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A Alma Humana – Karl Konig

Postado às 16:52 do dia 05/01/21

A Alma Humana, de Karl König, é um livro clássico dentro da psicologia antroposófica. Escrito nos anos 1960, quando tanto as bases da psicologia comportamental quanto da analítica passavam por questionamentos, faz uma reflexão dos motivos pelos quais o conceito de alma deve ser incorporado com naturalidade à psicologia e como Rudolf Steiner o concebeu.

Médico nascido em Viena em 1902, Karl König dedicou-se à educação e cuidado de crianças, jovens e adultos com demandas especiais. Em 1939, fundou as comunidades e escolas Camphill, que funcionavam como centros residenciais, educacionais e de terapia social e acolhiam de forma digna pessoas que, de outra forma, iriam para as  instituições terapêuticas convencionais. Faleceu em 1966, na Escócia, e foi autor de inúmeros livros que hoje são considerados clássicos na formação em Antroposofia.

A Alma Humana esteve esgotado na editora João de Barro, mas parece que ganhou uma reimpressão. De toda forma, este título e muitos outros do autor estão disponíveis em inglês. Algo interessante sobre este livro, se for o primeiro que você lerá de Antroposofia, é que ele foi concebido para refutar conceitos e afirmar a validade de outros, numa época em que talvez as comunidades médicas ocidentais ainda não aceitassem a Antroposofia de forma tão abrangente quanto hoje. Escrito nos anos 1960, quando o pós-estruturalismo chacoalhava as ciências humanas, quando a psiquiatria se afastava definitivamente da psicanálise e quando a medicina convencional abandonava a etiologia biográfica em favor de uma etiologia funcional, ele intenta demonstrar a pertinência do conceito “alma humana” dentro da psicologia moderna.

Nós estamos (infelizmente) acostumados à aridez da linguagem de textos científicos. A indústria da divulgação científica conseguiu nos convencer que papers de 20 páginas possuem mais valor que livros de  200 páginas e qualquer discussão teórica que não cite artigos científicos, mas livros, acaba nos parecendo pueril ou amadora. Então é esta impressão que tive de A Alma Humana: uma discussão datada e inocente sobre psicologia. Discutir o que é alma, espírito, consciência e sonho com uma intenção séria, mas sem o formato sério (de uma tese), torna este livro, ao leitor da segunda década do século XXI, uma curiosidade – a menos que ele seja um estudante de Antroposofia.

Max Weber definiu o que seriam as racionalidades médicas, sistemas que visam explicar o adoecimento e a saúde e que também incorporam um doutrina médica, métodos diagnósticos e terapêuticos. A Antroposofia é considerada uma racionalidade médica completa, assim como a Medicina Tradicional Chinesa, o Ayurveda, a biomedicina e a homeopatia. Quando adentramos em racionalidades médicas, com a exceção da biomedicina (que é uma consequência da aplicação do método científico cartesiano e baconiano à saúde e ao adoecimento humanos), não podemos esperar “comprovações”. Se você começa estudar os meridianos por onde a energia chi flui, você aceita isso; se você começa estudar os doshas pitta, vata e kapha, você aceita isso; se você começa estudar os miasmas na homeopatia, você aceita isso. E da mesma forma devemos aceitar o conceito de alma humana e tantos outros dentro da Antroposofia. (Nós também “aceitamos” o método científico, mas deixo esta discussão pra outro momento.)

Assim, a leitura deste livro não precisa ser encarada como a apresentação de conceitos que “são”, mas que “estão” dados dentro do campo da psicologia antroposófica. É possível refutá-los de um sem número de maneiras, mas eles devem ser entendidos dentro do campo da Antroposofia. Saiu dele, os argumentos se tornam bem frágeis.

