Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > não-ficção > Anatomia de um epidemia – Robert Whitaker
Neste janeiro, li algumas notícias sobre como os medicamentos Z, da família do zolpidem, pra dormir, têm causado estragos na vida de pacientes que relatam acidentes, agressões, compras e até alucinações sob o efeito destas drogas. Fala-se muito sobre os benefícios da psicofarmacologia, constituindo-se quase um pecado propor alternativas a ela, e muito pouco sobre seus efeitos nocivos, pelo menos na mídia de massa.
Em uma das palestras de Joel Birman sobre o tema mal estar na modernidade/contemporaneidade, este famoso psiquiatra/psicanalista brasileiro fala sobre a prevalência da visão farmacológica sobre a saúde mental mais ou menos da seguinte forma: antes, os psiquiatras todos queriam ser psicanalistas; hoje, os psicólogos enviam seus pacientes ao psiquiatras pra tomar remédio senão não os aceitam na psicoterapia – aliás, os próprios psicólogos tomam psicotrópicos senão não conseguem trabalhar. Hilário, não fosse também preocupante este “assombroso aumento” da medicação psicotrópica em todas as faixas etárias, parafraseando o subtítulo da obra aqui resenhada.
Robert Whitaker é jornalista norte-americano e autor de alguns livros, três deles sobre a indústria farmacêutica da doença mental. Dono do site Mad in America, foi tanto ovacionado quanto repudiado pelo lançamento deste Anatomia de uma Epidemia, em que escancara os esforços da indústria farmacêutica e de organizações médicas e de pesquisa, nos Estados Unidos, pra cravar a materialidade dos neurotransmissores como causa e solução da doença mental desde a segunda metade do século XX. Em 2010, este seu livro ganhou um prêmio local de jornalismo investigativo e já foi traduzido em pelo menos 9 idiomas mundo afora. Eu o conheci através de uma aluna psiquiatra, apenas pra pontuar um disclaimer importante, o de que obviamente há médicos preocupados com a banalização da psicofarmacologia. No Brasil, o livro foi publicado pela Editora Fiocruz, mas está esgotado. Entretanto, em inglês está disponível na versão kindle.
A tese da investigação de Whitaker é que todo o conjunto de evidências que sustenta a psicofarmacologia é fraco e foi precocemente adotado pelos psiquiatras pra fazer frente à desvalorização da profissão. Se um ramo da medicina se alicerça na ideia de que a etiologia das doenças de que ela trata está no desequilíbrio de neurotransmissores e um jornalista diz que este desequilíbrio nunca foi provado com estudos dignos de confiança – bem, você pode imaginar a reação irada que o trabalho dele provocou, não?
Curiosamente, em julho do ano passado, li a repercussão de uma revisão sistemática conduzida pela Dra. Joanna Moncrieff, do departamento de psiquiatra da University College London, na qual ela sustenta ser falsa a hipótese de que a depressão tenha como causa um desequilíbrio químico. Traduzo sua declaração:
“É sempre difícil dar provas negativas, mas acho que podemos dizer com segurança que, após uma vasta quantidade de pesquisas realizadas ao longo de várias décadas, não há evidências convincentes de que a depressão seja causada por anormalidades de serotonina, particularmente por níveis mais baixos ou atividade reduzida. (…) Muitas pessoas tomam antidepressivos porque foram levadas a acreditar que sua depressão tem uma causa bioquímica, mas esta nova pesquisa sugere que essa crença não é fundamentada em evidências.”
Esta revisão é de 2022. A pesquisa de Whitaker é anterior a 2010 e ele afirmava exatamente isto: não há evidências de que um desequilíbrio químico esteja por trás dos fenômenos de doenças mentais. Ele também diz, como lembram os prefaciadores da edição brasileira, que “historicamente o que a psiquiatria tem feito é primeiro nomear transtornos para depois buscar causas biológicas” (p. 11). Não saberia dizer se não é assim na clínica médica de um modo geral, mas o que o autor quis ressaltar, com sua investigação, é de que as drogas psiquiátricas foram adotadas primeiro pelo efeito que causavam antes de se conhecerem os mecanismos da doença pras quais elas foram direcionadas.
