Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > botânica > Éloge de la plante – Francis Hallé
Francis Hallé é o tipo do botânico que consegue partir de uma discussão com interesse puramente técnico – se a lignina é ou não um dejeto metabólico de plantas – para escrever uma obra poética que alcança as massas. E por isto é um de meus heróis.
A tese do livro é de que percebemos animais e plantas de uma forma assimétrica, dando muito mais atenção e valorizando bem mais aqueles que estas. Essa assimetria possui raízes profundas nas civilizações humanas e as deitou inclusive na biologia, que quando estuda anatomia e fisiologia coloca o organismo animal como prototípico e todos os demais como deficientes divergentes em relação ao protótipo. Francis, então, busca resgatar uma forma de estudar anatomia – a anatomia comparada – para colocar a botânica no seu devido lugar: a ciência que estudar os seres vivos que nos permitem viver.
As traduções das citações originais em francês são minhas, posto que este livro não está publicado no Brasil.
Deslumbramento
“Qual é o melhor antídoto às trepidantes restrições de nossa vida urbana senão o espetáculo de um jardim cheio de árvores? As plantas também têm este mérito: o de nos conduzir de forma direta aos arquétipos de nosso inconsciente coletivo.” (p. 10 – trad. livre Mayra C. e C.)
– Embora o valor do banho de floresta já tenha sido provado, ir a floresta é um tanto quanto inalcançável a maior parte das pessoas. Mas ir a parques que tenham efetivamente árvores altas com sombras é mais viável. E falo em árvores altas com sombras porque existe esta coisa no Brasil que é de arrancar árvores e fazer extensos gramados e chamar isto de parque, quando o nome mais apropriado seria o de pastos urbanos.
“How treelike we are./how human the tree – Gretel Ehrlich, River History, 1988″ (p. 17)
– Esta citação foi escolhida por Hallé para abrir o primeiro capítulo do livro. Achei de uma beleza tocante: Como somos árvores e quão gente são elas – é a forma como eu traduziria pra guardar o ritmo.
“Não tenho a intenção de ser filósofo, mas os significados profundos me interessam.” (p. 116, trad. livre Mayra C. e Castro)
– A muitos também, Francis.
“Um contato, mesmo rápido, com estes cimos de suavidade olfativa nos deixam com a cabeça aturdida de felicidade, uma embriaguez de leveza e de confiança no futuro. Eu desconfio que se familiarizar com estes perfumes é capaz de modificar de forma duradoura tanto sua personalidade quanto sua visão de mundo.” (p. 176, trad. livre Mayra C. e C.)
– Desnecessário convencer disso a uma aromaterapeuta.
“Em biologia, as generalizações são imprudentes (…).” (p. 203, trad. livre Mayra C. e C.)
– Nunca se diz nunca, nunca se diz sempre.
“Ainda que não seja sua característica principal, ocorre que a pesquisa científica dá bastante prazer.” (p. 268, trad. livre Mayra C. e C.)
– Deve ser por isso que se suporta a tortura do mestrado e do doutorado.
” ‘O paraíso não é um apêndice da botânica?’ – Emil Michel Cioran, O crepúsculo dos pensamentos, 1940.” (p. 319, trad. livre Mayra C. e C.)
– Temos que reescrever a frase de Borges: sempre imaginei que o paraíso fosse uma floresta.
“Reparou como, por meio de Cioran, que um jardim botânico é frequentemente a imagem do Paraíso? Um zoológico, não importa como, parece mais com o Inferno.” (p. 326, trad. livre Mayra C. e C.)
– Sim, quando tudo está uma baderna, ninguém diz que se parece com um jardim, mas com um zoológico.
“Quando as degradações em nosso ambiente nos inquieta, quando o trio concreto-betume-carro tem a cor do Inferno e o odor do esgoto, deveríamos nos inspirar nas plantas, em sua sobriedade, prudência, dignidade. Assim o futuro do planeta seria menos sombrio.
“Em nosso mundo de espetáculo, dinheiro, marketing, barulho, poluição e brutalidade, que melhor testemunho senão o das plantas, belas e úteis, discretas e autônomas, silenciosas e de uma total não-violência?” (p. 328, trad. livre Mayra C. e C.)
