Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crítica literária > Confissões de um Jovem Romancista – Umberto Eco
Umberto Eco considerar-se um jovem romancista à altura em que escreveu este livro não deixa de ser fofo. Lançado em 2011 (traduzido no Brasil inicialmente pela extinta Cosac Naif em 2013), Confissões de um Jovem Romancista traz curtos ensaios sobre o ofício de escrever de alguém que já tinha publicado (e ficado famoso por) O Nome da Rosa (1980), O Pêndulo de Foucault (1988), A Ilha do Dia Anterior (1994) e Baudolino (2000). Romances demais pra alguém se considerar um novato na área.
A gente adora saber sobre os processos criativos de nossos escritores favoritos – e eles sabem que adoramos e sei que amam falar sobre isso, pelo menos os não-rabugentos. Já frequentei muitas oficinas de escrita com escritores brasileiros famosos pra saber que, lá pelas tantas, alguém na sala sempre pergunta: tá, mas e aí, me conta: como você escreve. A resposta mais pragmática que ouvi foi o Luiz Ruffato: sento e escrevo, como um operário (ele sempre se define como um operário da escrita). A mais deliciosa foi do Antoio Torres: ouvindo Thelonius Monk. Umberto Eco escreve apenas depois de exaurir a paisagem onde seu romance será ambientado. Assim, ele saberá, de antemão, a geografia precisa por onde pisarão seus personagens.
Se você tiver curiosidade suficiente pra ler alguns livros “confessionários”, gosto bastante do A Arte da Escrita, do Stephen King. Aqui no blog há resenhas de livros com entrevistas a autores: o Perfis e Entrevistas de Daniel Piza, e As Melhores Entrevistas do Rascunho Vol.1, organizado por Luiz Henrique Pellanda. E se quiser ir por outro caminho, o da paixão por livros que sempre transparece quando escritores falam sobre seu ofício (com ou sem angústia da influência da Bloom), gosto por demais do Não Contem com o Fim do Livro, que reúne diálogos entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, além do delicioso A Biblioteca à Noite, de Alberto Manguel.
Mas este livro que ora resenho do Eco não é uma leitura empolgante o tempo todo. Pelo contrário, há um capítulo em que ele discorre sobre listas que é infidável e chato como todas as longas listas são. A leitura também ficará enfadonha se você não tiver lido alguns de seus livros, porque não conseguirá se situar no que ele estará falando. De toda forma, ler escritores de tamanha erudição já me deixava boquiaberta quando eu era adolescente. Passados trinta anos – e nestes tempos de leituras espasmódicas – , mais boquiaberta fico ainda. Há espaço ainda pra eruditos como Umberto Eco? Sinceramente, espero que sim.
Finalmente, uma última palavra. Há grande possibilidade de você ter ouvido falar de Umberto Eco não pelo O Nome da Rosa, como ocorreu com minha geração, mas por Luiz Felipe Pondé citá-lo sempre: a frase “a internet deu voz aos idiotas” (a frase original é ligeiramente diferente. Recomendo assistir a esta pequena entrevista do Leandro Karnal comentando a citação). Bom, amplie seu repertório. Citar uma única frase de um pensador tão prolífico é uma pena. Quem sabe ler esta resenha não o incentive a mergulhar num romance ou em algum livro de semiótica e estética que ele tenha escrito, né? Seguem algumas melhores partes citadas e comentadas.
Questão de estilo
“Toda obra científica deve ser uma espécie de thriller – o relato de uma busca por algum Santo Graal.” (posição 71, edição do Kindle)
– Lamentavelmente, apenas sendo um Umberto Eco pra ter permissão de esrever tratados científicos assim.
