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Notas para uma definição do leitor ideal – Alberto Manguel

Postado às 10:55 do dia 07/01/25

Quem é íntimo da leitura pode construir hipóteses sobre o que o ato significa: um relacionamento, uma descoberta, um eco, um espelho, uma alteridade, uma conversa – escolha a palavra que define a leitura pra você. Pra mim, ler sempre significou uma recitação. É o que mais gosto em ler: ouvir em minha cabeça o que o outro diz. Mas também nunca deixei de notar que a voz que ouço é a minha própria. Então, ler é como recitar a mim mesma.

Pra esta relação meio caipora com a leitura – caipora porque calcada principalmente no prazer -, gosto de citar um verso de Vinícius de Moraes em O poeta aprendiz: “E achava bonita/a palavra escrita”. Acho bonita a palavra escrita; acho gostosa a palavra recitada – e isso é tudo. Um leitor ideal deve gostar de ler? de ler por ler? Sim, penso que seja o primeiro requisito. Manguel traz outros nesse delicioso livro que é declaração de um amante da leitura.

Abaixo selecionei e comentei citações.

 

Magia

” ‘É bem plausível que a glória da vida esteja sempre à disposição de todos nós, porém oculta dos nossos olhos, distante, nas profundezas. Mas ela está lá e não é hostil, nem arisca, nem surda. Basta chamá-la com a palavra certa, com o nome certo, que ela vem.

‘Essa é a essência da magia, que não cria nada, mas invoca. – FRANZ KAFKA, Diário, 18 de outubro de 1921.’ ” (posição 21)

– Epígrafes de livros revelam obsessões momentâneas do autor do livro. Muitas vezes, configuram aquilo que os inspirou a escrever. Em outras, são escolhidas depois. Invocar a glória da vida através das palavras é algo que consigo imaginar Manguel gostando de ler. O surpreendente é ter sido escrito por Kafka. Contemporaneamente, JK também disse que invocar (usar palavras) é a mais bem acabada forma de magia.

“Se os livros são registros das nossas experiências e as bibliotecas, depósitos da nossa memória, os dicionários são um talismã contra o esquecimento. Não são uma homenagem comemorativa à linguagem que falamos, o que cheiraria a cemitério, nem um tesouro, o que implicaria algo oculto e inacessível. Um dicionário, com sua intenção de registrar e definir é, em si mesmo, um paradoxo: por um lado, acumula o que a sociedade cria para seu próprio consumo na esperança de alcançar uma compreensão compartilhada do mundo; por outro, faz circular o que contém, para que as palavras antigas não morram no papel e as novas não fiquem marginalizadas nas periferias do idioma.” (posição 326)

– Não sei se dicionários ainda são chamados de “pai dos burros”. É interessante a ideia de que a burrice é uma limitação vocabular. Eu acho que seja mesmo, embora a sabedoria não precise de vocabulário rico. A inteligência tem muito a ver com nomear, nuançar, complexar; já a sabedoria tem mais a ver com sumarizar e simplificar. Quando não conseguimos nomear, sentimo-nos burros; quando entendemos que nem tudo precisa ser nomeado, tornamo-nos sábios.

“Somos seres da palavra, nascemos com o dom da palavra, vivemos através da palavra, conhecemos e damos a conhecer nossa experiência pela palavra, e só quando morremos perdemos a palavra. E, dizem alguns, nem mesmo então: as almas que Dante encontra no além-túmulo continuam a falar.” (posição 411)

– Dante deveria estar certo e há inclusive informações mais precisas sobre essa fala além-túmulo: certa vez, assistindo a uma entrevista com os caçadores de fantasmas brasileiros, eles disseram que essas almas penadas não apenas falam com eles, mas o fazem em uma língua universal, como um esperanto telepático. Pelo menos há quem fale esperanto.

