioneira derrotaram o Tempo ou jamais o encontraram […]” (do conto A Srta. Cubbidge e o Dragão do Romance, p. 56)

– É uma maneira adorável para substituir o tradicional “e viveram felizes para sempre”, não?

“E então disse que, se precisavam de uma demanda, ela ofereceria sua mão àquele que primeiro a levasse às lágrimas […]” (do conto A Demanda das Lágrimas da Rainha, p. 57)

– Algo extraordinário para um romance cortês: casa com a princesa quem a fizer chorar.

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro (C) 2013

 

DUNSANY, Lord. Contos maravilhosos. Tradução Gabriel Oliva Brum. Curitiba: Arte & Letra, 2011.

 

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