Cegueira vegetal
“O termo botânica, que designa a ciência das plantas, provém, contudo, por sua etimologia, de animal: boton, em grego antigo, designava uma animal no rebanho e botanê, a forragem.” (p. 20, trad. livre Mayra C. e C.)
– É irônico que o termo botânica tenha surgido da prevalência (bíblica, podemos dizer) dos animais sobre as plantas.
“A assimetria em questão não é absolutamente ligada à mentalidade europeia. A tradição mulçumana (hadith) autoriza a representação das plantas, mas proíbe a de animais e, a fortiori, a de seres humanos ‘afim de não concorrer com o Criador”. Para o Islã clássico, as plantas não são criações de Deus. Para muitos de nossos contemporâneos, elas não são nem mesmo vivas.” (p. 20, trad. livre Mayra C. e C.)
– Aqui Hallé retoma faz referência a um exemplo recorrente em suas palavras: uma pessoa chega em ilha tropical, deserta, e diz: “não tem nada vivo aqui”. Mas como não teria, se há pantas?
“A Terra, para Ptolomeu (séc. II a.C.), era o centro do Universo. O homem, para os cientistas do final do séc. XX, está no centro da biologia; contemplarmos nosso umbigo ainda é o que fazemos de melhor.” (p. 21, trad. livre Mayra C. e C.)
– A sedução da antropomorfização é irresistível. Será que fazemos isso apenas com aquilo que amamos muito, como com pets? Se amarmos muito as plantas, elas obterão direitos e passaremos a lhes fazer festas de aniversários como fazemos para nossos cães?
“Com que olhos é preciso enxergar as plantas a fim de realmente as ver, finalmente desembaraçadas das teias de aranhas da rotina, da poeira dos hábitos?
“Com o ‘olho mágico’, talvez. (…) Bruscamente, a imagem se torna luminosa, profunda, fascinante, rica em estruturas imprevisíveis e de topografias insuspeitadas nas quais os olhos, observando sem esforço, passeiam com prazer.” (p. 29, trad. livre Mayra C. e C.)
– Enxergar as plantas em toda sua glória requer um rito de iniciação. Como no filme Matrix, é preciso que alguém nos desvende os olhos. Como Neo quando começa enxerga tudo em código fonte, passamos a enxergar seu código verde que está na base de nosso planeta.
“Além de sua banalidade, que frequentemente mascara seus charmes, as plantas sofrem de um outro prejuízo: seu mistério. Isso pode parecer contraditório, mas é assim mesmo: elas são ao mesmo tempo comuns e misteriosas e, pelo menos na aparência, estritamente impenetráveis.” (p.
– Algo comum – porque está em todo lugar – e ao mesmo tempo misterioso – porque sua vida é desconhecida – pode gerar esta atitude de desinteresse que vemos comumente para com as plantas. Supõe-se que, como elas sempre estivera lá, continuarão existindo, e se perde de vista o impactam que causam.
“Se Hugo a Brassens, de La Fontaine a Valéry, de Éluard a Tolkien, inúmeros foram os que fizeram as árvores falar, aproveitando-se de sua incapacidade de se defender. Por que esta tendência de lhes adornar como nosso próprio brilho?” (p. 31, trad. livre Mayra C. e C.)
– Certamente, quando elas falaram rendem momentos de grande impacto na literatura universal. Se falassem de verdade, imagine o impacto que causariam em nossas vidas?
“Bem ao contrário, as plantas representam para nós a alteridade absoluta (…).
“(…)
“Não há nenhuma necessidade de perspicácia psicológica para explicar a fascinação que exercem sobre a maioria de nós as plantas que crescem a olhos visto (Phyllostachys), as plantas que se mexem (Mimosa), aquelas que se colocam a dançar quando há barulho (Codoriocalyx), as que cheiram como merda (Aristolochia) ou a cadáver (Stapelia), bem como aquelas que cantam (Hernandia), etc.” (p. 35, trd. livre Mayra C. e C.)
– O livro Brilliant Green de Stefano Mancuso, sem tradução no Brasil apesar de seus outros títulos estarem, é exemplar na demonstração de como as plantas possuem todos os sentidos que humanos possuem e outros ainda.