“Darwin nos ensinou que cada ser vive no mundo de acordo com sua capacidade de reconhecimento e adaptação. O ser humano, diferentemente de outros, tem consciência de viver neste mundo e, para melhor percorrê-lo, conhecê-lo e sobreviver aos seus perigos, desenvolveu a capacidade de imaginá-lo, de reconstruí-lo, para viver suas experiências na mente antes de sofrê-las na própria pele. Lemos o livro do mundo como se cada um dos seus elementos nos contasse uma história, e inventamos histórias para saber como é o amor, a morte, o bem-estar, a desgraça, em muitos casos antes que aconteçam.” (posição 514)

– Às vezes não tenho certeza de que esta capacidade de antecipar experiências seja grandes vantagens…

“Um professor sempre estará preso a estas duas exigências: por um lado, ensinar os estudantes a pensar por conta própria; por outro, ensinar de acordo com uma estrutura social que impõe um freio ao pensamento. A escola, tanto no mundo de Pinóquio como no nosso, não é um campo de treino para a criança melhorar e se expandir, e sim um lugar de iniciação ao mundo dos adultos, com suas convenções, suas exigências burocráticas, seus acordos tácitos e seu sistema de castas. Não existe nada que se pareça com uma escola para anarquistas e, no entanto, em certo sentido, cada professor ou professora deve ensinar o anarquismo, deve ensinar os estudantes a questionar as normas e os regulamentos, a pedir explicações para todo dogma, a enfrentar as imposições sem se render aos preconceitos, a encontrar um lugar a partir do qual expressar suas próprias ideias, mesmo que isso implique opor-se a esse mesmo professor, e no limite livrar-se dele.” (posição 762)

– Se ao menos entendessem isso: não é um lugar pra criança melhorar, mas pra entrar no mundo adulto. Quanto menos ambição de der às instituições civilizatórias, mais racionalmente elas serão geridas.

“É verdade que um tradutor que conhece seu ofício sabe mais sobre a obra que traduz que o próprio autor, mas sua missão não é trazer à luz essas misteriosas engrenagens, e sim assumi-las como segredos, pondo em outras palavras o que parecem dizer e conservando implicitamente o que têm de inexprimível. Talvez seja essa a principal diferença entre as boas e as más traduções: as más traduções mostram tudo e, portanto, parecem espúrias; as boas são mais recatadas e confiam na criativa intuição do leitor.” (posição 1082)

– Muitas vezes somos criticados por leitores que acreditam que traduzimos errado uma palavra ou não a traduzimos literalmente. As escolhas que ocorrem durante a tradução são complexas. Estamos sempre entre o ato de defender a voz do autor – que é o trabalho da tradução – e o de defender a história – trabalho do editor – ou o leitor – trabalho do preparador de texto. Os textos contêm falhas, nem que sejam falhas à revelia do autor e editor. Muitas vezes, nossas decisões são no sentido de preservá-las, justamente para não tratarmos leitores como incapazes de perceber os defeitos por si próprios.

“Os estudiosos medievais, a começar por Santo Agostinho, exigiam do tradutor um elemento que chamavam caritas, que nós traduzimos imperfeitamente por ‘caridade’. Com caritas não queriam dizer indulgência, descuido por carinho, negligência por amor. Com caritas queriam dizer cuidado com o essencial, profundo entendimento amoroso, consideração pelo bem-estar do outro, respeito pelo sentido de suas palavras e rigorosa atenção à sua voz.” (posição 1082)

Caritas é virtude relacionada à generosidade. Tradutores mesquinhos são aqueles que com a pretensão de controlar o texto original. Contudo, a bem da verdade, a mesquinharia às vezes vem de um editor da tradução que se julga mais importante que o editor do original, ou do preparador de texto. Acreditar que se pode fazer um trabalho melhor que o original é a primeira atitude contrária a caritas.

“(…) os escritores, mais do que nunca, continuam a escrever contos que os leitores continuam a ler. Talvez porque, em sua clássica e modesta precisão, o conto nos permita conceber a insuportável complexidade do mundo como uma íntima e breve epifania.” (posição 1901)

– O conto sendo uma epifania tornaria a crônica uma pilhéria?

 

Eu <3 ler

“Eu sempre quis ser leitor. Sinto que, para mim, a escrita é uma atividade secundária, ocasional, dispensável, mas acho que não poderia viver sem ler.” (posição 56)

– Somos dois. Ler é uma necessidade já urdida na infância.