A reação mais estruturada contra o trabalho do jornalista, logo após a publicação do livro, foi do advogado E. Fuller Torrey, que possui um escritório pra apoiar a internação e tratamento compulsório de pacientes com doenças mentais. No site Mad in America, Whitaker rebate cada argumento exposto por Fuller, como a outras críticas também. Minha intenção com esta resenha não é tomar partido nem de um lado nem de outro, porque não cabe a mim o diagnóstico da doença mental como aromaterapeuta. Mas cabe a mim, tanto como educadora em saúde, quanto como profissional de saúde integrativa, orientar as pessoas pra que questionem os pressupostos médicos sempre que se sentirem desconfortáveis e tomem suas decisões de tratamento da maneira mais informada possível.
Selecionei algumas melhores partes do livro pra compartilhar e comentar aqui na resenha. Antes, quero dizer que o livro traz depoimentos de pacientes e de profissionais entrevistados por Whitaker no decorrer do trabalho. Por isto, algumas citações talvez sejam relatos em primeira pessoa. Seguem.
A ciência também é um mercado
“A revolução psicofarmacológica nasceu de uma parte de ciência e duas partes de racionalização do desejo, confundido com a realidade.” (p. 63)
> Neste ponto, Whitaker discorre sobre como a hipótese do desequilíbrio químico resgatou a psiquiatria, nos anos 1940, de sua posição de irmão pobre da medicina. Pra isto, ele cita um artigo de 1996, da autoria de Steve Hyman, neurocientista que trabalhou na NIMH, em que se resumiram os estudos de 50 anos de drogas psicotrópicas, concluindo que, embora não fosse possível confirmar que os pacientes tivessem um desequilíbrio neuroquímico, era observado que, após iniciarem o uso dos medicamentos, seus cérebros começavam a funcionar de um jeito anormal. Se você conhece o argumento mais forte da psiquiatria acerca do tratamento medicamentoso da depressão – “é um problema de desequilíbrio químico no cérebro” -, causará espanto saber que está hipótese não foi confirmada no passado e continua sem confirmação no presente.
“O primeiro problema surgido para a psiquiatria foi um questionamento intelectual da sua legitimidade, um ataque lançado em 1961 por Thomas Szasz, psiquiatra da Universidade Estadual de Nova York em Syracuse. Em seu livro O Mito da Doença Mental, ele afirmou que os distúrbios psiquiátricos não eram de natureza médica, e sim rótulos aplicados a pessoas que lutavam com ‘problemas de vida’, ou simplesmente se portavam de formas socialmente desviantes. (…)
“Seu livro ajudou a lançar o movimento da ‘antipsiquiatria’, e outros acadêmicos dos Estados Unidos e da Europa – Michel Foucault, R. D. Laing, David Cooper e Erving Goffman, para citar apenas alguns – entraram na peleja. Todos questionavam o ‘modelo médico’ dos distúrbios mentais e sugeriam que a loucura podia ser uma reação ‘saudável’ a uma sociedade opressora. (…)
“O segundo problema enfrentado pela psiquiatria foi a concorrência crescente na disputa dos pacientes. Nos anos 1960 e 1970, floresceu nos Estados Unidos uma indústria da terapia. Milhares de psicólogos e orientadores começaram a oferecer seus serviços aos pacientes ‘neuróticos’ de que a psiquiatria se apossara desde que Freud havia trazido seu divã para o país. (…)”
“No fim dos anos 1970, os dirigentes da APA [Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria] falavam regularmente de como seu campo estava numa luta pela ‘sobrevivência’. ” (p. 272-273)
> Normalmente, a primeira estratégia que um mercado lança pra sobreviver é regulamentá-lo. Criar regulamentações – sempre sob o pretenso objetivo de “proteger o consumidor e as pessoas” – é um investimento mais barato pra indústrias e serviços que se veem ameaçados do que se reinventarem. Mas, como a psiquiatria já era regulamentada, ou ela se reinventava ou estaria lascada. Esta reinvenção foi, na conclusão do livro de Whitaker, a invenção do desequilíbrio neuroquímico.
“Graças ao DSM-III, escreveu o psiquiatra Jerrold Maxmen, da Universidade Columbia, ‘a ascendência da psiquiatria científica tornou-se oficial (…) a antiga psiquiatria (psicanalítica) deriva da teoria, a nova psiquiatria, da realidade dos fatos.
