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Encaixotando minha biblioteca – Alberto Manguel

Postado às 16:10 do dia 22/02/23

Quando Alberto Manguel precisa encaixotar sua biblioteca, entristecemos todos nós. Apenas quem já precisou mudar uma biblioteca ou doar parte dela sabe o quão difícil é se desfazer destes objetos, os livros, que são o testemunho de nossas aspirações, de nosso temperamento, de nossas crenças, de nosso passado e do que queremos ser no futuro.

Em A biblioteca à noite, acompanhamos Manguel reunindo seus milhares de livros em uma propriedade medieval na região francesa do Loire. Nesta obra, acompanhamos o autor despedindo-se desta biblioteca e pelas razões mais odientas: burocracia fiscal. Se poderíamos esperar por muito rancor nestas páginas, encontramos o contrário: uma elegia e dez digressões, subtítulo do livro.

Selecionei algumas melhores partes pra comentar.

 

Índice bibliográfico

“Organizei a biblioteca de acordo com minhas exigências e meus preconceitos. Ao contrário de uma biblioteca pública, a minha não precisava de códigos comuns que outros leitores entendessem e compartilhassem. Sua geografia era ditada por certa lógica meio louca.” (p. 14)

> A primeira recordação que tenho de dar ordem a uma biblioteca minha foi por volta dos 10 anos. Havia dois enciclopédias entre os livros: os volumes de O Tesouro da Juventude, herdados de minha mãe, e uma edição da Mirador. (No térreo de nossa casa, meu pai guardava duas edições da Britanica, uma cujos livros tinham capas brancas, em inglês, e outra com capaz em marrom, em português. Nunca tivemos a Barsa, que aprendi a menosprezar justamente por isto.) A eles também se juntavam fascículos com histórias da mitologia greco-romana e da história da arte. Havia muitos volumes da coleção Vaga-Lume, além de livros do Círculo do Livro de meus pais, que eles liam e passavam pra mim conforme julgassem que a leitura estaria de acordo com minha idade.

“Se desencaixotar uma biblioteca constitui um audacioso ato de renascimento, encaixotá-la é um sepultamento preciso antes do juízo aparentemente final. Em vez das colunas turbulentas e infinitas de livros ressurretos, prestes a serem agraciados com um lugar compatível com suas virtudes particulares e vícios extravagantes, os agrupamentos são agora determinados por uma cova sem nome que transforma seu mundo das duas ostensivas dimensões de uma estante às três dimensões de uma caixa.” (p. 43-44)

> Quando me mudei pra atual escritório da Casa Máy, meus livros estavam todos no meio da sala, ainda em caixas de papelão, quando a caixa d´água estourou, alagando o chão. Cheguei a tempo de evitar o pior, mas aprendi uma lição importante: os livros mais preciosos nunca devem ficar ao rés do chão.

“As fileiras desmontadas e prestes a desaparecer, condenadas a existir (se ainda existem) no domínio não confiável de minha memória, tornam-se pistas fantasmagóricas de um enigma privado.” (p. 45)

> Quando encaixotamos nossos livros, começamos crendo que os ordenaremos dentro das caixas tal como estão nas prateleiras. Duas ou três caixas depois, já percebemos como nos iludimos.

“Porque, se toda biblioteca é autobiográfica, seu encaixotamento parece assemelhar-se a um autonecrológio.” (p. 65)

> Alberto Manguel acaba comigo com este lirismo pervertido.

“Para Novalis, o poder da linguagem não reside no fato de que as palavras definem coisas mas de que a relação entre as palavras é como a relação entre coisas. Um dicionário é então uma coleção de marcos numa teia incomensurável cuja natureza individual permanece desconhecida para nós, mas cujas constelações nos permitem um vislumbre, ainda que breve, ainda que tênue, do mecanismo do Universo, onde tudo o que perdemos está reunido e tudo o que esquecemos é relembrado.” (p. 133)

> Umberto Eco nos lembra que um dicionário é uma obra escrita por um leitor ideal sofrendo de uma insônia ideal.