“Mente quem diz que a leitura é uma forma de evasão da realidade. A leitura esfrega o mundo no nosso nariz, é preciso muita força de vontade para não nos envolvermos com os sofrimentos de Brás Cubas ou com a paixão de Fedra.” (posição 56)

– Gosto destas conclusões que vão na contramão do senso comum. Uma dessas que ouvi recentemente foi dita pela personagem de Jean Smart na série cômica Hacks. Comediante de stand up, ela se reinventa pra se manter relevante depois dos 60 anos, recauchutando não apenas seu arsenal de piadas, mas também seu rosto. Em um show, ela zomba das mulheres que, em sua idade, dizem ter coragem de não pintar os cabelos: “Como assim, coragem de assumir os cabelos brancos?! Que tipo de coragem é essa? Coragem mesmo é eu assinar um termo de consentimento de que posso morrer quando vou retocar meu rosto numa cirurgia plástica!” Ótimo, não? Assista à série: Jean Smart já ganhou 2 Golden Globes por sua atuação.

“Mas, tirando esses casos fortuitos, por que ler os clássicos? Por que ler Sêneca, por exemplo? Entre outras coisas, para nos consolarmos com o que os alemães chamam Schadenfreude, essa espécie de enviesada alegria de descobrir que os outros, nossos antepassados, também não foram felizes e que, nas épocas remotas da cultura clássica, a vida não era mais fácil nem mais justa.” (posição 97)

– Tive que jogar no Google Tradutor e no Deep L esta palavra, Schadenfreude. A tradução para o português ficou bem diferente das para o inglês e francês. Em português, voltaram os resultados “sofrimento” e “sacrifício”. Já em inglês voltaram “malicious joy”, “glee”; em francês, “joie maligne” e “plaisir de nuire”. Alegria enviesada, a escolha dos tradutores no Brasil, ficou bem elegante. É uma alegria com gosto amargo, digamos assim.

“Minúsculo como uma bolinha de poeira, o ponto, essa mínima bicada da pena, essa migalha no teclado, é o esquecido legislador dos nossos sistemas de escritura. Sem ele, os sofrimentos do jovem Werther não teriam fim e as viagens do Hobbit jamais terminariam. Sua ausência permitiu a James Joyce tecer o Finnegans Wake num círculo perfeito e sua presença fez com que Henri Michaux pudesse comparar nosso ser essencial a essa partícula, “uma partícula que a morte devora”. O ponto coroa a realização do pensamento, proporciona a ilusão de uma conclusão, possui certa altivez que se impõe, como Napoleão, com seu reduzido tamanho. Como estamos sempre ansiosos para começar, não pedimos nada que nos indique o começo, mas precisamos saber quando parar; esse diminuto memento mori nos lembra que tudo, nós incluídos, um dia teremos que parar.” (posição 458)

– Ponto, vírgula, ponto e vírgula, reticências – nada disso nasceu com a escrita, mas foi criado ao longo dos tempos. Mesmo o espaçamento entre palavras, pra você ter uma ideia da baderna que era ler!

“A literatura pode nos oferecer fábulas exemplares e perguntas cada vez mais amplas e perspicazes. Mas nenhuma literatura, nem sequer a melhor nem a mais robusta, pode nos salvar da nossa própria loucura. Romances, poemas, roteiros cinematográficos não podem nos proteger do sofrimento ou do ‘erro’ deliberado, das catástrofes naturais ou artificiais causadas por nossa própria cobiça suicida. A única coisa que a literatura pode fazer é, às vezes, milagrosamente, narrar essa loucura e essa cobiça e nos lembrar que devemos nos manter alerta diante de tecnologias financeiras e comerciais cada vez mais perfeitas e autossuficientes. Por isso os ditadores políticos e financeiros a temem tanto. Porque a literatura pode oferecer consolo para o sofrimento e palavras para dar nome às nossas experiências, pode nos dizer quem somos, pode nos ensinar a imaginar um futuro em que, sem exigir um convencional final feliz, possamos permanecer vivos, juntos, nesta terra maltratada.” (posição 624)

– A literatura é cúmplice quando mais ninguém o é.