“Mas, como observaram os críticos da época, era difícil entender por que se deveria considerar este manual uma grande realização científica. Nenhuma descoberta científica tinha levado a essa reconfiguração dos diagnósticos psiquiátricos. A biologia dos distúrbios mentais continuava desconhecida, e até os autores do DSM-III confessaram ser esse o caso.” (p. 277-278)
> Sempre me chamou atenção a acurácia dos sintomas reputados a cada medicamento homeopático nos materia medica da área. Você está lá descrevendo seus sintomas e então seu médico abre a rubrica de um medicamento, precisamente aquele, e seus sintomas estão todos lá. Não há nenhuma evidência científica robusta de que a homeopatia funcione mais que um placebo, mas se há um ramo médico em que a placeboterapia foi aperfeiçoada em níveis inimagináveis, este é a homeopatia. Em termos de rubrica, um DSM e um livro de materia medica homeopática são feitos praticamente da mesma forma: vão se coletando impressões sobre sintomas recorrentes, elabora-se uma espécie de caracterologia clínica e se dá um nome praquilo.
> O DSM – Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, publicado pela APA dos Estados Unidos desde 1952, hoje está em sua 5ª edição, publicada em 2013. A 3ª mencionada na citação é de 1980.
“Uma vez publicado o DSM-III, a APA tratou de vender seu ‘modelo médico’ ao público. (…) Em 1981, a APA criou uma ‘divisão de publicações e marketing‘, para ‘aprofundar a identificação médica dos psiquiatras’, e, em pouquíssimo tempo, transformou-se numa máquina comercial muito eficiente.” (p. 279)
> Talvez hoje, quando médicos criam perfis em redes sociais depois de comprarem cursos de marketing digital pra profissionais de saúde, o que consideramos ser ético fazer pela promoção de suas carreiras tenha se alargado. Mas a forma como a APA conduziu sua publicidade desde 1981 não deixa de chocar: formou “times de especialistas” que recebiam media training, patrocinaram a criação de um programa de TV que se chamava Sua Saúde Mental, trouxe farmacêuticos pra falar sobre medicamentos e passou a produzir eventos científicos com o apoio explícito das farmacêuticas. Seu marketing foi tão assustadoramente ofensivo e bem orquestrado, que fica a dúvida se realmente houve uma revolução biomédica na psiquiatria ou se ela apenas foi e continua sendo encenada. O que não muda em nada, porque uma mentira que é contada cem vezes se torna uma verdade – e hoje cada um tem, graças à politização de todas as esferas do convívio social, exemplos de como as pessoas tornam narrativas falsas críveis, tanto quanto tornam narrativas verdadeiras falsas.
Questão de metodologia
“Pelo menos em tese, a psiquiatria passou então a dispor de um modo de realizar testes de drogas psiquiátricas que produziam resultados ‘ objetivos’. Mas a doação dessa avaliação a fez enveredar por um caminho muito específico: a psiquiatria, a partir daí, veria a redução de sintomas a curto prazo como prova da eficácia de um medicamento. (…) O ‘teste clínico’ de seis semanas provaria que essa era a coisa certa a fazer. Entretanto, esse instrumento não trazia nenhum discernimento sobre como se saíam os pacientes a longo prazo.” (p. 107)
> Na realidade, não apenas a psicofarmacologia padece de testes curtos para chegar às farmácias, mas todos os medicamentos. Os estudos de longo prazo iniciam depois que a substância está no mercado, que é a fase da farmacoviligância. Talvez o problema seja de que os resultados de longo prazo (2 a 5 anos) têm sido pouco divulgados, deturpados ou deliberadamente camuflados. Whitaker se detém em outros problemas de metodologia dos ensaios clínicos mais famosos em psiquiatria: a seleção da amostra, a escolha do que se constituirá o controle e a ausência de controles psicoterapêuticos. Então, você precisará ler a obra pra ter o panorama completo antes de tirar conclusões apenas a partir destes fragmentos citados.