“É da natureza do yang crer-se superior ao yin.” (p. 309, trad. livre Mayra C. e C.)
– Sempre!
“Também o ser humano depende totalmente das plantas para sua alimentação: seja ele vegetariano ou não, pouco importa. Sem as plantas, creio que ele deveria se alimentar de água e sal.” (p. 324, trad. livre Mayra C. e C.)
– É algo tão evidente que surpreende quem não enxergue assim.
“Pelo que sei, esta descrição de fatos não contém inverdades; contudo, ela não é realista, porque nossa linguagem não é adaptada às plantas: elas não sabem, não se utilizam de nade, não têm necessidades nem projetos nem objetivos. Nós usamos uma linguagem de animal que se presta mal à relação de uma verdade vegetal; mas os antropomorfismos são preferíveis às entediantes perífrases; então temos pouca escolha. A linguagem das plantas, se elas tiveram alguma, seria um pouco lenta…” (p. 325, trad. livre Mayra C. e C.)
Planta, o ser mais evoluído do planeta
“As árvores, algo ereto, duro, viril; e talvez esta seja uma das razões pelas quais a engenharia florestal, ainda hoje, é uma área de homens.” (p. 28, trad. livre Mayra C. e C.)
– Nunca deixou de refletir sobre o fato de, na língua francesa, óleo (essencial) ser uma palavra de gênero feminina e, árvore, masculina. Sempre me pergunto se a relação dos franceses com os óleos essenciais e com as árvores é diferente da dos falantes do português apenas por este detalhe.
“Elas não são belas, discretas, silenciosas, autônomas e, em geral, extremamente úteis? Temos algo a lhes reprovar?”(p. 28, trad. livre Mayra C. e C.)
– Desconfio que naturezas introvertidas tendem a gostar mais de plantas que as extrovertidas pelo simples fato de sentirem mais à vontade na companhia de seres mudos.
“Eu ainda vejo como se fosse o exato momento em que me tornei botânico. Na época, como estudante na Sorbonne, eu me sentia mais interessado pela zoologia e paleontologia. Na minha janela no Quartier Latin, acima dos telhados cinzas, em um vaso abandonado, dentro da terra empoeirada dentro dele e à qual eu jamais havia prestado atenção antes, germinou uma semente numa certa manhã de abril e uma planta começou a crescer. Eu não tinha nenhuma ideia do que ela poderia ser, nem da maneira como ela poderia ter aparecido naquele lugar; eu a observei crescer, dia após dia, até que ela começou a produzir flores, minúsculas, mas de uma aparência muito pura e rigorosa, e depois frutos em uma forma engraçada e cheia de sementes. Esta linda intrusa, capaz de crescer e de se reproduzir sozinha, sob o céu parisiense cor de concha de caramujo, bruscamente me pareceu simbolizar a vida naquilo que ela possui de mais belo.” (p. 30, trad. livre Mayra C. e C.)
– Nem todos possuem a sorte de um momento “arrá” como este na vida, quando tudo faz sentido e a gente se sente encaixado em nosso propósito. Mas saber que ele ocorre alimenta a esperança para toda uma vida errante. Hallé continua narrando sobre este momento:
“Mais tarde, aprendi o nome [da planta que cresceu]: capsela; então eu saí do Quartier Latin e, para manter o olho mágico, confraternizei com as mais belas árvores do mundo; quarenta anos se passaram, mas a lembrança deste instante de lucidez está sempre presente.” (p. 30, trad. livre Mayra C. e C.)
– Não é realmente linda esta história de Hallé?
“(…) as plantas estão aí, verdes, silenciosas, estranhas companheiras com as quais o diálogo é raro, tanto elas tornaram seu laconismo em princípio. Elas parecem imóveis, mas é porque vivem em um tempo diferente do nosso.” (p. 30, trad. Mayra C. e C.)
– Há diálogos pela internet, que já mencionei neste blog e no da Casa Máy, entre Francis Hallé e um engenheiro florestal suíço, Ernst Zürcher, em que abordam estes seres que são os senhores do tempo, por viverem muito, e os senhores do espaço, por se estenderem para o céu, para dentro da terra e sobre a terra. Lindo, lindo.
