Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoconhecimento > Por que a psicanálise? – Elisabeth Roudinesco
Muitos amam malhar o Judas, digo, Freud. Mas não vem de agora. É que a mensagem da psicanálise, com seu pessimismo em relação ao ser humano, é verdadeiramente insuportável – sobretudo sua insistência na dimensão erótica (emprego o adjetivo em sentido amplo) nestes tempos tão deserotizados.
Este livro caiu em minhas mãos por meu marido, que é psicólogo e leu a introdução e achou que me interessaria. Ele disse: “Má, ela tá dizendo que quem busca terapias alternativas não quer se curar.” Opa! Interessou-me. E foi em boa hora, pois eu escrevia uma apostila sobre Melancolia e Tristeza e o ponto de Elisabeth Roudinesco junto com o contido no texto Mal-estar na cultura de Freud (também traduzido como Mal-estar na civilização) deram o contraponto contundente que eu buscava para a sequência modorrenta de descrições do CID-10 e do DSM-V para depressão e estados depressivos.
Eu gostei deste livro como gosto de todos os rebeldes, sobretudo os rebeldes que conservam sua postura depois de terem sido mainstream. Ah, sim, meu caro, a psicanálise já foi mainstream. Como disse Joel Birman em uma palestra que continuo reassistindo ao longo dos anos, psiquiatras queriam ser psicanalistas até que, hoje, psicanalistas enviam seus clientes aos psiquiatras pra que tenham condições de ser analisados.
Mas tudo que posso falar sobre psicanálise é externalizar achismos, sentimentos, olhar seus pontos de confluência com o que já li e sei da minha área, a aromaterapia. Por isto, melhor eu deixar o livro falar por si. Abaixo seguem as melhores partes.
Rebeldia punk rock
“A morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividade de cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais conseguirá pôr termo a isso, felizmente.” (p. 4)
– Ultimamente (e escrevo isto em 02 de junho de 2024), Pondé tem dito em suas entrevistas e papos que acredita que o ser humano é psicótico por natureza. Eles também tem perguntado com mais frequência a seus interlocutores “e quem disse que o ser humano prefere a realidade?” Uma boa ideia do que pode acontecer quando abdicar da ilusão estiver na mesa é a série The 100: prefere-se não.
“Receitados tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os psicotrópicos têm o efeito de normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar a significação.” (p. 12)
– Imagine o ser humano contentando-se com a ausência de significado. A despeito da psicofarmacologia funcionar, ela não funciona pelo simples fato de que – e como diz Roudinesco mais à frente – ela encerra o sujeito em uma nova alienação por pretender “curá-lo da própria essência da condição humana” (p. 12).
“A histeria de outrora traduzia uma contestação da ordem burguesa que passava pelo corpo das mulheres. A essa revolta impotente, mas fortemente significativa por seus conteúdos sexuais, Freud atribuiu um valor emancipatório do qual todas as mulheres se beneficiaram. Cem anos depois desse gesto inaugural, assistimos a uma regressão. Nos países democráticos, tudo se passa como se já não fosse possível haver nenhuma rebelião, como se a própria ideia de subversão social ou intelectual se houvesse tornado ilusória, como se o conformismo e o higienismo próprios da nova barbárie do biopoder tivessem ganho a partida. Daí a tristeza da alma e a impotência do sexo, daí o paradigma da depressão.” (p. 14-15)
– Grave esta palavra: “biopoder”. “Biopolítica” também é outra pra se gravar.
“A psicanálise parece ser ainda mais atacada hoje em dia por haver conquistado o mundo através da singularidade de uma experiência subjetiva que coloca o inconsciente, a morte e a sexualidade no cerne da alma humana.” (p. 20)
– A sexualidade sempre foi um heresia. Por isto, parece quase cármico que a psicofarmacologia ainda não tenha inventado um afrodisíaco feminino.
“Diante do impulso da psicofarmacologia, a psiquiatria abandonou o modelo nosográfico em prol de uma classificação dos comportamentos. Em consequência disso, reduziu a psicoterapia a uma técnica de supressão dos sintomas.” (p. 24)
– Que haja uma técnica de supressão dos sintomas não chega a ser surpreendente. O que surpreende é constatarmos nos contentar com a supressão de sintomas.