“Desse modo, aprendi que um romance não é apenas um fenômeno linguístico. Em poesia, é difícil traduzir as palavras porque o que conta ali é o som, bem como os significados deliberadamente múltiplos; é a escolha das palavras que determina o conteúdo. Nas narrativas, temos a situação oposta: é o universo que o autor construiu e os eventos que ali ocorrem que regem o ritmo, o estilo e até mesmo a escolha do vocabulário. A narrativa é orientada pela regra latina ´Rem tene, verba sequentur´ – ´Conheça o assunto, e as palavras irão fluir´ –, ao passo que em poesia devemos mudar o ditado para ´Conheça as palavras, e o assunto irá fluir´.” (posição 137, edição do Kindle)
– No livro Subliminar, já resenhado aqui, Leonard Mlodinow cita estudos mostrando que somos capazes de interpretar o sentido de um texto e a emoção nele contida mesmo se não entendermos uma palavra que lá está dita (literalmente, sem as entender, porque elas foram gravadas e depois misturadas pra formar algo sem sentido). Por isso, penso aqui, que amamos poesia mesmo que não entendamos nada; e conseguimos gostar de músicas estrangeiras mesmo sem entender palavra nenhuma. Aliás, é muito comum entendermos a letra de uma música estrangeira e passarmos a gostar menos dela.
“Um dicionário é, conforme disse Joyce em Finnegans Wake, um livro escrito por um leitor ideal sofrendo de uma insônia ideal.” (posição 368, edição do Kindle)
– Sempre amei dicionários, tanto que vira e mexe compro algum temático, já que os de significados de palavras estão disponíveis na internet. Uma de minhas memórias mais gostosas é de carregar o Aurélio pra mesa de jantar e ficar testando os conhecimentos de meu pai. Vez ou outra, checávamos se algumas palavras constrangedoras também figuravam no dicionário, como merda, puta, caralho – e chorávamos de rir ao descobrir que sim. Dicionários, assim como comerciantes, raramente se curvam a preconceitos.
“Não precisamos conhecer latim para apreciar listas como essas. O que conta é a obstinação da enumeração; o tópico da listagem – neste caso, os traços arquitetônicos da cidade – é irrelevante. O único propósito verdadeiro de um bom rol é transmitir a ideia de infinidade e a vertigem do et cetera.” (posição 1436, edição do Kindle)
– O verbo correto que descreve como nos dirigimos a listas longas não seria exatamente “apreciar”. A atividade de ler uma lista longa item por item é uma espécie de masoquismo.
“Pergunto-me se já elaborei uma lista verdadeiramente caótica. Como resposta, devo dizer que só poetas criam listas caóticas genuínas. Romancistas são obrigados a representar algo que ocorre num determinado espaço e tempo, e, quando fazem isso, sempre projetam um tipo de moldura dentro da qual qualquer elemento incongruente é de certa forma ´colado´ a todos os outros.” (posição 2107, edição do Kindle)
– É por isso que sustento que escrever poesia é questão de temperamento. Há aqueles que são pouco afeitos a ilimatações.
Questão de segredo
“Para escrever um romance bem-sucedido, é preciso manter certas fórmulas em segredo.” (posição 272, edição do Kindle)
– Esta é uma desculpa muito elegante pra quando você não tem a menor ideia de como chegou no efeito literário que chegou. Claro que não é o caso do Eco.
“´Duplo código´ é o uso concomitante de ironia intertextual e implícito apelo metanarrativo. O termo foi cunhado por Charles Jencks, para quem a arquitetura pós-moderna ´fala em pelo menos dois níveis ao mesmo tempo: para outros arquitetos e uma minoria interessada que se preocupa com significados especificamente arquitetônicos, e para o público em geral, ou os moradores locais, que se preocupam com outras questões relativas ao conforto, aos aspectos costumeiros da construção e ao estilo de vida´. Ele explica melhor: ´A obra de arte ou o edifício pós-moderno se dirigem simultaneamente a uma minoria, uma elite que emprega códigos ‘elevados’ e um público de massa que utiliza códigos populares´”. (posição 294, edição do Kindle)
– Ou seja: coloque easter eggs em suas criações pros iniciados.
“Mas a literatura, suponho, não se destina apenas a divertir e consolar as gentes. Ela também se propõe a provocar e a inspirar as pessoas a ler o mesmo texto duas vezes, talvez até mesmo várias vezes, porque querem entendê-lo melhor. Por isso, creio que o duplo código não é um tique aristocrático, mas uma maneira de mostrar respeito pela inteligência e boa vontade do leitor.” (posição 315, edição do Kindle)
– O aristocrático não está no duplo código; está no suporte literário. Quantos leem livros? Quantos leem um mesmo livro 2x?