“Tenho pouca confiança nos programas oficiais de leitura que vi no Canadá e em muitos outros países. (…) Tais métodos supostamente criam consumidores [de livros]. Não criam. O único método comprovado de fazer nascer um leitor é um que ainda não foi descoberto, que eu saiba. (…) A descoberta da arte da leitura é íntima, obscura, secreta, quase impossível de descrever.” (p. 165)

> Dirão que se trata de uma visão elitista da leitura, assim como Luiz Ruffato já disse que a inspiração pra escrever é uma visão elitista da escrita.

 

Manias bibliográficas

“Falamos de certas pessoas que relutam em nos emprestar sua atenção ou nos dar a mão: eu raramente emprestava um livro. Se desejava que alguém lesse determinado volume, comprava um exemplar e o oferecia como presente. Creio que emprestar um livro significa incitar o roubo.” (p. 15)

> E todos nós que já caímos na bobagem de emprestar temos a mesma opinião.

“Gostamos da repetição. Quando criança, pedimos que a mesma história seja contada exatamente da mesma maneira, e isso repetidas vezes. Como adultos, embora nos declarando apaixonados por novidades, buscamos os mesmos brinquedos que conhecemos, em particular sob a aparência de engenhocas diferentes, com a idêntica e extraordinária determinação com que elegemos os mesmos políticos sob diferentes disfarces.” (p. 98)

> Tá explicado o motivo.

 

Bençãos bibliográficas

“Alguns livros sobrevivem à destruição de uma biblioteca, e alguns autores se agarram à jangada de seus livros sobreviventes. Outros, porém, se vão junto com o edifício que os abrigava. meu professor de latim diria: ‘Devemos nos sentir gratos por não saber quais os grandes livros que pereceram em Alexandria, porque, se soubéssemos, ficaríamos inconsoláveis.” (p. 75)

> E como nos consolar dos livros que nunca teremos tempo de ler?

“Toda literatura preserva alguma coisa que de outro modo morreria com a carne e os ossos do escritor. Ler é resgatar o direito a essa imortalidade humanam uma vez que a memória da escrita é abrangente e ilimitada.” (p. 157)

> Para o bem ou para o mal, postar, ato com interesse efêmero, também redunda num ato de memória abrangente e ilimitada.

 

Magia bibliográfica

“Cada vez que usamos palavras para expressar alguma coisa, simultaneamente fazemos uma declaração de fé no poder da linguagem para recriar e comunicar nossa experiência do mundo, e admitimos nossa incapacidade de descrever tal experiência por completo. A fé na linguagem é, como toda fé verdadeira, inalterada pela prática diária que contradiz suas reivindicações de poder (…).” (p. 82)

> A fé na linguagem de gênero neutro no português.

“E, no entanto, para engajar o leitor num contrato mútuo de fé, o escritor precisa fingir que a realidade retratada em palavras é factualmente precisa e coerente. Tão enraizado é esse procedimento que um escritor com frequência tenta ocultar a suposta precisão com truques retóricos: por exemplo, não revelando tudo (‘Numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar’) ou fingindo não revelar tudo (‘Me chame de Ismael’).” (p. 107)

> A gente abre um livro e já se entregou ao autor.

“A psicanálise nos ensina que nossa psique aprender a ler uma narrativa nessa aleatoriedade, mas o fato é que somos capazes de ler narrativas em qualquer coisa, mesmo num cosmos absurdo. Afinal de contas, talvez a melhor descrição para nossa espécie seja algo como ‘composta de animais que leem’.” (p. 107-108)

 

Maturidade bibliográfica

“Caberia explicar aqui que não costumo procurar novidades e excitação. Não busco satisfação em aventuras, e sim na rotina, Em especial, ao me aproximar dos setenta anos, sinto prazer naqueles momentos em que não preciso refletir sobre os atos cotidianos.” (p. 46)

> Quero chegar ao prazer de não precisar ter opinião sobre assuntos que me interrogam.