“Todas essas pesquisas são uma consequência da perda catastrófica que tem afetado o mundo ocidental nestes últimos anos. Perda da esperança de encontrar soluções sociais para problemas sociais.” (p. 27)
– Acho tão importante ter em vista que há soluções que vêm apenas pelo social! A famosa frase de Gandhi “seja você a mudança que quer ver no mundo” não foi dita pra que cada um se enfiasse em sua casa, mas pra libertar um país.
“O recurso sistemático ao círculo vicioso da causalidade externa — genes, neurônios, hormônios etc. — teve como conseqüência o deslocamento da psiquiatria dinâmica e sua substituição por um sistema comportamental em que subsistem apenas dois modelos explicativos: a organicidade, por um lado, portadora de uma universalidade simplista, e por outro, a diferença, portadora de um culturalismo empírico. Daí resulta uma clivagem reducionista entre o mundo da razão e o universo das mentalidades, entre as afecções do corpo e as do espírito, entre o universal e o particular.” (p. 27)
“A explicação através do cultural, portanto, associa-se à causalidade orgânica e remete o sujeito ao universo da possessão.” (p. 28)
– A despossessão de si é o tema da depressão. Se somos possuídos pelas influências orgânicas e culturais, a liberdade que resta é despossuir-se.
“Nascidas ao mesmo tempo que a psicanálise, essas escolas de psicoterapia14 têm como ponto comum contornar três conceitos freudianos, a saber, os de inconsciente, sexualidade e transferência. Elas opõem ao inconsciente freudiano um subconsciente cerebral, biológico ou automático; à sexualidade, no sentido freudiano (conflito psíquico), ora preferem uma teoria culturalista da diferença entre os sexos ou gêneros, ora uma teoria dos instintos. Por último, opõem à transferência como motor do tratamento clínico uma relação terapêutica derivada da sugestão.” (p. 33)
“Entretanto, deve-se constatar que somente a psicanálise foi capaz, desde suas origens, de realizar a síntese dos quatro grandes modelos da psiquiatria dinâmica que são necessários a uma apreensão racional da loucura e da doença psíquica. Com efeito, ela tomou emprestado da psiquiatria o modelo nosográfico, da psicoterapia o modelo de tratamento psíquico, da filosofia uma teoria do sujeito, e da antropologia uma concepção de cultura fundamentada na ideia de uma universalidade do gênero humano que respeita as diferenças. A menos que venha a se desonrar, portanto, ela não pode, como tal, contribuir para a ideia, hoje dominante, de uma redução da organização psíquica a comportamentos. Se o termo ‘sujeito’ tem algum sentido, a subjetividade não é mensurável nem quantificável: ela é a prova, ao mesmo tempo visível e invisível, consciente e inconsciente, pela qual se afirma a essência da experiência humana.” (p. 32-33)
– O debate sobre se psicanálise é ou não ciência me lembra muito sobre o debate se yoga é educação física ou não. Quando o conselho de educação física quis tomar pra si o yoga, reunimo-nos e mostramos que yoga é filosofia, é prática espiritual, é sistema de crenças, é sistema de saúde, é concepção de mundo.
“(…) a grande querela que há um século divide os partidários da possível constituição de uma ciência da mente, na qual o mental seria calcado no neural, e os adeptos de uma autonomia dos processos psíquicos. No centro dessa disputa, o inconsciente freudiano é objeto de uma controvérsia particular, na medida em que sua definição escapa às categorias próprias dos dois campos. Não só esse inconsciente não é assimilável a um sistema neural, como também não é integrável numa concepção cognitiva ou experimental da psicologia. E, no entanto, não faz parte do campo do oculto ou do irracional.” (p. 36-37)
– Não entendo como alguém pode não se entusiasmar com algo que desafia pressupostos em ambos os campos ao mesmo tempo.
