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Dor e pensamento: psicossomática contemporânea – Marilia Aisenstein

Postado às 23:20 do dia 27/07/20

Existe uma escola, chamada psicossomatista, que se refere especificamente à escola de psicanálise de Paris. O que difere esta escola das demais práticas psicanalíticas ou de outras psicologias que se debruçam sobre as relações entre o adoecimento físico e o adoecimento psíquico é que, no primeiro caso, o foco está na compreensão do fenômeno psicossomático e, no segundo caso, no pressuposto de se analisar aquela relação dentro da teoria psicanalítica.

Este é um dos livros mais difíceis que já li, mesmo eu já tendo tido algum tipo de instrução em psicanálise (bem pouca instrução). Então, embora não muito, alguma coisa até que fez sentido na leitura. Há tempo venho me debruçando sobre o tema da psicoaromaterapia de forma mais investigativa, ou epistêmica, digamos assim. Me interessa, também, entender por que, dentro da aromaterapia (e das terapias integrativas de um modo geral), aceita-se tão facilmente que a origem de todo adoecimento físico esteja no psiquismo. No Brasil, nomes como Louise Hay, Cristina Cairo e Rüdiger Dahlke foram lidos por milhares e milhares de pessoas e certamente formaram o que terapeutas integrativos entendem por psicossomática.

Até que alguém me apresentou as hipóteses desta escola de psicanálise de Paris. Duas frases me chamaram bastante a atenção: 1) que toda doença é psicossomática; 2) que não existe algo como “diga-me onde dói e te direi quem és”. A primeira frase, comprei-a no ato. Da mesma forma que um dia me convenci no ato que o terreno é tudo (falando em Béchamp x Pasteur) quando ouvi sobre isso, penso que minha própria experiência já me dizia que toda doença é psicossomática, e então o que ocorreu é que alguém veio e colocou isso em palavras. Por isso comprei rápido. Já a segunda frase, esta ainda me causa alguma dúvida, sobretudo por que vejo terapeutas usando a metodologia do “diga-me onde dói e te direi quem és” com muito êxito clínico. Então, tenho mais dificuldade de crer que esta metodologia seja falha, ainda mais porque penso que ela conversa com outro mistério cognitivo pra mim, que é a Teoria das Assinaturas. Digo mistério porque eu vejo que funciona, mas racionalmente não sei explicar por quê.

Este livro da psicossomatista Marilia Aisenstein é pra iniciados. Ela vai fundo nos conceitos de Freud, como numa discussão acadêmica entre pares, onde também cabe o compartilhamento de algumas angústias sobre seu fazer, algo que vivenciamos muito quando atendemos e queremos entender o paciente à luz de uma teoria qualquer que nos embase. Se não se reflete sobre os conceitos mais intrigantes de Freud, aproveita-se pouco o livro. Certamente, eu o aproveitei muito pouco.

Entretanto, um ponto me pareceu bastante, realmente bastante interessante: quando a autora diz que, em vez de uma teoria psicossomática do adoecimento, propõe-se uma teoria somatopsíquica para o adoecimento. A ideia desta inversão é mostrar que a pulsão nasce do corpo pro psiquismo, que não dá conta de elaborá-la, em vez de do psiquismo pro corpo. Já fui comentar este ponto com meu guru pra assuntos de psicanálise francesa e ele já me disse que isso também já foi rediscutido no meio. De forma que, quando eu aprender o que isso significa, já estarei atrasada na discussão!

Bom, em vez de eu escrever, deixarei o livro falar por si através de algumas citações que recolhi pra esta resenha. Mas, sobre as citações agrupadas em torno dos termos “somatopsíquico” e “linguagem”, não consigo comentá-las. São como aquelas paisagens que ainda não podem ser descritas.

 

Somatopsíquico

“Preciso, nesse momento, posicionar-me contra uma ideologia que, sob o pretexto de pureza analítica, confere à mente uma onipotência soberana e deixa de lado o corpo biológico.” (p. 77)

[…] ‘que saúde psíquica é, também, pode ficar doente (…)’.” (p. 78)

“Em nenhuma simbolização no divã pode ser esquecido que a doença evolui à parte e por conta própria. Por fim, a abordagem psicossomática, na minha opinião, quer apenas significar que damos conta imediatamente do soma, porque sem ele não há muitas elaborações nem fantasias.” (p. 80)

“Como já escrevi, mas desejo repetir, o pensamento psicossomático vai muito além do questionamento etiológico. A eclosão de uma doença, em determinado momento da vida, é o resultado de inúmeros fatores, entre os quais os fatores psíquicos.” (p. 103)

“Minha escolha do termo somatopsíquico, em vez de psicossomático, baseia-se na direção ascendente que vai do corpo ao psíquico, seguindo um imperativo de complexidade.” (p. 116)

“A essência da pulsão é definida por sua origem em fonte internas de excitação que se manifestam como uma força constante. Freud pressupõe que sejam ‘ biológicas’.

