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A tipologia de Jung – Marie-Louise von Franz e James Hillman

Postado às 18:00 do dia 09/02/23

Tenho pra mim – e o digo por experiência própria – que as pessoas mais curtem Jung que de fato o entendem. Conceitos como anima e animus, inconsciente coletivo e as funções introvertida e extrovertida caíram tanto no senso comum que todos achamos que conhecemos Jung, quando a melhor hipótese é que, na verdade, não.

Este livro é um prova. Escrito em 1971, já recebeu duas edições no Brasil (1990 e 2016), o que mostra sua vitalidade, mas permanecendo sempre restrito aos cursos de psicologia e afins. Entretanto, é um comentário à tipologia de Jung feita por dois pesquisadores muito renomados, hoje referência a obras que vieram depois: Marie-Louise von Franz, contemporânea de Jung e com quem trabalhou, e James Hillman, que também conviveu com o mestre. Há livros, digamos, mais mastigados de tipologia jungiana que o citam como fonte, mas ele mesmo talvez seja pouco lido por parte das pessoas que mais consomem Jung que o estudam.

Uma das formas de “consumir” Jung se tornou muito popular nos últimos anos: são ferramentas usadas em Desenvolvimento Humano, principalmente por parte de Recursos Humanos e Coaching, que traçam as principais tendências de uma personalidades. Sou casada com um psicólogo que muitas vezes já aplicou tais ferramentas – mesmo eu já a usei -, sem que eu desconfiasse que o embasamento teórico por trás delas fosse a tipologia jungiana. Uma destas ferramentas, a 16 Personalidades, tornou-se um sucesso e usa as funções introversão e extroversão de Jung como um dos parâmetros. (A propósito, me submeti a ela em Nov/19 e meu resultado foi: INFJ-T, the Advocate.)

Então penso que vale a pena dar uma lida neste volume. Abaixo separei algumas melhores partes pra você.

 

Seduzidos por uma bela teoria

“Temos de alterar o material e usar alguns artifícios desonestos para forçar os resultados.” (p. 20)

> No trecho desta citação, Maria-Louise está contando como teve que modificar a análise que vinha fazendo das funções jungianas nos contos de fada. A razão de eu a ter trazido é pra comentar que, muitas vezes, em aromaterapia (minha área de trabalho), nos deparamos com lindas teorias que simplesmente são forçadas até o limite pra que não seja abandonada. É o que chamo de “sedução de uma bela teoria”. Pra mim, o livro Aromaterapia e Emoções, da Shirley Price, é o exemplo típico de uma ótima teoria, com uma ótima sacada, que não funciona pra tudo e, por isto, teve que forçar as propriedades farmacológicas dos OEs pra que elas também expressassem propriedades emocionais. Curiosamente, li nesta semana um tweet do Taleb que vem falar desta mesma coisa: “When the facts don´t fit the theory, the practionner doubts the theory, the theorist doubts the facts, and the skeptical empiricist doubts both facts and theory.” (link do tweet aqui) Creio que precisamos exercitar mais o empirismo cético.

“Todas as ideias básicas, mesmo as das ciências naturais, são modelos arquetípicos, mas funcionam se não as estendermos demais. Agem de maneira proveitosa se não forçarmos fatos que não se enquadram nelas. Por isso, acho que a teoria das quatro funções tem uma espécie de valor prático, mas não é um dogma. Jung, em seus livros, a considera claramente como um ponto de vista heurístico – uma hipótese através da qual se podem descobrir coisas.” (p. 84-85)

> Na aromaterapia, existe algo chamado Teoria do Grupo Funcional, que não recebeu este nome por parte de quem a formulou, aliás, mesmo porque quem a formulou nunca disse que se tratava de uma teoria, mas que ficou conhecida como tal por seus detratores: trata-se de se prever o comportamento de uma molécula e, no limite, do óleo essencial (OE) que a contém em quantidade, por sua função química. Pensar a farmacologia dos OEs desta forma formou milhares de aromaterapeutas de renome no mundo todo desde o livro Aromathérapie Exactment de 1990 de Pierre Franchomme, Roger Valois e Daniel Pénoël. Em 2019, Robert Tisserand e outros pesquisadores fizeram uma dura, duríssima crítica a ela. Na minha opinião, pesaram a mão e deixaram de ver este aspecto – uma hipótese a partir da qual se pode descobrir coisas. Tampouco com isto eles concordaram…