Viés de amostra
“(Dr.) Harrow explicou: ‘Nós (clínicos) extraímos nossa experiência da visão daqueles que nos deixam e depois retornam por terem uma recaída. Não vemos os que não têm recaídas. Eles não voltam. Estão muito felizes’.” (p. 128)
> Aqui, Whitaker se refere ao Dr. M. Harrow, autor de um estudo sobre recuperação de pacientes esquizofrênicos depois que interrompem a medicação. O médico havia acompanhado de forma metódica seus pacientes e notado que apenas depois de 4,5 anos se tornava visível que os pacientes não medicados ficavam melhores do que os medicados. Ainda assim, o médico foi bastante relutante em afirmar que medicamentos não eram necessários, mas finalmente concordou que havia esquizofrênicos que não precisavam tomar medicamento por toda a vida.
> Quando li este trecho, acabei refletindo sobre o outro lado da moeda: sobre médicos que deduzem que seus pacientes melhoraram porque nunca mais voltaram quando, de repente, eles apenas escolheram outro profissional pra lhes acompanhar, justamente porque não melhoraram nada. Mas, no caso do estudo de Harrow, de fato os pacientes melhoraram e não fugiram pra outro médico.
Percurso natural da doença
“Em 1972, Samuel Guze e Eli Robins, da Faculdade de Medicina da Universidade Washington em St. Louis, reexaminaram a literatura científica e determinaram que, em estudos de acompanhamento conduzido ao longo de dez anos, 50% das pessoas hospitalizadas por depressão não tiveram recorrência da doença. Apenas uma minoria dos diagnosticados com depressão unipolar – um em dez – tornara-se cronicamente doente, concluíram Guze e Robins.” (p. 163)
> Existe esta coisa que estudamos chamada de “percurso natural da doença” ou “história da doença” e ela é quase sempre empregada no contexto de que muitas das afecções pelas quais passamos é autolimitante, ou seja, sara sozinha. Quando um paciente faz um tratamento pra uma doença que evoluirá benignamente, dificilmente se saberá se a cura ocorreu de forma espontânea ou pelo tratamento. Alguns divulgadores de Medicina Baseada em Evidências, como o médico José N. Alencar, autor do Manual de Medicina Baseada em Evidências, já resenhado aqui, alerta que muito charlatanismo nasce justamente daí.
> Ainda no capítulo dedicado à depressão, Whitaker comenta estudos que foram conduzidos no final dos anos 1980, na Alemanha, e no início dos anos 2000, nos Estados Unidos, com a erva-de-são-joão (Hypericum perforatum). Extratos desta planta são usados nas medicinas tradicionais no tratamento de depressão, embora alguns efeitos colaterais possam ocorrer (aliás, no Brasil, é exigido receita médica pra comprar a substância padronizada em farmácias de manipulação). O jornalista mostra que, embora os resultados positivos com esta erva tenham sido tímidos nas pesquisas do início do século, os estudiosos deliberadamente ignoraram que os resultados positivos com o Zoloft, usado nos grupos controle, também o foram, e que o placebo havia performado melhor que ambos.
Iatrogenia
“Trinta anos anos antes, Guy Chouinard e Barry Jones haviam desconcertado essa classe profissional [os psiquiatras] com seu discurso sobre a ‘psicose por hipersensibilidade’, e agora os psiquiatras eram instados a encarar o fato de que os resultados do transtorno bipolar eram piores, hoje, do que tinham sido trinta anos antes, e de que os antidepressivos eram os prováveis culpados.” (p. 187)
> O livro Anatomia de um Epidemia tem alguns capítulos estruturados conforme a cronologia do lançamento de drogas psiquiátricas. Assim, ele começa falando sobre o recurso ao “coma insulínico”, quando a psiquiatria se concentrava em manicômios (1930-1940), passa a falar sobre a torazina e como ela foi adotada rapidamente como opção sedativa aos barbitúricos, morfina e lobotomia para psicóticos e esquizofrênicos; depois, segue com as benzodiazepinas e os inibidores seletivos de recaptação de serotonina na depressão. Ele também percorre a história do tratamento da bipolaridade, mencionando os anos de ouro do lítio a partir de 1970 e finaliza o livro com a psicofarmacoterapia (ritalina, sobretudo) pra esta epidemia infantil de TDAH.
