Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > não-ficção > Rápido e Devagar – Daniel Kahneman
Depois de você ter sobrevivido às 607 páginas deste catatau, possivelmente vivenciará, na prática, a teoria: se lembrará de que sua intuição é um lixo, de que seu pensamento é preguiçoso e de que nunca, nunca realmente você deve confiar nem em pequenas amostras, nem em números que parecem bons demais. Ou seja: você se lembrará de quase nada do que o autor, Nobel de Economia em 2002, escreveu. Fique em paz: nosso “eu recordativo” é um cara lerdo, mas com toda certeza nosso “eu experiencial” curtiu a leitura.
Daniel Kahneman é um israelense, professor de psicologia em Princeton, que estudou os processos de tomada de decisão. Há sempre modos gostosos e sempre modos sisudos de você aprender sobre o tema. Modos gostosos envolvem leitura de livros de neuromarketing, como o BrandSense de Martin Lindstrom, ou o Unconscious Brand de Douglas Van Praet, ambos abordados no meu curso de Marketing Sensorial. Já o modo sisudo, embora Kahneman seja um sujeito de muito bom humor, é se deitar sobre seu livro com relatos de trocentas experiências todas cientificamente rigorosas e seus achados. Cansa um pouco, porque envolve o Sistema 2, mas é necessário.
Talvez a parte mais desafiadora do livro seja absorver os vários conceitos desenvolvidos pelo autor e seu falecido parceiro de pesquisas, Amos Tversky, com quem dividiu o Nobel. O esforço de tradução dos termos foi primoroso, porque a língua inglesa é exímia em sintetizar o que é insintetizável no português. Mas como os conceitos vão e voltam o tempo todo pelas páginas deste (grosso) livro, ter um papelzinho à mão, à guisa de glossário, ajudaria tremendamente na leitura.
Tudo começa por uma desconfiança de que seres humanos não são bons estatísticos intuitivos, ao contrário de bons gramáticos intuitivos, uma vez que crianças com 4 anos de idade já dominam perfeitamente as estruturas de sua língua nativa e conseguem fazer suposições bastante acuradas a respeito de seus desvios, como também conseguem fazer previsões (como, por exemplo, julgar um verbo que ouviram pela primeira vez). Quando julgamos, julgamos com base em inúmeros vieses; e quando temos que tomar decisões, decidimos com base em heurísticas simplificadoras. Ou seja, achamos que somos super racionais – e até somos!. Mas de uma racionalidade tosca, porque é bem difícil ir muito além do 2 + 2 = 4. Por que é difícil? Porque somos seres preguiçosos. Sim, basicamente isso: preguiça mental. Puxamos da memória o que é mais evidente, ou o que é mais significativo do ponto de vista emocional, levando-se em consideração de que o mais significativo emocionalmente será o mais simples cognitivamente. Um circulo vicioso, voilà! Mas é assim que somos e, apesar disso parecer lamentável, efetivamente chegamos à lua usando essa nossa tosca racionalidade, inventamos computadores, inseminação artificial… e também poluímos o meio-ambiente e nos matamos uns aos outros. C´est la vie.
O que Rápido e Devagar faz, então, é mostrar todos estes atalhos cognitivos que usamos pra pensar sobre as decisões que temos de fazer, desde as mais importantes, como decidir em quem votar com base em fake news, até as mais banais, como tomar uma rota não indicada pelo Waze porque, bem, você sabe, nenhum Waze vai substituir minha intuição de que aquele viaduto estará desimpedido (e, como você já deve ter testemunhado, o viaduto estará completamente congestionado, como o Waze previra).