“Assim, o que é curioso, encontramos essa mistura de termos em que sentimento, sensação e intuição ficam indistintos. Essas diferenças não podem tornar-se tão claras quanto a mente desejaria, visto que a linguagem segue, não a verdade lógica, mas sim a verdade psicológica.” (p. 136)

> Muito se debate sobre linguagem neutra. Particularmente, não vejo problema nenhum no todes, acho até simpático. Mas a língua portuguesa não será neutra. E não me animo a debater a realidade psicológica por trás disto, mesmo porque há exemplos de línguas mais neutras, como um inglês, e realidades psicológicas que se parecem exatamente como a dos falantes de português.

 

A minoria é intolerante

“Pessoas suscetíveis são apenas pessoas tirânicas, pois todas as demais têm de se adaptar a elas, sem que elas tentem adaptar-se às outras.” (p. 24)

> Olhe, Taleb (incrível eu o citar 2x neste resenha) diz a mesmíssima coisa em Arriscando a própria pele. Se você soltar algo assim dentro de uma universidade pública, te expulsarão; dentro de um grupo de mães com crianças pequenas, te lixarão; nas mídias sociais, te cancelarão. Eu sinceramente desconfio que o politicamente correto é que tá criando massas ressentidas cada vez maiores nas democracias… Mas, então, leio a continuação da citação acima:

“Mas as pessoas bem adaptadas em geral ainda têm uma espécie de infantilidade, um ponto sensível sobre o qual não se pode dialogar com elas de maneira razoável; temos de agir como se estivéssemos lidando com tigres e elefantes.” (p. 24)

> Ou seja, quem não se adapta quer quebrar a democracia e quem se adapta quer criar uma ditadura pra defendê-la, hahaha. Vamo botá todo mundo em análise e ver se melhora um pouco.

 

“É preciso abandonar a ilusão de que se pode produzir alguma coisa perfeita no plano humano.” (p. 107)

> Sim, sim, isto!

“Não são os conteúdos que uma pessoa carrega em seu inconsciente o elemento que lhe revela o caráter, pois cada um de nós tem sua parcela de terrorista, de assassino e de pervertido – o caráter é revelado pela maneira como lidamos com esses conteúdos.” (p. 206)

> Pelo fato de hoje quererem cancelar o inconsciente – e o pensamento não verbalizado – estamos estressando o tigre em vez não o gatinho que habita em nós. Infelizmente, ninguém mais aceita que um cão ladre; silenciado, ele acabará mordendo.

“Há alguns anos, a psicoterapia tinha como principal alvo os objetivos extrovertidos do sentimento em ermos de ajustamento aos valores da realidade exterior; atualmente, ela se volta para as metas introvertidas de ajustamento aos valores interiores. Houve uma pronunciada conversão do sentimento extrovertido para o introvertido. Antes nós nos ajustávamos ao homem inferior, com seus sintomas e exigências emocionais em defesa da harmonia no emprego, no casamento, na escola e na sociedade. Hoje, rejeitamos os apelos de integração com a sociedade em benefício do ajustamento a imagens, afetos e ideias subjetivos.” (p. 211)

> Pra mim, é inevitável pensar que esta mudança ocorreu devido ao enriquecimento geral dos povos (disclaimer: ainda há pobreza, desigualdade, blá-blá-blá) ao longo de todo o século XX, bem naquele estilo de pirâmide de Maslow: depois que as necessidades básicas estão atendidas, vamos começar discutir “banheiro neutro” (referência ao Pondé, que sempre diz que discutir banheiro neutro é problema de gente rica).