“Ser doente, ser deprimido, ser pobre não contribui para gerar gênios criativos; isso só serve para reforçar a ideia de que os ricos mecenas gostam de ter a respeito do artista para assim justificarem seu pão-durismo. Conta-se uma anedota sobre o magnata da indústria cinematográfica Samuel Goldwyn quando tentou comprar os direitos de uma das peças teatrais de Shaw. Goldwyn, sendo quem era, ficou barganhando o preço até que Shaw se recusou a vender. Goldwyn não conseguiu entender por quê. ‘O problema, Mr. Goldwyn’, disse Shaw, ‘é que o senhor só está interessado na arte, e eu só estou interessado no dinheiro.'” (p. 54)

> Parece-me que Cacilda Becker teria dito “não me peça para dar de graça a única coisa que tenho para vender.”

“Imaginar a retaliação significa essencialmente inventar histórias, um exercício gratificante e saudável. Em tais fantasias, é possível ver-se que a justiça está sendo feita de algum modo, e a satisfação vem da consciência intelectual da necessidade não de vingança, mas de não permitir que o mal deixe de ser reconhecido.” (p. 61)

> Acabo de perceber que a psicoterapia é um longo processo de imaginar retaliações, tão mais convincente quanto feito em companhia de outrem.

“Os livros sempre falaram por mim, e sempre me ensinaram muitas coisas bem antes que elas chegassem materialmente em minha vida. Os volumes físicos foram para mim algo muito semelhante a criaturas de carne e osso, que compartilham de minha cama e de minha mesa. Essa intimidade e confiança começam cedo entre os leitores.” (p. 68)

> Ao comprar um exemplar em livraria, sempre busco, quando há várias cópias, aquela mais ao fundo ou ainda embalada em plástico. Talvez seja o pudor de trazer à cama alguém que já passou por várias mãos.

” (…) Perdi minha língua natal’, ela [avó de Manguel] dizia numa curiosa mistura de russo, iídiche e espanhol. ‘Perder as coisas não é tão ruim porque você aprende a desfrutar não do que tem, mas do que se recorda. As pessoas deviam se acostumar com a perda.” (p. 80)

> Não lembre qual autor disse que um escritor necessitava do exílio, ainda que autoimposto, pra conseguir falar de casa. Hemingway, talvez?

“Os velhos pecados projetam longas sombras.” (p. 150)

> O hábito também sedimenta a doença.

 

Exílio bibliográfico

“Os judeus creem que os seres humanos são feitos de tempo, que uma continuidade ritual flui por suas veias remontando aos tempos distantes de Abraão. Talvez seja por essa razão que para os judeus a perda não é vital: o ritmo de vida continua, apesar do desaparecimento de coisas materiais. Os judeus, afinal, são um povo nômade, para quem deixar coisas para trás representa uma experiência cotidiana, para quem o exílio é uma condição de ser, e o fato de se estabelecer em algum lugar significa uma mera parada na fuga do Egito.” (p. 94)

> Gostaria de ter o talento de Manguel pra escrever sobre o que é ser brasileiro, um povo marcado pelo colonialismo; ser roubado por políticos e pelas elites é apenas um eterno repetir de nossa condição Tordesilhas.

“Entretanto, caso admitamos que a vida real (que com bastante êxito retratamos em nossas histórias) também tem sua própria incoerência, então o relato de sonhos pode ser visto simplesmente como outra maneira de contar histórias, nem mais nem menos precisa que um romance realista.” (p. 108)

> Temos afasia para sonhos. Nunca me deparei com alguém que pudesse narrá-los como os sonhou. Se são narrados, já não são mais sonhos.

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2023

MANGUEL, Alberto. Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões. Tradução Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 176 p.

 

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