“Seu segundo pressuposto, não menos importantes: as pulsões forçam o sistema nervoso do ser humano a abandonar sua intenção ideal de manter a excitação afastada.” (p. 119)

“A exigência, portanto, vem do corpo, que impõe ao psiquismo uma ‘ soma de trabalho’ mensurável e, eu acrescentaria, indispensável à sua proteção, logo, à sua sobrevivência. André Green propõe uma bela formulação: ‘ O psiquismo é trbalhado pelo corpo, trabalhado no corpo. O corpo exige do psiquismo um labor (elaboração vem de labor). […]

“Essa perspectiva me parece fornecer um esclarecimento um pouco diferente sobre as desorganizações somáticas, que, a partir de então, poderiam ser entendidas como consequências de uma impossibilidade do psiquismo de decodificar, traduzir as exigências do corpo.” (p. 120)

“A energia vem do corpo, mas a representação vem da percepção.” (p. 125)

 

Linguagem

“Durante uma entrevista concedida por Wladimir Nabokov a um jornalista que lhe perguntou em que língua pensava, uma vez que falava sete línguas, o escrito respondeu com uma inteligência admirável: ‘Não sei. Acho que penso em imagens´.” (p. 104)

“A imagem, em seu encontro com a linguagem, é um material essencial para a vida anímica […]”. (p. 104)

“[…] as peculiaridades do trabalho analítico com pacientes nos quais a associatividade foi abolida e a linguagem não é mais metafórica, tornando-se, às vezes, mais próxima da descarga e da ação do que sendo portadora da elaboração. Quais são, então, nossas vias de acesso aos materiais inconscientes?” (p. 107)

“O tratamento psicanalítico é um ‘tratamento pela palavras’ (talking cure), mas o enquadre e a regra da livre associação apostam ao mesmo tempo na mobilização da palavra e em sua desestabilização. Isso poderia nos levar a uma reflexão sobre o chiste e a poesia, mas o que me interessa aqui é a representação. ‘A conversão do aparelho psíquico em aparelho de linguagem’, como [André] Green escreve, implica a mutação da pulsão em representação, sendo uma de suas exigências.” (p. 133)

“[…] ‘interpretar’: construir, inventar escutando o inaudível. (p. 176)

“Toda transcrição envolve não só a tradução, mas também interpretação.” (p. 212)

“Acredito que não escapamos do fato de criar, a partir da clínica, ‘ ficções’. ‘Ficção’ não quer dizer ‘falso’, mas implica a ideia de uma distância necessária. A meu ver, este trabalho de transformação está ligado ao próprio fato narrativo. A questão é saber como essa passagem obrigatória por uma ou mais ficções pode também nos ajudar, no trabalho clínico cotidiano, a encontrar alguma coisa de uma ‘verdade’ que diga respeito ao paciente. Poderíamos pensar que, graças às nossas ficções, que traduzem e transcrevem algo íntimo que o paciente não sabe pôr em palavras, nós os ajudamos a criar seu próprio romance?

“A questão de pôr em palavras me leva a refletir sobre outra ‘tradução’ que se efetua na própria pulsão, uma vez que se trata de ‘transcrever’ do somático para o psíquico. De acordo com a definição freudiana da pulsão, o corpo impõe um trabalho ao psiquismo. A relação entre o somático e o psíquico é uma relação de ‘delegação’.” (p. 215)

“No Discours d ´un philosophe à un roi, Diderot fala da tradução, e suas palavras me parecem próximas da minha ideia do que seja um trabalho psicanalítico: ‘Só existe um meio de traduzir fielmente um autor de língua estrangeira para a nossa língua: ter a alma bem penetrada pelas impressões recebidas e só estar satisfeito com a tradução quando ela despertar as mesmas impressões na alma do leitor… mas isso sempre é possível?” (p. 217)

 

Miscelânea

“Para Freud, ‘quase parece como se análise fosse a terceira daquelas profissões impossíveis quanto às quais, de antemão, se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo.´” (p. 24-25)

– Gente, não é uma frase genial? É a decepção simultânea com 3 áreas onde muita fé tem sido colocada: medicina, educação e governos.

” […] um primeiro encontro só ganha existência porque o segundo lhe dá sentido.” (p. 48)

– Não existe essa de maldição do primeiro encontro se nunca existir um segundo, sacou?

“Um tabu é um tabu, sua transgressão podendo levar à desorganização identitária e à morte.” (p. 101)

– Da mesma forma o trauma. Traumas são uma espécie de tabu individual.

“O ser humano vive em busca de sentido e representação.” (p. 138)

– Vivemos. Mesmo o sem sentido tem algum sentido.

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2020

(Se compartilhar ou citar, mencione a fonte. É simpático e eu agradeço.)

 

AISENSTEIN, Marilia. Dor e pensamento: psicossomática contemporânea. Tradução Denise Dresch. Porto Alegre: Dublinense, 2019.

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