 

Perguntas certas

“Do ponto de vista prático, é mais proveitoso, quando se quer achar o tipo de alguém, perguntar-lhe: qual a sua maior aflição? Onde está o seu maior sofrimento? Onde sente que vai de encontro a um obstáculo e padece como se estivesse no inferno? Istto em geral aponta para a função inferior.” (p. 33)

> Bom, o papo deste parágrafo é sobre os conceitos de função superior – que tá acessível à consciência  – e função inferior – que representa o inconsciente sempre arrumando um jeito de emergir. Mas o que eu queria notar é como Jung está entranhado na nossa cultura sem que o desconfiemos. Veja que na nova economia, a primeira coisa que um startupeiro dirá de sua empresa é que ela resolve determinado tipo de dor no seu consumir. “Qual é a dor?” virou senha pra trabalhadores descolados. Felizmente, quem lhes responde qual é a dor são seus clientes – em vez de candidatos a vagas em suas empresas. Toda santa vez que você perguntar a um candidato “qual é seu defeito” (outro modo de perguntar “qual é sua dor”) ele responderá: sou muito perfeccionista. Então, “qual é a dor” só funciona se a pessoa estiver pagando por algo, seja por uma sessão de psicoterapia, seja por um produto ou serviço. Fique esperto com isto.

 

A fauna

“Outro aspecto da intuição inferior do tipo sensação extrovertida é uma repentina atração por antroposofia ou por alguma outra mistura de metafísica oriental, em geral de tipo bem transcendental. Muitos engenheiros realistas assumem tais atividades com um espírito totalmente desprovido de crítica e se perdem nisso. Isso acontece porque a sua intuição inferior tem um caráter arcaico. É curioso que em suas escrivaninhas seja comum encontrar textos místicos, mas bem de segunda classe. Se indagados por que leem tais livros, eles dirão que é apenas uma tolice, mas que os ajuda a dormir. A sua função superior está negando a inferior. Contudo, se se perguntar aos Antroposofistas de Dornach quem forneceu dinheiro para os seus prédios, descobrir-se-á que ele veio justamente desses tipos perceptivos extrovertidos. A nação americana tem um grande número de tipos sensitivos extrovertidos e é por isso que tais movimento estranhos florescem especialmente bem nos Estados Unidos, num grau maior do que na Suíça. Em Los Angeles, podem-se encontrar quase todas as espécies de seitas fantásticas.” (p. 44-45)

> Ah, meu deus, como não gargalhar com este trecho?! Eu uso uma expressão meio pejorativa pra descrever certos tipos de pessoas que são atraídas pelas terapias alternativas: a fauna. Sempre tem um doido de pedra. Você também os conhece, né? Durante a pandemia de covid19, o fato de tantos e tantos médicos e pesquisadores terem se rendido à cloroquina se explica em parte por esta função intuitiva inferior de Jung (a outra parte acreditou porque, bem, ninguém sabia o que estava acontecendo, mas tão logo as evidências mostraram a ineficácia do medicamento, abandonaram a ideia). Quando eu vejo gente estudada fazendo extrapolação científica, bom, agora vou pensar que é um tipo sensitivo extrovertido sendo acometido por sua função inferior intuitiva.

“Mas não se deve fazer observações depreciativas ou duras quando as pessoas trazem para fora a sua função inferior. É um fato terrivelmente sensibilizante.” (p. 47)

> Ops, too late!

“O caminho oriental é um desvio para longe da diferenciação do sentimento pessoal, que é substituído pela gentileza e pelo autocontrole coletivos.” (p. 228)

> Aqui, os autores comentam sobre a prática de se buscar artes orientais como meditação, ikebana, etc pra se fugir da difícil missão de encarar os próprios sentimentos. Gentileza e autocontrole coletivos são tão distantes do nosso “afeto” ocidental que duvido que sequer compreendamos quando japoneses dizem que não temos maturidade coletiva.

 

Distinções semânticas

“Em resumo, a emoção abarca o afeto, o sentimento e mais alguma coisa; o sentimento é uma atividade parcial associada principalmente com a consciência, e o afeto é quase por inteiro uma expressão fisiológica.” (p. 137-138)

> Mas que interessante isto ter sido escrito em há 50 anos atrás e Leonard Mlodinow nos trazer, hoje, o conceito de afeto central.

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2023

FRANZ, Marie-Louise von; HILLMAN, James. A tipologia de Jung: ensaios sobre psicologia analítica. Tradução Adail Ubirajara Sobral, Ana Cândida Pellegrini Marcelo, Wilma Raspanti Pellegrini. São Paulo: Cultrix, 2016. 236 p.

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