“Que os leitores sejam poucos, que muitos leiam mal, que a maior parte confunda propaganda com literatura – que importa tudo isso, desde que a arte de ler continue, que o livro perdure, que a literatura nos ajude a ser um pouco mais felizes e um pouco menos idiotas?” (posição 624)

– Discordo do Manguel na medida em que considero que quem lê livros aprende a ler bem.

“Tradução é o nome que damos ao ato mais íntimo de leitura.” (posição 946)

– Jamais li melhor definição pro que é traduzir.

“Ao texto fixo na página, o leitor-tradutor propõe um texto nômade que nunca acaba de se ancorar.” (posição 959)

– Ler como um ato de tradução é interessante, mas não penso que seja a principal definição de leitura. É claro que ocorre uma decodificação, bem como uma interpretação, mas a tradução têm um passo a mais, que é a volta ao original. Isso a leitura não faz.

“Aprendi desde cedo que a arte do leitor consiste em ler nas entrelinhas.” (posição 1945)

– E também de todo outro profissional de humanas. Apenas nas ciências exatas as entrelinhas são combatidas como vieses.

“Para ler é preciso saber se sentar.” (posição 2058)

– Quando fiz o exame de polissonografia, respondi a um questionário que perguntava se eu adormecia lendo sentada, se eu adormecia lendo deitada. É pergunta elaborada por um não leitor. Leitores não conseguem responder facilmente a essa questão, pois há múltiplas formas de se sentar e de deitar para ler. Por exemplo: se eu sento para ler no computador, estarei em uma cadeira com uma mesa em frente – nessa situação dificilmente eu dormirei. É a postura sentada que adoto para leituras técnicas, típicas do trabalho. Se eu sento para ler um romance, preferirei um sofá macio. Ele não terá encosto pra cabeça, tão somente para as costas – e isso também me impedirá de dormir. Eu também leio sentada no banco da cozinha, tomando café: não durmo nessa situação. Mas quando eu estiver lendo em um confortável poltrona, sobretudo se for após o almoço, é quase certo de que terei escolhido um livro que me faça dormir mesmo. Já a leitura deitada também é variada: posso ler no tablet, e o peso do dispositivo impede que eu durma tão fácil, pois sempre temo que ele caia no chão e se quebre. A leitura deitada também pode ser totalmente deitada, como quando já fico no jeito programado pra soltar o livro e dormir, ou pode ser aquela leitura técnica que você faz deixando as costas na cabeceira da cama sabendo que ainda terá que se levantar para ir ao banheiro antes de apagar as luzes. Só quem faz muitas cerimônia pra ler – ou lê pouco – pode formula um pergunta tão simplória sobre sono e leitura.

“O leitor ideal deve aprender a escutar. O leitor ideal é o tradutor. Ele é capaz de dissecar o texto, tirar a pele, cortar o osso até a medula, seguir cada artéria e cada veia e depois dar vida a um novo ser sensível. O leitor ideal não é um taxidermista.” (posição 2058)

– Esse leitor ideal não seria capaz de sustentar uma indústria, claro. Então, hoje, o leitor ideal é aquele que, mesmo que não tiver lido, postará sobre sua leitura no Tik Tok e, chegando o final do ano, competirá por número de livros lidos no Skoob.

“Cada leitor ideal é um leitor associativo. Lê como se todos os livros fossem obra de um autor eterno e prolífico.

“O leitor ideal não pode traduzir em palavras aquilo que sabe.” (posição 2070)

– Sim, sim, eu percebi que o Manguel primeiro disse que o leitor ideal é o tradutor pra depois dizer que ele não saberia traduzir o que sabe. Não vi contradição: o tradutor continua dizendo o que não é efetivamente conhecimento seu.

Para o leitor ideal, cada livro é lido, até certo ponto, como sua própria autobiografia.” (posição 2089)

– Quando falei sobre a leitura ser recitação era um pouco essa ideia acima.