“Digamos sem rodeios: foi um deus jacobino que criou o homem, um deus pesado, invejoso, autoritário, policialesco, feroz, com poderes concentrados, intervencionista a qualquer custo em nome de seu apelido de todo-poderoso.” (p. 102, trad. livre Mayra C. e C.)
– Hallé é um gnóstico cátaro?
“Como diz aliás lindamente Michel Valantin, as plantas viajam por meio de sua mais nobre conquista, o homem.” (p. 111, trad. livre Mayra C. e C.)
“Uma árvore, no começo de sua existência, sempre tem uma arquitetura unitária; depois, quanto mais a luz for abundante, outras unidades arquiteturais se juntam à primeira e a árvore não para mais de acumular assim unidades reiteradas, ou reiteratos.” (p. 115, trad. livre Mayra C.e C.)
– A discussão sobre a unidade nas plantas é fascinante.
“O animal sabe o que toma, mas ignora o que dá. E a sutileza da planta aparece nesta possibilidade que ela tem de manipular o animal através de compostos secundários, tóxicos, coloridos ou voláteis.” (p. 171, trad. livre Mayra C. e C.)
– Na web dizemos que se o serviço é de graça, o que se comercializa são seus dados. Se parece que respiramos de graça, é porque o pagamento é nós mesmos.
“Para retomar uma bela comparação feita por Virginia Walbot, a situação, com as plantas, é comparável àquela de um animal que fosse capaz de produzir seus gametas a partir das células de sua pele!” (p. 194, trad. livre Mayra C. e C.)
– Aqui Francis comenta sobre as duas fases vegetais, haploide e diploide.
“Suspeitamos aliás por que isso ocorre: nas plantas, a plasticidade do organismo seria um substituto à mobilidade.” (p. 202, trad. livre Mayra C. e C.)
– Uma decisão – ser fixo – e tantas consequências!
“As plantas são bem mais tolerantes que os animais às modificações cromossômicas.” (p. 205, trad. livre Mayra C. e C.)
– É surpreendente que, em uma mesma planta, possa haver partes geneticamente diferentes.
“Constata-se, de toda forma, que os animais protegem seus embriões ao passo que as plantas expõem seus meristemas aos raios mutagênicos.” (p. 212, trad. livre Mayra C. e C.)
– Isto é o que se chama “o que não mata me fortalece”.
“Contrariamente ao que ocorre com os animais, de insetos aos vertebrados, nenhum mecanismo que vise eliminar células com modificações genéticas existe nas plantas, o que é favorável à manutenção da diversidade genética no seio de uma mesma planta.” (p. 218, trad. livre Mayra C. e C.)
– A razão: vivem muito, então a diversidade genética lhes ajuda a se adaptar às mudanças.
“Se se somarem todos os mecanismos geradores de diversidade genética em curso nas plantas, o crescimento meristemático indefinido, uma taxa de mutação que seria superior à dos animais, uma longevidade geralmente muito elevada, a ação mutagênica dos raios UV e as diversas outras restrições impostas pelo ambiente, pode-se perguntar o que persistiria do genoma inicial, aquele da célula-ovo, no final da vida de uma grande árvore.” (p. 224, trad. livre Mayra C. e C.)
“Como uma planta faz para continuar sendo ela mesma já que seu genoma se modifica e se diversifica continuamente?” (p. 224, trad. livre Mayra C. e C.)
– Justamente!
“Entre os atributos da vida fixada, parece possível contar a arquitetura, a plasticidade corporal, a multiplicação vegetativa, a regeneração, a reiteração e a coloniaridade, um ‘modo de vida altamente desenvolvido fundado no sacrifício do indivíduo’.” (p. 287, trad. livre Mayra C. e C.)
– Um comunismo que efetivamente funciona.
“Auguste Bravais inspirou seguidores, entre eles alguns que viram entre plantas e cristais bem mais que curiosas semelhanças. Para Henri Doffin, a planta é um cristal e seus argumentos merecem reflexão. Um cristal, como uma planta, é o resultado de um crescimento.” (p. 294, trad. livre Mayra C. e C.)
– Quando um botânico com gosto por pensamentos heréticos se mete a refletir, só sai coisa interessante, não é mesmo?