“Assim, em vez de criticar Freud, ora por haver renunciado à ciência, ora por não ter entendido nada da filosofia, não seria mais pertinente compreender a maneira como ele traduziu a metafísica numa metapsicologia e como inventou um sistema interpretativo que permitia desconstruir20 os mitos fundadores da religião monoteísta e da sociedade ocidental?” (p. 87)
– A dor de cotovelo impede.
Dionisíaco
“A psicanálise atesta um avanço da civilização sobre a barbárie. Ela restaura a ideia de que o homem é livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico. Por isso, no futuro, ela deverá conservar integralmente o seu lugar, ao lado das outras ciências, para lutar contra as pretensões obscurantistas que almejam reduzir o pensamento a um neurônio ou confundir o desejo com uma secreção química.” (p. 4)
– Este livro foi escrito originalmente em francês em 1999. Eu sei que parece uma heresia o parágrafo acima. E àqueles a quem não parecer heresia, talvez pareça infantilidade. A chamada “Ciência Cognitiva” deve, em breve, destruir todas as esperanças de sermos pouco mais que pó. E quando estiver provado que a diferença entre nós e uma ameba é apenas quantitativa – porque a diferença qualitativa emergirá apenas do quão complexo um sistema é – padeceremos como padeceram os vitorianos com os postulados de Darwin.
“Frente ao cientificismo erigido em religião e diante das ciências cognitivas, que valorizam o homem-máquina em detrimento do homem desejante, vemos florescer, em contrapartida, toda sorte de práticas, ora surgidas da pré-história do freudismo, ora de uma concepção ocultista do corpo e da mente: magnetismo, sofrologia, naturopatia, iridologia, auriculoterapia, energética transpessoal, sugestologia, mediunidade etc.” (p. 7)
– Em vez de criticar os efeitos, eu gosto mais de compreendê-los. Assim, acho muito mais interessante perceber estes efeitos “pseudocientíficos” como uma recusa das pessoas ao “cientificismo religioso” – e incitar a ciência a um pouco de mea culpa – em vez de sair diminuindo a inteligência e agência das pessoas que buscam estas técnicas “ocultistas”.
“Portanto, se hoje a psicanálise é posta em concorrência com a psicofarmacologia, é também porque os próprios pacientes, submetidos à barbárie da biopolítica, passaram a exigir que seus sintomas psíquicos tenham uma causalidade orgânica. Muitas vezes, aliás, sentem-se inferiorizados quando o médico tenta apontar-lhes uma outra via de abordagem.” (p. 17)
– Imagine o grau de loucura de alguém ficar feliz porque seu corpo o torna triste. Nós merecemos mesmo nos entupir de “medicamentos pro espírito” (pra recuperar o título de um dos capítulos deste livro).
“Entre o medo da desordem e a valorização de uma competitividade baseada unicamente no sucesso material, muitos são os sujeitos que preferem entregar-se voluntariamente a substâncias químicas a falar de seus sofrimentos íntimos. O poder dos remédios do espírito, portanto, é o sintoma de uma modernidade que tende a abolir no homem não apenas o desejo de liberdade, mas também a própria ideia de enfrentar a prova dele. O silêncio passa então a ser preferível à linguagem, fonte de angústia e vergonha.” (p. 18)
– Farei a defesa da leitura, ambiente no qual a linguagem passa a ser ato de afirmação de nossa capacidade mais humana, a de metaforizar, criar sentidos. Ler é co-criar. Uma sociedade que abdica da leitura por vídeos arrisca perder a capacidade de falar.
“No que concerne ao psiquismo, os sintomas não remetem a uma única doença e esta não é exatamente uma doença (no sentido somático), mas um estado. Por isso, a cura não é outra coisa senão uma transformação existencial do sujeito.” (p. 30)
– Porque aquele que sofre em sua esfera psi talvez entenda que estará curado se transformado é que ele se frustra com o fato de ter apenas sintomas suprimidos. Intimamente ele sabe que, sem o medicamento, voltará a sofrer como antes.