> No momento desta citação, que é mais ou menos a metade do livro, Whitaker elenca vários estudos que suspeitam haver uma relação entre o desenvolvimento de transtorno bipolar ou de sua piora após o uso de antidepressivos. A iatrogenia medicamentosa é um assunto delicado: como assim, os medicamentos provocam doenças que antes não existiam?! Pela pesquisa do jornalista, a iatrogenia na psiquiatria existe e, pior, pode ter efeitos tão deletérios quanto mais cedo uma pessoa iniciar o uso de psicotrópicos, como crianças e adolescentes. Além de dados de sua investigação, Whitaker traz relatos de pacientes cronicamente doentes e que se recordam de terem piorado depois do início da farmacoterapia em tenra idade. Obviamente que a memória prega peças, sendo seletiva, mas estes relatos acabam tendo um certo respaldo nos dados levantados pelo autor.
“Atualmente, de acordo com o Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), o transtorno bipolar afeta um em cada quarenta adultos nos Estados Unidos, de modo que (…) precisamos tentar compreender esse aumento assombroso em sua prevalência. Embora a explicação simplista seja que a psiquiatria ampliou enormemente as fronteiras do diagnóstico, isso é apenas parte da história. As drogas psicotrópicas – legais e ilegais – ajudaram a alimentar o crescimento explosivo da bipolaridade.” (p. 190)
> Obviamente, é uma afirmação forte: ninguém quer tomar um ansiolítico e lá na frente se tornar um bipolar. Mas é o que Whitaker afirma estar ocorrendo. A ideia do aumento do diagnóstico sempre é aventada como explicação pro aumento de diversas doenças que antes não tinham muita prevalência, do câncer ao TDAH. Claro que, embora o câncer seja conhecido há séculos, o TDAH é uma doença nova – então, não se trata de apenas ampliação de diagnóstico, mas de “criação” de novas doenças. Dizer que o TDAH hoje é mais diagnosticado que antes dá a falsa impressão de que ele sempre esteve aí, sempre existiu e só não era diagnosticado – como se fosse uma nova espécie botânica ou animal descoberta. O que Whitaker enfatiza é que existe um esforço deliberado pra se criarem novas categorias do DSM quanto pra se “afrouxarem” o número de características pra se confirmar um diagnóstico. Bom, se sabemos que há aplicativos ara autoteste de TDAH e autismo, de modo que os pacientes já chegam nos consultórios médicos autodiagnosticados, não deve ser chocante de forma alguma que doenças sejam “inventadas”.
> Tempos atrás resenhei um excelente livro de psicossomática, Quando a Alma Fala Através do Corpo, escrito por dois profissionais de saúde que trabalham no hospital-dia psicossomático Landes-Nervenklinik, na cidade de Linz, Alemanha, e ressaltei citações em que os autores sustentam que a doença psicossomática é um fenômeno atravessado pela percepção e tolerância do paciente. Eles exemplificam que duas pessoas podem ter os mesmos desconfortos abdominais, mas apenas uma delas achará que eles não são normais e merecem uma ida ao hospital.
> Eu tenho uma percepção de que a diminuição da tolerância ao sofrimento em nossa sociedade, ou pelo menos em determinado estrato social (que, sendo de alto poder aquisitivo, direciona a discussão, as verbas de pesquisa e o encaminhamento do assunto ao grande público), acaba sendo o propulsor de novos diagnósticos em saúde mental. De toda forma, não acho que esta minha percepção seja a reflexão mais interessante a ser feita. Penso que, se aceitarmos que o diagnóstico de doenças só aumentará e, com ele, a prescrição de tratamentos, a melhor discussão é se apostaremos todas nossas fichas na farmacoterapia de síntese ou se não seria uma atitude sensata buscar outras estratégias que possam passar ao largo da iatrogenia que ela (potencialmente) produz.
