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O mundo da escrita – Martin Puchner

Postado às 08:23 do dia 08/02/23

É possível definir quais são os principais livros da história por critérios diferentes: os primeiros escritos em cada época; os que venderam mais; os mais traduzidos; os que duraram mais; os que influenciaram mais. Martin Puchner, professor de literatura comparada na Universidade Harvard, decidiu-se por este último. Da Ilíada ao Manifesto do Partido Comunista, em O Mundo da Escrita conhecemos quais foram as obras que representaram marcos na história capazes de transformar épocas.

Bibliófilos sempre estão atrás de novas elegias ao objeto de sua devoção. Por aqui já resenhei algumas e nunca me canso de ler mais outro livro sobre livros. Não Contem com o Fim do Livro permanece sendo o texto que sempre ancora nossa esperança de que estes volumes de papel jamais acabarão. A Biblioteca à Noite e Encaixotando Minha Biblioteca, do Manguel, nos prepara para quando nos despediremos de desta que é nossa companhia mais antiga. O Infinito em um Junco nos ensina que livros se perdem facilmente, por isto a importância de preservá-los. E o que então O Mundo da Escrita nos traz? A certeza de que textos encadernados, em vez de postagens ou vídeos ou artigos, é o que realmente deixa impressões nas pessoas.

Abaixo selecionei algumas das melhores partes.

 

Techné

“A leitura que a Apollo 8 fez do Gênesis também ressaltou a importância das tecnologias criativas por trás da literatura, inventadas em diferentes partes do mundo e reunidas apenas de forma gradual. Borman escreveu os versículos do Gênesis usando um alfabeto, o código escrito mais eficiente, criando na Grécia. Ele registrou as frases em papel, um material conveniente que se originou na China e foi para a Europa e a América através do mundo árabe. Ele copioi as palavras de uma Bíblia encadernada como um livro, uma útil invenção romana. As páginas estavam impressas, uma invenção chinesa que depois foi aperfeiçoada no norte da Europa.” (p. 17)

> Este livro abre com o episódio em que versículos da Bíblia foram lidos pela tripulação da nave espacial Apollo 8 na noite de Natal, ouvidos por mais de 500 milhões de pessoas na Terra. E escrevo esta resenha sob o alarido da ferramenta de IA chamada ChatGPT, que atordoa todos que supunham que a criatividade da escrita nunca pudesse deixar de ser uma atividade eminentemente humana. Pra onde os algoritmos empurrarão a literatura?

“(…) uma dolorosa lição a respeito da literatura: a sobrevivência só pode ser garantida pelo uso contínuo.” (p. 69)

> Pedras, argila, papiro, pergaminho, papel, disquetes, pen drives, disco rígido, nuvem – nada garante a permanência de livros. Curiosamente, a memória, um suporte tão efêmero quanto estes outros, garantiu a sobrevivência de muitos livros, tanto no mundo real, quanto em mundos distópicos da ficção científica.

“Os bibliotecários advertem que a melhor maneira de preservar a escrita dos caprichos das futuras guerras de formatos [eletrônicos] é imprimir tudo em papel. Talvez devêssemos esculpir nossos cânones em pedra, como fizeram os imperadores chineses. Mas a lição mais importante é que a única garantia de sobrevivência é o uso contínuo: um texto precisa permanecer relevante o suficiente para ser traduzido, transcrito, transcodificado e lido pelas gerações para persistir ao longo do tempo. É a educação, e não a tecnologia, que vai assegurar o futuro da literatura.” (p. 384)

> Lembro que nem a educação garante que textos sejam preservados, pelo menos tal como foram escritos. Veja as interferências do politicamente correto em obras como Tom Sawyer e Negrinha. Talvez educação com um pouco de humildade preserve livros, pois apenas quem se acha melhor que seus antepassados altera um texto de ficção.