“Com o movimento da uma varinha mágica, suprima toda a fauna de uma floresta e deixe somente as plantas. O que vai ocorrer? Nada; nada durante anos, talvez durante séculos. As plantas continuarão a crescer normalmente.” (p. 313, trad. livre Mayra C. e C.)
– Não tenho certeza, mas suponho que fungos e bactérias não tenham entrado no golpe da mágica.
“É que as plantas têm uma grande experiência em lidar com dificuldades.” (p. 313, trad. livre Mayra C. e C.)
– A meus alunos, sempre lhes digo: na dúvida, faça como as plantas.
“O geneticista Axel Kahn, em uma conferência pública (13 de janeiro de 2004), expôs um ponto de vista extraordinariamente inovador: ‘Vocês têm razão’, disse ele a seus colegas biólogos, ‘mais um organismo é evoluído, mas genes ele possui; nós devemos nos render à evidência, o arroz é mais evoluído que nós.’ O auditório, chocado, pediu que o orador explicasse esse paradoxo. ‘Tentem’, respondeu Axel Kahn, ‘passar sua vida toda com os pés na água, tendo por alimento gás carbônico e luz solar; evidentemente, você não conseguiria. O arroz, quando a ele, é capaz e graças a seu genoma bem mais completo que o do ser humano; este último, como outros animais móveis, vive em condições fáceis e relativamente ao abrigo das restrições.'” (p. 322, trad. livre Mayra C. e C.)
– Como se quer demonstrar…
A “essência da plantitude”
“Gostaria de exprimir minha convicção de que o conhecimento da forma – de um objeto, de uma planta, de um animal – dá acesso a bem mais informações essenciais que uma investigação analítica em um domínio quantificável qualquer.
“(…)
“É mais eficaz apreender a forma que se limitar a um punhado desses trabalhos analíticos, sobretudo não forem acompanhados – como infelizmente é muito o caso – de um olhar sobre a planta.”
“(…)
“A forma é um integrador das tendências internas, da qual nos oferece instantaneamente um síntese poderosa.” (p. 40, trad. livre Mayra C. e C.)
– E nisso penso que Goethe concordaria com ele.
(p. 40, trad. livre Mayra C. e C.)
“Um animal? Uma planta desconcertante, virado do avesso como uma luva, que teria escondido suas folhas e suas raízes em seu tubo digestivo. Uma planta? Uma espécie de animal fabuloso, revirado dentro-fora, e que portaria suas entranhas como se fosse pelugem.” (p. 47, trad. livre Mayra C. e C.)
– A parte mais interessante – e maior – deste livro de Hallé é a comparação que ele faz entre animais e plantas de um jeito bem especulativo.
“Uma outra diferença entre esses dois reinos aparece aqui. O animal possui inúmeros órgãos, cada um em pequeno número de exemplares – um cérebro, dois olhos em geral, um coração, um órgão sexual, dois rins, um fígado, uma boca, etc. -, ao passo que a planta é constituída, em tudo e de tudo, por apenas e órgãos observados por Goethe – a raiz, o caule e afolha; mesmo a flor, o fruto e a semente são redutíveis a estes três órgãos.” (p. 98, trad. livre Mayra C. e C.)
– Você pode ler a resenha de A metamorfose das plantas de Goethe aqui no blog.
“É uma tradução ruim da realidade dizer que a planta pode crescer indefinidamente; na realidade, ele deve fazê-lo ao ponto de morrer caso seja impedida de aumentar suas dimensões. A vida de uma planta se confunde com seu crescimento. Um anel metálico em volta do tronco de um plátano o impede de crescer em diâmetro e ele morre; um anel metálico em volta do pescoço da minha filha a torna uma coquette parisiente – ele é chamado simplesmente de gargantilha e imagino que lhe faça na verdade prazer.” (p. 100, trad. livre Mayra C. e C.)
– Você pode imaginar que o dano da gargantilha não ocorre porque pode ser tirado e colocado ao final do dia, mas pense em outros tipos de constrições ao crescimento que foram mapeados em algumas culturas e que, antes de matar a pessoa, apenas a deforma.
“Fixo não significa imóvel.” (p. 104, trad. livre Mayra C. e C.)