“Neste livro, entretanto, temos focalizado o papel que a psiquiatria e seus medicamentos estariam desempenhando nessa epidemia, e os dados são bastante claros. Primeiro, por expandir enormemente as fronteiras diagnósticas, a psiquiatria convida um número cada vez maior de crianças e adultos a ingressarem no campo da doença mental. Segundo, as pessoas assim diagnosticadas são tratadas com medicamentos psiquiátricos que aumentam sua probabilidade de se transformarem em doentes crônicos. Muitos indivíduos tratados com psicotrópicos acabam com sintomas psiquiátricos novos e mais graves, indisposições físicas e prejuízos cognitivos. Essa é a história trágica, escrita de maneira clara e óbvia em cinco décadas de literatura científica.” (p. 218)
Primo non nocere
“Entretanto, nada disso fala de um tratamento medicamentoso que beneficie os jovens. Os estimulantes funcionam bem para os professores, mas será que ajudam as crianças?” (p. 232)
> Como atual presidente da Abraroma, acabo entrando em contato com pesquisas sobre aromaterapia. Uma delas, recente, com resultados ainda não divulgados, está mapeando quem são os consumidores de aromaterapia. Conversei com a pesquisadora e ela me apresentou alguns dados preliminares de seu trabalho. Perguntados sobre como vieram a conhecer o uso terapêutico dos óleos essenciais, os participantes da pesquisa deram muitas opções, mas uma que se destacou foi “para cuidar de meu filho autista”. Fui pega de surpresa com este dado, por ele ser muito específico e muito numeroso no levantamento. Embora haja um certo viés de amostra que o explique, minha experiência também indica que tratar autismo e TDAH são duas fortes razões pra mães e pais usarem substâncias naturais com seus filhos, pois subjaz à farmacoterapia convencional a desconfiança de que as crianças são menos crianças quando se submetem a ela. E este ponto foi resgatado por Whitaker no depoimento de pesquisadores que se debruçaram sobre revisões para o uso de ritalina, por exemplo.
> É conhecido que as escolas têm um papel muito relevante no aumento da indicação de tratamento medicamentoso de TDAH. Sempre surge um relato aqui e ali de pais que precisam mostrar a receita médica de ritalina pra que seus filhos continuem frequentando as aulas. Luiz Felipe Pondé, sobre a medicalização da infância, comenta que crianças e jovens sofrem mais hoje por terem se tornado o repositório único das obsessões de famílias que não têm mais um prole numerosa sobre a qual podiam antes dividir suas cotas de neuroses. Então, é realmente de se perguntar se a ritalina ajuda mais aos professores e pais que a estas crianças, que talvez pudessem estar aprendendo estratégias de enfrentamento pra suas dificuldades de aprendizado e socialização que não lhes roubassem a autonomia e senso de identidade.
“Existe há muito uma controvérsia acirrada a respeito de o TDAH ser ou não uma doença ‘real’, mas esse estudo mostrou que, em matéria do uso de estimulantes para tratá-la, a controvérsia é irrelevante. Mesmo que o TDAH seja real, os estimulantes não fornecerão nenhuma ajuda a longo prazo. ‘Pensávamos que as crianças medicadas por mais tempo teriam resultados melhores. Não foi o que aconteceu’, disse William Pelham, da Universidade Estadual de Nova York, em Buffalo, que foi um dos principais investigadores. ‘Não houve efeitos benéficos, nenhum. A curto prazo, (a medicação) ajuda a criança a se comportar melhor, mas não a longo prazo. E essa informação deve ser deixada muito clara para os pais’.” (p. 235-236)
> A informação também deveria ser deixada clara para as escolas.
“Foi nesse momento da literatura médica que o transtorno bipolar pediátrico foi essencialmente ‘descoberto’. (…) Não era que os antidepressivos estivessem fazendo algumas crianças se tornarem maníacas, mas sim que as drogas estavam desmascarando o transtorno bipolar, já que somente as crianças portadoras da doença sofreriam essa reação a um antidepressivo.” (p. 242-243)
> Esta citação conclui um longa série de artigos coletados por Whitaker em que episódios maníaco-depressivos foram detectados em crianças que anteriormente tinham usado medicações psicotrópicas. Novamente ressalvo que é preciso ler o livro todo e não apenas esta resenha antes de emitir opiniões contra ou a favor das partes que selecionei. Fora de contexto, esta citação pode parecer exatamente racional, inclusive porque os médicos realmente dizem a seus pacientes que demora pra se ter o correto diagnóstico do distúrbio mental e que, nisto, vários medicamentos vão sendo testados até que se encontre aquele que resolve (pelo menos por um tempo). Me surpreende, de fato, que nunca se tenha levado a sério a hipótese de que os medicamentos é que estejam causando os novos diagnósticos ou que se aceite como razoável usar um medicamento pra que ele descortine o verdadeiro problema. Seria mais ou menos como dizer a uma pessoa: tome aqui este imunossupressor e vamos descobrir se você já tinha uma infecção latente, não diagnosticada.