De todas as racionalidades médicas, a Medicina Antroposófica e a Homeopatia me parecem as mais peculiares. Isso porque a construção da MTC, do Ayurveda e da biomedicina não dependeram apenas da cabeça de 1 única pessoa, mas a Antroposofia nasceu basicamente da cabeça de Steiner e a Homeopatia da de Hannemann, ainda que milhares de profissionais de saúde as tenham elaborado na sequência. Depois que as “grandes narrativas” foram implodidas pela pós-modernidade, olhar pra essas duas grandes narrativas, a da Antroposofia e a da Homeopatia, de forma… hum… deixa eu achar o adjetivo… embevecida, parece-me inapropriado. E não estou aqui desmerecendo nem uma nem outra, sobretudo porque sou paciente de homeopatia e sou uma admiradora da Antroposofia. Mas se as muitas matérias-médicas da Homeopatia me deixam perplexa com o grau de acuidade dos sintomas de cada substância, catapultando meu ceticismo diante dessas evidências, não observo o mesmo em relação à clínica antroposófica, embora eu também já a tenha experimentado.

Seja como for, este livro rende bons insights, passagens sobre as quais eu bem que gostaria de discutir pra compreendê-las melhor. A leitura de textos de Antroposofia se passa como a leitura de textos psicanalíticos: se você não entende o jargão, você não compreende o texto. E creio que neste livro houve muito mais parágrafos que não apreendi, que outros que eu tenha entendido totalmente. Abaixo selecionei alguns trechos. Me diga o que achou deles depois nos comentários.

 

Duras críticas

“O que hoje é descrito como tratamento psicanalítico é, frequentemente, uma forma de despersonalização medíocre do paciente. Em geral, é muito difícil uma pessoa se recuperar desse insulto. O domínio da noite [o inconsciente] não pode ser acessado pela luz elétrica do intelecto moderno. É necessária uma abordagem bem diferente.” (p. 18)

– Difícil será sobreviver deste insulto! Hahaha Ok, mas concordamos que comparar o intelecto à luz elétrica rendeu uma frase estupenda, não?

“A Psicologia moderna padece de uma grande falta de imaginação de seus representantes. Os psicólogos hoje em dia moram em ruas agitadas, onde passam carros, ônibus e bondes; como os demais cidadãos, eles não participam mais do ir-e-vir das estações, do crescer e minguar da lua, do amanhecer e entardecer do dia. Suas experiências são limitadas às pessoas e às coisas construídas por elas; e assim, perdem o fundamento natural de toda a existência.” (p. 47)

– Joel Birman, psicanalista brasileiro, professor titular da UFRJ, tem uma palestra ótima no You Tube, antiga até, na qual ela comenta, sobre a evolução da psicanálise, que no começo todos os psiquiatras queriam secretamente ser psicanalistas, mas com a crescente medicalização da sociedade, e depois que a psiquiatria se afirmou como psicofarmacologia (ele usa o termo psiquiatria biológica), hoje são os psicólogos que tomam psicofármacos pra exerceram suas profissões, assim como enviam seus pacientes aos psiquiatras pra que estes estejam medicados o suficiente pra fazerem psicoterapia. Ou seja, o mundo não pode curar o mundo.

 

Dignidade e graça

“Será útil para a compreensão da consciência, da alma e do inconsciente considerar dois atributos humanos: a dignidade e a graça. Podemos dizer que a dignidade é uma qualidade da consciência, enquanto a graça é atributo do inconsciente.” (p. 18)

– Gosto muito do conceito de graça, de receber uma graça. Gosto particularmente dele porque coloca nosso rabo entre as pernas, nós, habituados a achar que controlamos qualquer coisa que seja.

 

Choro e riso

“A causa do pranto e do riso é o desequilíbrio na relação com o mundo. Quando este se torna forte demais e parece nos dominar, ocorre o choro; quando, por outro lado, o mundo se torna frágil, pequeno e débil, o resultado é o desencadeamento do riso. Ambos, pranto e riso,  nos são dados para que possamos retomar o equilíbrio perdido no contato com a realidade. São como remédios; restauram a condição que havia perdido sua proporção.” (p. 23}

– É contraintuitiva esta explicação e estamos diante de um daqueles trechos em que são necessários conceitos antroposóficos pra entender direito. Mas a ideia é que “semelhante cura semelhante” (homeopatia) e por isso que o choro é capaz de curar a tristeza e o riso é capaz de curar a estúpida alegria. Ou seja, quando o ambiente estiver pesado demais, nada de fazer piadinhas pra amenizar o clima; talvez seja melhor contar algo mais triste ainda pra ver se o povo garra chorar de vez.