Quando pensamos, acionamos dois sistemas diferentes em nosso cérebro: o Sistema 1, que opera automaticamente, rapidinho, com a lei do menor esforço e sem percepção de que de fato o estejamos controlando; e o Sistema 2, que opera devagar, com esforço (é quando a cabeça dói de pensar), fazendo cálculos complexos e com a percepção que gastamos fosfato refletindo. O problema da vida é acreditar que nós sempre tomamos decisões sensatas com base no Sistema 2. O que Kahneman demonstra é que o Sistema 1 é tão, mas tão esperto que faz o Sistema 2 achar que está tomando uma decisão, quando na verdade está apenas arranjando um jeito sofisticado de explicar a decisão espúria que ele próprio já nos fez tomar. (Lindstrom fala que nosso inconsciente decide, e então pedimos pro nosso consciente escrever um memorando pra justificar que aquela decisão foi racional. Mas eu já estou interpretando a leitura: Kahneman afirma que o Sistema 2 sempre assume o controle quando as coisas ficam difíceis. Ufa, né?)
Outros conceitos importantes que o livro traz são as definições de Econs e Humanos. Econs são pessoas que conhecem de teoria econômica e que tomam decisões baseadas em fatos e números estatísticos. Teoricamente, estão sujeitos a fazer melhores escolhas que os desastrados e emocionais Humanos. Quer saber? Econs não existem, embora povoem secretamente os sonhos eróticos dos agentes econômicos. Já Humanos, esses tentam tomar as melhores decisões possíveis e quase podem ser perdoados por agirem assim; no entanto, sabemos do que o inferno está cheio – de boas intenções! E a menos que consigamos aprender a reconhecer aqueles momentos em que vamos cometer o pecado da boa intenção, o céu permanecerá dos Econs.
Reconhecer os momentos em que nossa intuição deveria ser contra-intuitiva justamente ocupa as seis centenas de páginas do livro: são as situações onde a complexidade de operações cognitivas será substituída por atalhos, por mecanismos simples de pensamento. Efeito de priming, conforto cognitivo, impressões de causalidade, efeito halo, o que você vê é tudo o que há, lidar melhor com médias do que com somas, heurística do afeto, lei dos pequenos números, âncoras, o viés da disponibilidade, ignorar a taxa-base em problemas de probabilidade, a plausabilidade de uma história, regressão à média, falácia narrativa, ilusão de validade, a preferência pelo erro humano ao algoritmo, falácia do julgamento, efeito dotação, preferir deixar de ganhar a perder, peso excessivo ao evento raro, custo afundado, manipulação de contexto pra que ocorra reversões, confundir experiência vivida com a sua lembrança, ilusão de foco, regra do pico-fim, e negligência com a duração são apenas alguns dos termos desenvolvidos pelo autor pra nos mostrar como nosso pensamento no engana a nós mesmos.
A pergunta que fica com a leitura do livro é: o que fazer com todas essas descobertas? Se por um lado elas valeram um Prêmio Nobel, mostrando sua relevância a gestores das esferas públicas e privadas, por outro temos nossa comezinha vida. Podemos ficar mais atentos a não julgar tão rapidamente notícias, a desconfiar da sedução de propostas de seguro, a olhar com incredulidade promessas de ganho. Serão apenas tentativas, pois a verdade é que sem um esforço tremendo – e que começa com a própria leitura deste livro – dificilmente daremos mais protagonismo ao nosso Sistema 2.
Fica a esperança de que o eu que experienciou o livro tenha tido picos de insight – porque desses nos recordaremos e há esperança de que possamos usá-los pra nos tornarmos mais inteligentes. E ajudará muito se a última coisa que você ler no livro – o grand final que sumariza o que reteremos de uma experiência junto com seus momentos de pico -, ajudará muito se a última coisa que você ler do livro não forem os apêndices, que são dois artigos científicos do autor, mas o capítulo intitulado Conclusões. Quando se lê um livro tão complexo quanto este, terminá-lo com a aridez da escrita científica lhe deixará um retrogosto amargo pra desejar saboreá-lo de novo. E este livro mereceria revisitá-lo, periodicamente. Então, faça um favor ao seu eu recordativo: inicie a leitura pelos dois textos do apêndice, e depois se encaminhe, convictamente, à Introdução. Você reterá a informação de que o livro é ótimo e gostoso – coisa que ele de fato é -, em vez de ótimo e difícil – coisa que ele também é. Mas quem pagaria por isso?
Mayra Corrêa e Castro (c) 2018
KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Tradução de Cássio de Arantes Leite. – 1ª edição. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. Reimpressão 2018.