“Escrever nas margens é marca de um leitor ideal.” (posição 2089)

– Uma das consequências mais frustrantes da leitura digital é que ela não permite que coloquemos nosso temperamento nas margens do livro. Podemos fazer anotações, mas a caligrafia não será nossa, a cor da caneta (ou do papel) não manchará a página. Sobretudo, no ebook desaparece o espaço exíguo da margem que muitas vezes torna o que escrevemos incompreensível, livrando-nos do constrangimento de rever o que pensávamos sobre aquele parágrafo lido.

“O leitor ideal quer chegar ao final do livro e ao mesmo tempo saber que o livro nunca acabará.” (posição 2109)

– A galerinha influenciadora deu um nome pra esse sentimento: ressaca literária. A gente corre pro final e depois fica com bode do livro ter terminado.

“Um escritor nunca é seu próprio leitor ideal.” (posição 2109)

– Exatamente por isso que leitores acabam vendo mais nos livros que os próprios autores.

“A literatura não depende de leitores ideais, mas apenas de leitores suficientemente bons.” (posição 2109)

– Justamente, mas com o adendo de que a leitura constante é o que torna um leitor suficientemente bom. Ler é um hábito, uma musculação: ganha-se massa com a disciplina.

 

Repertório

“A velhice faz de todos nós pequenos filósofos de uma banalidade avassaladora.” (posição 86)

– Olhe, se a velhice nos der pelo menos a filosofia, tá de bom tamanho. Duro é quando a velhice rende apenas velhos que querem parecer jovens, porque daí ficam na banalidade, mas sem a filosofia.

“Aby Warburg, grande leitor de dicionários, definiu para todos nós o que chamou de ‘a lei do bom vizinho’. Segundo Warburg, em muitos casos, o livro que procuramos não é aquele de que precisamos: a informação que queremos se encontra num discreto vizinho de prateleira. Pode-se dizer o mesmo das palavras de um dicionário. Na era digital, tenho a impressão de que os dicionários virtuais oferecem menos oportunidades desses felizes acasos que tanto orgulhavam o grande lexicógrafo Émile Littré.” (posição 268)

– Olhe, uma das lembranças mais persistentes que tenho com dicionários é de estar jantando em família e abrir o Aurélio em qualquer página pra testar o vocabulário do meu pai, que era vasto. Outro prazer era descobrir palavrões e palavras escatológicas. Os dicionários eletrônicos tentam imitar esse prazer fortuito que tínhamos ao folhear os exemplares em papel colocando em seus sites coisas como “palavra do dia”, “descubra uma palavra hoje”. Mas a descoberta não se iguala porque a gente ia percorrendo com o dedo os verbetes até chegar no vocábulo “pecaminoso” e descobria várias palavras legais pelo caminho.

“Jean Cocteau ponderou que um único dicionário bastaria para conter uma biblioteca universal, já que ‘cada obra-prima não é mais que um dicionário em desordem’. É verdade: num desconcertante jogo de espelhos, todas as palavras utilizadas para definir uma determinada palavra num dicionário qualquer devem, elas mesmas, estar definidas nesse mesmo dicionário. Se somos, conforme acredito, a língua que falamos, os dicionários são nossas biografias. Tudo o que conhecemos, tudo o que sonhamos, tudo o que tememos ou desejamos, cada conquista, cada paixão, cada mesquinharia, está no dicionário.” (posição 306)

– Tanto é verdade que dicionários são biografias que continuam acolhendo experiências novas na forma de neologismos.

“Com outra capa, com outro design, certo texto torna-se original, adquire uma virgindade artificial.” (posição 431)

– Manguel, você destruiu as edições especiais com essa imagem: nunca mais veremos a reedições com o mesmo romantismo.

“(…) o pensamento requer tempo e profundidade, as duas qualidades essenciais do ato de ler.” (posição 780)

– Por isso que ler cria repertório e assistir tem menos chance de criar.

“Toda tradução é conquista.” (posição 959)

– Outra verdade. Conquista-se o direito da apropriação de uma voz original.

“A crueldade é áfona.” (posição 2036)

– E a raiva é rouca.

