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Apologia da Polêmica – Ruth Amossy

Postado às 08:37 do dia 16/03/20

Custa-nos crer que a polêmica seja algo bom, tanta surra a polarização leva no debate democrático hoje em dia, como se a inexistência de polarização tornasse a democracia mais vibrante, quando o contrário pode ser verdadeiro. Pois é isso que a pesquisadora Ruth Amossy, da Universidade de Tel Aviv, busca fazer: elogiar o dissenso e mostrar seus benefícios. Não é um livro de política, bom que fique claro: é um livro de análise do discurso; logo, de linguística. Mas evidentemente conversa com o assunto político. Aliás, o corpus usado pela autora são de questões que mobilizam de fato o discursos público: o uso de burka na França, a exclusão de mulheres em ônibus em Israel, bônus e dividendos a altos executivos de empresas demissionárias. Dos três temas, nenhum é muito próximo do Brasil, mas como o corpus veio de discussões feitas em fóruns de internet, então aquele tom usual de bate-boca, lacração e mitada aproxima o livro da gente.

A crítica que faço ao livro é que ele vai muito rápido da análise do corpus linguístico para as conclusões sobre o papel social da polêmica. Conclusões que me soaram como extrapolações, ainda que críveis. Tanto que é possível ler a introdução e a conclusão do livro, pulando toda a análise de discurso, e continuar entendendo o fio da meada. O que precisamos guardar do livro são as funções que as polêmicas desempenham no espaço público:

  • assegurar a existência do dissenso;
  • persuadir pessoas;
  • tecer elos sociais (parece incrível, né? mas é);
  • e assegurar o protesto e o posicionamento.

Vamos ver se dou conta de ilustrar a tese da autora através de algumas citações recolhidas. O livro é meio cacete de ler, um martírio sem fim, ainda que traga insights ótimos.

 

Concordamos que discordamos

“De acordo com ele [Chaim Perelman, em O Tratado da Argumentação: a Nova Retórica], na era do pluralismo, os seres humanos só podem escapar da arbitrariedade e da violência buscando um acordo, não sobre o racional, mas sobre o razoável.” (p. 21)

“Pôr a sociedade sob o signo da razão é submeter a gestão não às demonstrações científicas que visam instituir uma certa verdade por meios racionais, mas a uma argumentação passível de estabelecer um acordo dos espíritos sobre o razoável.” (p. 22)

– Em suma: precisamos de mais diplomacia.

“De fato, frequentemente, a tese defendida na controvérsia está tão intimamente integrada à visão de mundo do interlocutor, do seu sistema de valores, do seu pertencimento ao grupo, do seu estatuto social… que ele não pode se afastar dele sem perda de identidade.” (p. 58)

– Por isso, devemos entender que há posições inegociáveis, sob pena de depressão ou loucura.

“[…] a polêmica pública tem como função autorizar a coexistência do dissenso.” (p. 133)

– A existência de polêmicas, portanto, é sintomática de ambientes democráticos.

 

Verdades circunstanciais

“Ele [Douglas Walton, em The New Dialetic: Conversational Contexts of Arguments] mostra que os argumentos não podem ser considerados corretos ou falaciosos em absoluto, mas apenas em função dos enquadres contextuais em que são utilizados.” (p. 25)

– Há algum tempo tenho defendido que se ensine epistemologia às pessoas. Não entendemos mais como o conhecimento é construído e isso radicaliza as pessoas, por exemplo, entre os devotos da ciência e os devotos das narrativas, sendo que o bom é não ser devoto de nada.

“Não é, portanto, porque o polemista experimenta ou provoca sentimentos de maneira irracional que ele não dá as razões, mas porque essas razões foram elaboradas alhures e existem numa memória discursiva sempre vivaz. Em outras palavras, em um debate público em que as posições antagônicas estão estabilizadas em determinado momento da história de uma sociedade, o discurso passional se apoia em blocos de argumentos que são a parte submersa, e contudo sempre presente, do iceberg. Nesse sentido, a inscrição não argumentada do sentimento não o priva de razão(ões).” (p. 161)

– É aquilo que soterramos que explode no debate público. Neste sentido, uma década de politicamente correto fez o que tinha que ser feito mesmo: mostrou quanto soterramos de preconceitos e reacionarismo. Agora é aguardar que o tempo construa novos icebergs.

 

O que está em questão

“Nessa perspectiva, Dascal (1998) propõe distinguir entre a discussão, em que a diferença de opinião sobre uma dada questão deriva de um erro que pode ser corrigido, permitindo, assim, uma solução do conflito de acordo com procedimentos aprovados na área em questão; a disputa, que está ancorada não em um erro, mas em uma preferência, um sentimento, uma atitude, sem que sejam endossados procedimentos aprovados de resolução, embora ela não conduza a um acordo – ela pode apenas se dissolver ou ser dissolvida; e, finalmente, a controvérsia, que ocupa uma posição intermediária, porque, mesmo que haja divergências profundas e ausência de procedimentos de resolução reconhecidos, os participantes defendem sua posição para fazer pender a seu favor a balança da razão. […] Isso significa que as discussões visam ao estabelecimento da verdade; as disputas, à vitória; e as controvérsias, à persuasão.” (p. 39-40)

– Agora você já entende que, na atualidade, quase tudo é uma disputa.

“Porque a polêmica, não se deve confundir, não é uma fala selvagem. Ela toma corpo num espaço democrático que a autoriza e a regula ao mesmo tempo.” (p. 65)

– Caramba, se nossas polêmicas não são falas selvagens, temo em conhecer o que sejam.

“Como modalidade argumentativa, a polêmica é, antes de tudo, uma arte da refutação. Ela combate, de maneira radical e sem compromisso, as teses adversas, retomando, reformulando, às vezes deformando, os argumentos mais ou menos estáveis que circulam no espaço público.” (p. 98)

– A pergunta é se haveria assuntos moralmente impolemizáveis – os há?

“Se a violência não faz a polêmica, podemos dizer inversamente (e contrariamente aos clichês) que a polêmica não necessita da violência verbal.” (p. 168)

– A violência, avisa Ruth Amossy, é um registro discursivo em vez de uma modalidade discursiva.

 

É o que tem pra hoje

“De fato, numa democracia pluralista, as diferenças e as tensões devem poder ser ditas, apesar da utopia de um consenso pacificador. Nela, os cidadãos são divididos por projetos de sociedade frequentemente inconciliáveis: um espaço de liberdade no qual o véu integral [burka] é permitido/um espaço de igualdade no qual o véu é proibido; um Estado onde reina uma mesma lei democrática/um Estado onde as leis divinas têm validade; uma sociedade que cuida para que haja uma justa repartição das riquezas/uma sociedade dominada pelas leis da economia liberal etc. […] Na complexidade dos jogos de poder e de interesses, dos estatutos desiguais, das tensões identitárias, das divergências ideológicas e religiosas, é ilusório pensar que todos os desacordos podem se regrados por uma discussão serena e bem-intencionadas.” (p. 203-204)

– Aceitar que sempre haverá grupos antagônicos é um sinal de maturidade democrática. Acreditar que a democracia traz paz é infantilização (ou endeusamento) da democracia. A polêmica, no entendimento de Ruth, é um colchão que amortece as disputas, que poderiam descambar pra violência.

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2020

(Se compartilhar, por favor, cite a fonte. É algo simpático e eu fico agradecida.)

AMOSSY, Ruth. Apologia da polêmica. Coordenação da tradução Mônica Magalhães Cavalcante. Tradução Rosalice Botelho Wakim Souza Pinto [et al.]. São Paulo: Contexto, 2017.

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