“O sujeito freudiano é um sujeito livre, dotado de razão, mas cuja razão vacila no interior de si mesma. É de sua fala e seus atos, e não de sua consciência alienada, que pode surgir o horizonte de sua própria cura. Esse sujeito não é nem o autômato dos psicólogos nem o indivíduo cérebro-espinhal dos fisiologistas, nem tampouco o sonâmbulo dos hipnotizadores nem o animal étnico dos teóricos da raça e da hereditariedade.” (p. 44)
“Freud soube dotar o inconsciente de uma capacidade de rememoração e recalcamento no momento mesmo em que a neurofisiologia lançava as bases de um materialismo do corpo, concretizando a morte das representações da alma centradas na imagem de Deus. Levada por essa idéia do inconsciente, a psicanálise pôde transformar-se, no século XX, no emblema de todas as formas contemporâneas de explicação da subjetividade. Daí seu impacto sobre as outras ciências, daí seu diálogo permanente com a religião e a filosofia.” (p. 45)
“Nesse sentido, a teoria freudiana é realmente herdeira do romantismo e de uma filosofia da liberdade crítica, proveniente de Kant e do Iluminismo. Pois ela é a única — e nisso também se opõe a todas as que provêm da fisiologia (inconsciente cerebral), da biologia (inconsciente hereditário) e da psicologia (automatismo mental) — a instaurar o primado de um sujeito habitado pela consciência de seu próprio inconsciente, ou ainda pela consciência de seu próprio desapossamento.” (p. 45)
– É difícil de fato conceber algo livre.
Deuses sem o peso de sê-lo
“A sociedade democrática moderna quer banir de seu horizonte a realidade do infortúnio, da morte e da violência, ao mesmo tempo procurando integrar num sistema único as diferenças e as resistências. Em nome da globalização e do sucesso econômico, ela tem tentado abolir a ideia de conflito social. Do mesmo modo, tende a criminalizar as revoluções e a retirar o heroísmo da guerra, a fim de substituir a política pela ética e o julgamento histórico pela sanção judicial.” (p. 7)
– O passado, contudo, tem uma tendência irritante de voltar com tudo de mais odioso que produziu: guerras, mortes, intolerância, preconceito.
“Daí uma concepção da norma e da patologia que repousa num princípio intangível: todo indivíduo tem o direito e, portanto, o dever de não mais manifestar seu sofrimento, de não mais se entusiasmar com o menor ideal que não seja o do pacifismo ou o da moral humanitária. Em consequência disso, o ódio ao outro tornou-se sub-reptício, perverso e ainda mais temível, por assumir a máscara da dedicação à vítima.” (p. 7)
– É ultrajante, não é mesmo, pessoas que recusam a hábitos saudáveis, a desejos morais, a missões humanitárias. Não demorará pra crermos que instinto é algo que pode ser suprimido. Mas, como a realidade insiste em nos mostrar, o mau e o perverso são constituintes do humano. Vide os roubos, os estelionatários, os aproveitadores e os vaidosos que surgiram no recente episódio das enchentes no Rio Grande do Sul.
“Posto que a neurobiologia parece afirmar que todos os distúrbios psíquicos estão ligados a uma anomalia do funcionamento das células nervosas, e já que existe o medicamento adequado, por que haveríamos de nos preocupar? Agora já não se trata de entrar em luta com o mundo, mas de evitar o litígio, aplicando uma estratégia de normalização. Não surpreende, portanto, que a infelicidade que fingimos exorcizar retorne de maneira fulminante no campo das relações sociais e afetivas: recurso ao irracional, culto das pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez etc. A violência da calmaria, às vezes, é mais terrível do que a travessia das tempestades.” (p. 8)
– Deus suporta a eternidade apenas porque tem nosso espetáculo de morte e sofrimento pra não o entediar.
“Em outras palavras, a concepção freudiana de um sujeito do inconsciente, consciente de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte e pela proibição, foi substituída pela concepção mais psicológica de um indivíduo depressivo, que foge de seu inconsciente e está preocupado em retirar de si a essência de todo conflito.” (p. 10)
– Quem diria que o grito “é proibido proibir” resultaria em um mundo deprimido?
“Condenado ao esgotamento pela falta de uma perspectiva revolucionária, ele busca na droga ou na religiosidade, no higienismo ou no culto de um corpo perfeito o ideal de uma felicidade impossível (…)” (p. 10)
– E aí você pode se perguntar: mas a luta identitária não é revolução suficiente pra nos animar? Aparentemente, não. Por quê? Não sei.