 

KDPização

“Nem sempre houve editores. No início, a literatura dependia somente dos narradores e do seu público. Com a evolução das tecnologias, o narrador se transformou em escritor, e o escritor precisou de um artesão que lhe facilitasse a tarefa de reproduzir sua obra e distribuí-la a seus novos leitores. Nasceram assim as oficinas onde as tabuletas de argila eram copiadas, na Suméria, as livrarias onde eram vendidos os rolos de papiro, na Grécia e em Roma, os scriptoria onde eram escritos os códices, na Idade Média, e as imprensas que multiplicaram os livros, desde a invenção de Gutenberg até hoje, quando a eletrônica permite a cada um de nós ser um monstro tripartido, escritor, editor e leitor, tendo como únicas barreiras nosso próprio pudor e a censura de certas autoridades.” (posição 392)

– Apenas quem não trabalha na indústria do livro acredita que haja bons livros sem editores, preparadores, revisores. Mesmo um ebook, os bons passaram por edição e revisão. Por isso que existe tanto livro ruim no KDP. E piores no marketing digital.

“A história do livro é desde sempre acompanhada pela história da sua destruição.” (posição 482)

– Manguel não apenas se refere à destruição causada pela censura, mas àquela mais inevitável, a causada pelo tempo, que deteriora o material do qual os livros são feitos. Na era de ebooks, a obsolescência dos formatos é o destruidor mais óbvio dos livros, de resto como ocorre com qualquer mídia digital. E pensando em serviços de assinatura de livros, deixar de pagar a mensalidade faz com que aquele livro lido e grifado (virtualmente) desapareça de seu dispositivo de leitura de um dia para outro.

“Entre o início da palavra escrita e nossa era se estendem 6 mil anos de história que incluem, de ruína em ruína, a destruição dos arquivos da Suméria, o incêndio da biblioteca de Alexandria, as proibições dos faraós do Egito, os crimes dos biblioclastas da Grécia, o empenho dos drásticos imperadores da China em eliminar o passado, a obra dos censores de Roma, as obras pagãs aniquiladas pelos cristãos primitivos, as primeiras destruições das bibliotecas de Bagdá, e também as mais recentes, os livros muçulmanos e judeus expurgados na Espanha, os códices queimados no México, as fogueiras do Santo Ofício, as proibições da Inglaterra puritana, os incêndios e naufrágios de várias bibliotecas, as obras imorais ou blasfemas emparedadas no século XIX, o Holocausto nazista, os saques durante a Guerra Civil espanhola, as bibliotecas vitimadas pelas ditaduras do século XX, pelo terrorismo e pela guerra digital. É uma lista sombriamente tétrica. Todo levantamento desse tipo tem um quê de cemitério.” (posição 482)

– Pondé diz que a leitura de livros é um hábito que não pegou na espécie humana. Ele tem razão: mesmo no século XIX, auge do romance de folhetim, não daria para dizer que todos liam (apenas os alfabetizados, que não eram todos). Com tão poucos leitores, é curioso que livros incomodem tanto.

“A sociedade de consumo não tolera os leitores, os verdadeiros leitores: quer apenas leitores diletantes, consumidores de papinha de bebê, pessoas convencidas de que não são suficientemente inteligentes para ler a chamada literatura séria. Essa é outra forma de censurar os livros: fazer-nos acreditar que não os merecemos.” (posição 532)

– Esse é o reverso da moeda do discurso de que os livros que fazem sucesso não são literatura de verdade.

Educar é um processo lento e difícil, dois adjetivos que na nossa época deixaram de ser elogiosos e passaram a denotar falhas.” (posição 780)

– Esquece, nesta nossa “sociedade do espetáculo” e da “economia da atenção” não existe salvação pro futuro.

“(…) toda crise da sociedade é, no fundo, uma crise da imaginação.” (posição 799)

– Tendo a concordar. Parece que somos tão dependentes da imaginação que, na falta de um Céu ou uma Utopia, usamos nossa imaginação para tornar interessantes as pessoas mais enfadonhas do planeta, os políticos profissionais, atribuindo-lhes virtudes e capacidades que eles absolutamente não têm.