“O último grupo a participar dessa campanha de contar histórias [sobre os benefícios dos medicamentos psiquiátricos] foi a Aliança Nacional para os Doentes Mentais (NAMI). Fundada em 1979 por duas mulheres do Wisconsin, Beverly Young e Harriet Shetler, ela surgiu como um protesto popular contra as teorias freudianas que atribuíam a responsabilidade pela esquizofrenia a ‘mães distantes, negligentes e preocupadas, que não eram capazes de estabelecer vínculos com seus filhos’, observou um historiador do NIMH.” A NAMI ansiava por abraçar uma ideologia de natureza diferente, e a mensagem que procurava disseminar, como disse sua ex-presidenta Agnes Hatfield em 1991, era que a ‘doença mental não é um problema de saúde mental; é uma doença biológica. Por parte das famílias, há uma clareza considerável de que elas estão concentradas em uma moléstia física.” (p. 286)
> Concluí no ano passado a leitura de um livro que ainda não resenhei, O Corpo Guarda as Marcas, do psiquiatra norte-americano Bessel van der Kolk, que investiga e estuda os efeitos biológicos dos traumas, em especial em crianças. As pesquisas de Bessel indicam que crianças que recebem maus-tratos efetivamente têm sua neuroquímica alterada e que isto repercute em transtornos mentais em sua vida futura. Se isto vier a se tornar um consenso, poderemos dizer que mães e pais que não estabelecem vínculos afetivos são responsáveis de fato pela biologia de seus filhos ser como é. Novamente trazendo falas do Pondé, ele diz que chegará um dia em que ninguém mais se atreverá a ter filhos transando pra não ser responsabilizado por passar aleatoriamente sua herança biológica. Em se provando que as condições de gestação e de educação alteram a biologia das pessoas (já sabemos que sim, mas “precisamos” de evidências fortes), certamente será direito de um futuro ser humano vivenciar uma gestação extra-uterina, numa espécie de útero artificial, ser educado por IA e apenas ser entregue ao convívio familiar depois dos 21 anos, quando seus pais não poderão mais ser responsabilizados pelas doenças de origem física de seus filhos.
Os loucos que tentam abordagens diferentes
“A concepção de psicose que eles têm [na Lapônia Ocidental] é de natureza bem distinta, já que não se enquadra realmente nem na categoria biológica nem na psicológica. Eles acreditam, antes, que a psicose provém de relações sociais gravemente esgarçadas. ‘A psicose não vive na cabeça. Vive no entremeio dos membros da família e no entremeio das pessoas’, explicou Salo [psicóloga do Hospital Keropudas]. ‘Está na relação, e o psicótico dá visibilidade a essa situação ruim. Ele veste os sintomas e tem o ônus de carregá-los.” (p. 348)
> Na parte final do livro, Whitaker traz experiências exitosas de tratamento de doenças mentais fora da abordagem psicofarmacológica. Uma delas é a abordagem da “terapia familiar” das unidades de saúde mental da Lapônia Ocidental, mencionada no trecho acima. Acho muito curioso que a psicóloga tenha dito que alguém da família “veste” os sintomas do grupo. É como se alguém ocupasse o papel de porta voz daquela disfuncionalidade toda. Talvez você se lembre do bobo da corte em inúmeros romances sobre reis e rainhas. Já foi dito que sua função é a de expor as contradições, hipocrisia e arroubos da corte, tendo licença pra isto justamente por ser considerado “louco”. Se for verdade que a psicose é o vestido dos sintomas de um grupo, o adoecimento se deu porque os bobos da corte não têm mais autorização de expor as verdades dos que os rodeiam.
> Pra concluir esta resenha, mais uma fala de umas das integrantes do apoio a psicóticos na Lapônia:
” ‘Acho (os sintomas psicóticos) muito interessantes’, disse Kurtiti. ‘ Qual é a diferença entre vozes e pensamentos? Estamos tendo uma conversa.” (p. 349)
> Se você, como eu, também é fã de Harry Potter, talvez tenha lido a frase acima e se lembrado do que Dumbledore respondeu a Harry quando este, libertado de ser uma horcrux, meio que vivo, meio que morto, indaga ao professor se a conversa que estão tendo é real ou se está ocorrendo apenas em sua mente. A resposta é “claro que está acontecendo dentro da sua cabeça, Harry, mas por que raios isso significaria que não é real?”
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2023
WHITAKER, Robert. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombros da doença mental. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 421 p.