“Em lugar das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência de desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da história. O moderno profissional de saúde — psicólogo, psiquiatra, enfermeiro ou médico — já não tem tempo para se ocupar da longa duração do psiquismo, porque, na sociedade liberal depressiva, seu tempo é contado.”
– É um argumento cínico – não tenho tempo pro seu psiquismo – como toda a verdade que costuma acompanhar o cinismo.
“Em outras palavras, é tão errôneo valorizar o universalismo em nome da recusa da diferença quanto rejeitar o universalismo em nome da valorização arbitrária de uma única diferença: a anatomia, por exemplo, mas também o gênero, a cor da pele, a idade, a identidade etc.” (p. 101)
“Ora, aquilo a que estamos assistindo, com a fetichização atual de todas as diferenças — DSM IV, inconscientes dissociados, personalidades múltiplas, polarização a respeito do trauma sexual, política sexual baseada em categorias simplistas, sujeito psíquico reduzido a um neurônio ou à dependência de um vício etc. —, é uma ofensiva que visa a substituir o duplo ideal do universal e do diferente por uma diferenciação em cadeia na qual todos se transformam em vítima expiatória de um erro sempre imputável a um outro.” (p. 101)
– A psicofarmacologia não consegue eliminar o comportamento de culpar os outros.
“A redução do pensamento a um mecanismo cerebral favorece, evidentemente, a proliferação desses modos de fetichização: o cientificismo conduz ao etnicismo do mesmíssimo modo que o universalismo rígido leva ao comunitarismo. É que nada é mais destrutivo para o sujeito do que ser reduzido a seu sistema físico-químico, e nada é mais humilhante para esse mesmo sujeito do que ver seu sofrimento íntimo rebaixado à falsa diferença de uma origem “étnica”.” (p. 102)
– Não tenho certeza de que as pessoas sentem esta humilhação. Gostaria de perguntar à autora se ela pensaria assim ainda passados 25 anos da escrita deste seu livro. Parece-me, antes, que as pessoas veem esta redução como motivo de orgulho.
Teologia leiga
“Como teologia leiga, o cientificismo acompanha incessantemente o discurso da ciência e a evolução das ciências na pretensão de resolver todos os problemas humanos por uma crença na determinação absoluta da capacidade que tem A Ciência de resolvê-los.” (p. 37-38)
– Da, das e todos estão grafados com ênfase no original. E A Ciência está grafada assim no original. Veja que ninguém nega os avanços da ciência e que ela seja o método mais adequado pra uma série de coisas. Apenas que não o é pra tudo. É uma conclusão óbvia, mas o óbvio é muito difícil de ser visto às vezes.
“Os partidários do cientificismo e da redução do psiquismo ao neurológico, entretanto, têm em comum — de Grünbaum a Changeux, passando por Debray-Ritzen — uma rejeição absoluta da religião. Esse ateísmo em nada se assemelha, como obviamente convém notar, ao de Freud ou dos herdeiros do Iluminismo. Tampouco se inspira nos ideais do Renascimento. Consiste, antes, numa espécie de religião da ciência, que conduz a um franco obscurantismo, à força de negar aquilo que, no homem, decorre do psíquico, do espiritual, ou do imaginário e da fantasia. Daí a cegueira para os desvios irracionais nascidos do discurso científico.” (p. 72-73)
“(…) esperando que, um dia, a ciência do cérebro consiga enfim derrotar os pretensos arcaísmos da doutrina freudiana, mesmo com o risco de ressuscitar as antigas concepções do inconsciente (cerebral, hereditário ou automático). Nessa deploração expressa-se a esperança secreta de que a antiga imagem do intelectual — sábio socrático, poeta visionário ou filósofo engajado — possa um dia ser substituída pela do especialista ou do perito, encarregado de circunscrever a insipidez infinita de um mundo reduzido ao observável.” (p. 74)
– Mesmo cientistas podem ser Bartleby.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? [Tradução de Vera Ribeiro] – E-book. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2011.