“O século XXI é a era da descrença na palavra.” (posição 1705)

– Nesse trecho do livro, Manguel equipara a palavra ao exercício da razão. A descrença na palavra é, portanto, a descrença no projeto racional e, por consequência, a crença no poder da emoção. A história do marketing descreve isso: nas palavras do marketeiro Martin Lindstrom, saímos da proposição de venda única para a proposição de venda holística que é baseada na criação de uma experiência de fanatismo religioso com as marcas.

“Hoje, porém, o discurso público parece se basear quase que exclusivamente no apelo à emoção, e a incoerência já não é vista como uma debilidade do pensamento, e sim como prova de autenticidade, fruto não das maquinações de uma mente fria e calculista, mas de algo sincero que sai ‘das entranhas’.” (posição 1705)

– Aliás, debilidade de pensamento se tornou pré-requisito para entrar na política.

 

O livro do mundo

“Há profissões que carregam uma carga simbólica positiva, e outras, negativa. Ser pedreiro, professor ou médico é visto com bons olhos. Ser dentista, banqueiro ou advogado, nem tanto.” (posição 1113)

– Essa lista, se atualizada, aumentará em número as profissões negativas e talvez nem as 3 citadas ocupem a lista das positivas.

“As novas tecnologias nos propõem a amizade constante de centenas de milhares de seres que podem ser (ou não, talvez) inventados. Essas relações voláteis, dizem as grandes companhias mercantis, devem bastar para sermos felizes. No entanto, apesar da sua poderosa insistência, esses amigos virtuais não são os que nos acompanham na nossa solidão. Podemos trocar com eles patéticas bobagens, mas, se somos leitores, não são os habitantes do Facebook que nos explicam, e aconselham, e consolam.” (posição 1303)

– A relação com livros também é volátil, pois perdura apenas enquanto houver páginas a vencer. Por que elas nos consolam e não os amigos virtuais, boa pergunta.

“(…) a geografia do Paraíso é mais vasta que a própria Terra.” (posição 1372)

– Talvez porque sejamos mais prolíficos em desejar que em temer.

“Ser mais compassivo que os deuses é uma prerrogativa (nem sempre reconhecida) do ser humano.” (posição 1538)

– Manguel foi elegante, nomeando deuses no plural. Mas gnósticos e cátaros também já julgaram Deus mau.

“O que precisamos agora é de intelectuais engajados que digam em alto e bom som que estamos num rumo suicida. Que nos lembrem, dia após dia e noite após noite, que a característica essencial da utopia é sua inexistência e que a responsabilidade dos intelectuais não é sonhar com projetos irrealizáveis de uma sociedade utópica, mas erguer sua voz para melhorar a sociedade que temos agora, precariamente enraizada nesta terra.” (posição 1687)

– Esse tipo de intelectual, que não crê em nem prega utopias, tem nome: é o intelectual conservador. Infelizmente, o adjetivo foi deturpado pela esquerda identitária, tornando-o sinônimo de reacionário, sendo que conservadores têm mais a ver com o liberalismo clássico que livrou a sociedade das perseguições política e religiosa e deu direitos a mulheres, negros e gays do que com os revolucionários que implantaram ditaturas sanguinárias como a comunista na Rússia e China da primeira metade do século XX.

“Presentear é uma arte difícil. Requer conhecimentos de tipologia (como é a pessoa que receberá o obséquio?), de sociologia (que significado tem o obséquio em sua cultura?), de ética e moral (que grau de compromisso implica a quem presenteia?), de clarividência (como reagirá o presenteado?).” (posição 1767)

– As pessoas que presenteiam mal são aquelas que o fazem a partir de um ponto de vista pessoal: dão aos outros aquilo que gostariam de ganhar.

“Nossa aptidão para enxergar constelações de estrelas distantes entre si, e geralmente mortas, vale para outros campos da nossa vida sensível.” (posição 1810)

– Orra, que constatação otimista! Hahaha.

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2025

MANGUEL, Alberto. Notas para uma definição do leitor ideal. E-book. Tradução: Rubia Goldoni; Sérgio Molina. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020.

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