– Erro comum, ensinar sobre as plantas dizendo que são imóveis. Não são: são fixas no solo – e mesmo nele se movem.
“Maio de 1997. Vê-se nos muros da cidade um retrato de Juliette Binoche para o perfume Poême de Lancôme. Normalmente, as propagandas são fracas, mas esta possui um lado profundamente vegetal que me toca: o rosto radiante de Juliette, um pequeno frasco dourado e a frase ‘Dizer tudo sem uma palavra…’. Beleza, sil~encio, perfume; como expressar melhor, além da poesia das plantas, seu verdadeiro estilo de funcionamento em relação aos animais? Dizer tudo sem dizer uma palavra e, eu acrescentaria, fazer tudo sem um gesto – ei uma digna introdução à bioquímica das plantas.” (p. 152, trd. livre Mayra C. e C.)
– Como não amar Hallé?! Aqui está a peça publicitária em questão:
“Mesmo quando elas estão mortas e decompostas, o perfume que desprendem é antes melancólico que agressivo e é perfeitamente possível gostar do cheiro da morte das plantas, do cheiro das madeiras derrubadas e das serrarias, do cheiro das carpintarias e dos cascos de velhos barcos, do cheiro das folhas mortas, da madeira apodrecida, do humus ou do sub-bosque.” (p. 156, trad. livre Mayra C. e C.)
– E o que falar do oud, do sândalo, do patchouli apodrecendo e de tantas outras plantas que acabam tendo seus óleos essenciais melhorando se a planta é deixada um pouquinho descansando depois de ter sido cortada?
“Reiteração e coloniaridade são comuns a árvores e corais. Em destaque nas árvores, a reiteração – repetição total ou parcial da arquitetura – foi encontrada posteriormente nos corais.
“A natureza de formar colônias é conhecida há muito tempo nos corais, cujo indivíduo elementar é o pólipo. Ao contrário, a coloniaridade das árvores é um conceito recente. Na colônia que representa a árvore, a unidade elementar é o reiterado. Reiteração e coloniaridade se opõem ao caráter unitário dos animais livres e móveis, e à sua incapacidade de repetir sua sequência de morfogênese.” (p. 271, trad. livre Mayra C. e C.)
– Parece que a liberdade sempre cobra um preço alto. Justamente por isso muitos a acusam de ser um luxo.
“Lembramos que se entre os animais livres existem alguns exemplos de plasticidade corporal, estes últimos são raros. No conjunto, os animais preferem antes fugir que deixar as vicissitudes do ambiente modificar seus organismos corporais; o que eles possuem de mais plástico é seu comportamento – e não o seu corpo.” (p. 280, trad. livre Mayra C. e C.)
– Imagine como seria apaixonante aprendermos biologia desta forma comparada e não da forma hierárquica e cheia de conceitos áridos como ocorre, inclusive em matérias do ensino superior.
“É por isso que este duplo mecanismo de hibridização interespecífica + poliploidização é um dos mais importantes na evolução das plantas: 75% das angiospermas e 95% das samambaias seriam poliploides.” (p. 282, trad. livre Mayra C. e C.)
– Fantástico!
“Claro, o animal também precisa se acomodar a leis físicas, mas o faz em um estilo bem pessoal: pelo fato de ser móvel, ele procura antes escapar as dificuldade que se submeter a elas. Talvez seja possível apresentar a evolução animal como um aumento dos graus de liberdade, conduzindo à aquisição de uma autonomia cada vez mais completa face às restrições do ambiente. Ao contrário, a evolução das plantas seria uma adaptação cada vez mais direcionada à dura realidade, uma integração cada vez mais completa ao ambiente (…). O animal nos dá a imagem de sua própria liberdade; a planta, mais modesta, traduz as restrições do meio.” (p. 299, trad. livre Mayra C. e C.)
“Talvez, à transcendência do animal e do ser humano oponha-se a imanência da planta.” (p. 300, trad. livre Mayra C. e C.)
– É interessante pensar que o paganismo cultue animais e plantas, pois cultuar ao mesmo tempo o transcendente e o imanente parece ser essencial à religiosidade humana.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024
HALLÉ, Francis. Éloge de la plante: pour une nouvelle biologie. Paris: Éditions de Seuil, 1999. E-book.