Questão de não viajar na maionese
“O texto é uma máquina preguiçosa que exige que os leitores façam a sua parte – ou seja, é um mecanismo concebido para suscitar interpretações […]” (posição 351, edição do Kindle)
“Quando se tem um texto a ser questionado, é irrelevante perguntar ao autor. Ao mesmo tempo, o leitor não pode dar nenhuma interpretação simplesmente com base em sua imaginação, mas deve ter certeza de que o texto de certo modo não apenas legitima, mas também encoraja determinada leitura.” (posição 353)
– Ou seja, chuchu, você tem alguma trabalho a fazer, mas não viaje na maionese. Umberto Eco avisa que há os “direitos do texto” e dos “direitos do intérprete”. Infelizmente, hoje em dia, as pessoas ignoram os primeiros e depois culpam os fatos de lhes trazerem vertigem.
“Um texto é um mecanismo concebido a fim de produzir seu leitor-modelo.” (posição 415, edição do Kindle)
– Em meu trabalho como tradutora de livros de aromaterapia, deparei-me com algumas decisões difíceis, como a que a revisão me impunha de padronizar indicações terapêuticas com óleos essenciais feitas pelo autor quando ele mesmo não as tinha padronizado. Resisti bravamente a isso. Argumentei que um autor pressupõe posturas de seu leitor e, no caso de Danièle Festy, de quem já traduzi 4 livros, é que ele não seja tutelado nem mimado. Por isso, mantive todas as imperfeições do livro, todas as incongruências, todos os pequenos pecados que poderiam ser corrigidos por uma tradução mais aberta. Esta coisa de leitor-modelo, autor-modelo, auto-empírico, leitor-empírico do Eco é coisa séria.
“Entre a intenção inacessível do autor e a intenção discutível do leitor, há a intenção transparente do texto, que refuta interpretações insustentáveis.” (posição 596, edição do Kindle)
– Ater-se ao texto não é fácil. É mais uma questão de fé, por paradoxal que seja.
“Eu não sou o que certos departamentos acadêmicos americanos depreciativamente denominam um ´textualista´ – alguém que acredita (como alguns desconstrutivistas) que não há fatos, apenas interpretações, isto é, textos.” (posição 933, edição do Kindle)
– Particularmente, me agrada estender um argumento até o absurdo e depois voltar a pôr os pés nos chãos. Isso nos torna mais tolerantes e, ao mesmo tempo, mais pragmáticos.
“Hoje, podemos de fato encontrar uma lista infinita de títulos: a world wide web é de fato a mãe de todas as listas, infinita por definição por estar em constante evolução, a um só tempo teia e labirinto. De todas as vertigens, a que ela nos promete é a mais mística; é quase totalmente virtual, oferecendo um catálogo de informações que faz que nos sintamos ricos e onipotentes. O único empecilho é que não sabemos que elementos se referem a dados do mundo real e quais, não. Não há mais distinção entre verdade e erro.” (posição 2257, edição do Kindle)
– A internet é a mãe de todas nossas mazelas emocionais.
Questão de empatia
“Os personagens de ficção vivem num mundo incompleto – ou, para ser rude e politicamente incorreto –, num mundo deficiente.” (posição 1243, edição do Kindle)
“A ficção sugere que nossa perspectiva do mundo verdadeiro talvez seja tão imperfeita quanto a visão que os personagens de ficção têm de seu mundo.” (posição 1246, edição do Kindle)
– “Somos da mesma matéria de que os sonhos são feitos, e nossa breve vida é circundada pelo sono” – Shakespeare, em A Tempestade.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2020
(Se compartilhar, por favor, cite a fonte. É algo simpático e eu fico agradecida.)
ECO, Umberto. Confissões de um jovem romancista. Tradução Marcelo Pen. São Paulo: Cosac Naif, 2013. 1ª edição eletrônica (Kindle), 2013.