“Talvez você esteja lendo estas palavras num livro impresso em papel ou numa tela, a menos que esteja usando óculos que, de algum modo, projetem palavras no seu campo de visão. Mas, a despeito do dispositivo que esteja usando, você irá virar páginas ou rolar um texto contínuo. Note a combinação de velho e novo. A maioria das pessoas parou de fazer rolar desde que o rolo de papiro deu lugar ao livro de pergaminho, mas agora, depois de dois milênios, esse movimento de rolagem voltou porque a infindável sequência de palavras armazenadas pelos computadores está mais próxima de um pergaminho contínuo do que de páginas separadas. Da mesma forma, as pessoas não escreviam em tabuletas havia centenas de anos, mas agora as vemos por toda parte. Quanto olho de soslaio, os usuários de tablets de hoje lembram escribas antigos sentados de pernas cruzadas com seus instrumentos de escrita no colo.” (p. 383)

> O que lamento é que tenha optado pelo scroll vertical. Papiro tinha scroll horizontal. Acho o gesto que o dedo deve fazer na tela, para baixo, muito feito. Para o lado seria mais elegante.

 

A escrita do passado

“Permitir o acesso ao passado foi a mais profunda consequência da escrita. Enquanto eram contadas oralmente, as histórias passavam por adaptações aos novos públicos e ouvintes, ganhando vida no presente. Uma vez captado na escrita, o passado perdurou. Para os versados nessa tecnologia difícil (…) ela [a escrita] trouxe de volta vozes de séculos, até de milênios atrás, vozes tão antigas que poderiam muito bem vir de antes do dilúvio. A escrita criou a história.” (p. 70)

> Nós sabemos que nem mesmo a fixação das histórias na escrita passa incólume ao tempo e as revisões. Por isto, sempre surpreende textos que venham se mantendo os mesmos há tantos séculos, mesmo décadas. Sobreviver ao ímpeto revisionista, que Puchner chama de fundamentalismo textual (leia abaixo) é digno de nota.

“O fundamentalismo textual se baseia em duas suposições contraditórias: uma sustenta que os textos são imutáveis e fixos, a outra reconhece que eles precisam ser interpretados, mas restringe a um grupo exclusivo a autoridade de fazê-lo. Examinando até que ponto o fundamentalismo textual se desenvolveu em quase todas as culturas alfabetizadas, passei a considerá-lo um efeito colateral inevitável da literatura, seu lado negro.” (p. 87)

> Não apenas obras religiosos passam por fundamentalismo textual. Muitas vezes, a própria ficção é mais cerceada no seu direito de existir tal como foi concebida que títulos com caráter explicitamente doutrinário.

“O aspecto mais fascinante da literatura sempre foi permitir aos leitores o acesso à mente dos outros, inclusive daqueles mortos há muito tempo.” (p. 146)

> Nem mesmo as tecnologias audiovisuais são capazes de nos proporcionar esta intimidades com a mente dos outros, ainda que os vejamos e os escutemos.

 

Outros usos para o papel

“Era difícil ver mulheres de alta linhagem [na corte japonesa por volta dos anos 1000], e quase impossível abordá-las. As barreiras que separavam as mulheres dos homens vinham em camadas: muralhas de pedra; cercas de madeira; venezianas de bambu; cortinas de tecido; e, finalmente, biombos de papel. (…) Se um homem se aproximasse demais, um leque, também de papel, protegeria o rosto da mulher.” (p. 132)

> A camada do sexo sempre foi usada para apartar mulheres.

 

Harry Potter

“De modo geral, no entanto, não recomendo ler ou assistir compulsivamente Harry Potter, pois ele se torna repetitivo – há sempre um novo professor para defesa contra as artes das trevas; outra câmara escondida; outra tarefa que Harry deve realizar, aparentemente abandonada por adultos.” (p. 374)

> Blasfêmia! Blasfêmia! Blasfêmia!

“Quando meus pensamentos voltaram a Rowling, percebi que talvez fosse demasiado fácil ridicularizar o merchandising fora de controle de Harry Potter, seu surgimento em todos os tipos possíveis de entretenimento, do cinema e do teatro à internet e aos parques temáticos. Afinal, Potter não nasceu na sala de reuniões de uma empresa nem foi imaginado por um departamento de marketing – foi inventado por uma autora desconhecida que, trabalhando por conta própria, criou um universo inteiro.” (p. 378)

> Tá perdoado.

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2023

PUCHNER, Martin. O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 456 p.

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