 

Ira

“Quando lemos este trecho, imediatamente voltamos à declaração de Plessner de que choramos e rimos diante de uma situação para a qual não encontramos outra resposta. O mesmo é verdade para o surgimento da ira. Ela ocorre no momento em que somos incapazes de mudar uma situação ou intervir em algum acontecimento que sentimos não poderia acontecer. A ira não é sinal de poder e força, mas expressão de impotência.” (p. 71)

– Dá pra concordar com isso, mas talvez a palavra “raiva” fosse mais apropriada, pois penso na expressão “ira dos deuses”, a “ira de Deus”. Nesses casos, a ira é uma reparação, e não uma impotência. Raiva talvez seja uma palavra melhor pra descrever o que humanos sentem quando estão impotentes.

 

Consciência

“Ao descrever o fluxo contrário dessas duas correntes, Rudolf Steiner declara: Vocês compreendem o enigma da consciência quando entendem que a corrente do desejo, amor e ódio lhes vem do futuro e encontra a corrente dos conceitos, vinda do passado, em direção ao futuro. A todo o momento, vocês vivenciam o embate das duas correntes. Se o momento presente representa este encontro na alma, você podem imaginar que as duas correntes chocam-se; isto acontece na esfera da alma. A consciência é a colisão das duas correntes. (p. 148)

– Gosto desta imagem: do futuro, vêm os desejos; do passado, os conceitos. A consciência é o choque entre ambos e este choque, o livro explica, acontece na alma. Basicamente, a alma é um campo de batalha, e por isso não pode ser sinônimo de espírito.

 

Sonho

“O sonho é um estado sem profundidade.” (p. 171)

– O último capítulo do livro trata da consciência onírica e dos 3 tipos de sonhos: pequenos, importantes e grandes. Existe uma explicação de que os sonhos são acontecimentos espelhados que a alma observa de fora do corpo. Mas sinceramente isso não é o mais interessante. O mais interessante é nos darmos conta de que o sonho é um estado raso, tão raso, que é a própria razão da realidade ser subvertida nele, pois ela não está ancorada em nada. Bem interessante.

“Com relação à interpretação, podemos dizer que os sonhos ‘pequenos’ dificilmente precisam de qualquer explicação, eles são um conglomerado de desejos, lembranças, intenções e emoções misturadas a alguns pensamentos. Os sonhos ‘importantes’ são os que precisam ser interpretados. Eles tentam explicar as lembranças, eventos e intenções do indivíduo com o auxílio de sinais e símbolos. Sua interpretação e entendimento podem ser muito valiosos.

“Os sonhos ‘grandes’ estão além de qualquer intepretação. Eles falam por si mesmos. Assim como uma obra de arte importante nunca deveria ser interpretada, também não se deveriam interpretar os sonhos ‘grandes’. Eles são um presente do espírito ao indivíduo – tal como os anjos que apareceram a Zacarias e anunciaram o nascimento de João, ou o Arcanjo Gabriel quando falou a Maria, ou como Daniel quando teve a visão do Homem Cósmico. Tais sonhos são acontecimentos; acompanham a pessoa por toda a vida e podem continuamente lhe dar força e confiança.” (p. 174)

– Por esta régua, nunca tive sonhos grandes. As revelações que tive, miseravelmente as tive usando a luz elétrica do intelecto. E você?

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2021

 

KÖNIG, Karl. A alma humana. Tradução de Ana Cristina Corvelo e Sonia Loureiro. São Paulo: João de Barro Editora, 2006.

 

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