Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoconhecimento > A era do niilismo – Luiz Felipe Pondé
Partindo da literatura russa do século XIX, Pondé discorre sobre um tema que lhe é caro: o niilismo. Na introdução do livro, ele abre dizendo que a modernidade é um surto psicótico e termina nos desejando sorte com a leitura. Você já está preparado para o que encontrará pela frente.
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Prodigioso Pondé, que consegue escrever um livro por ano. Neste, A era do niilismo: notas de tristeza, ceticismo e ironia surge no auge da segunda onda da pandemia – o que torna o subtítulo bastante óbvio. Menos óbvio é a hipótese que ele tece no livro, a de que a modernidade seja um surto funcional e a de que este surto se chama “a era do niilismo”: vivemos um “distopia progressista”. Para leitores de Pondé, este é um livro em que ele se permitiu ser mais erudito, adotando um tom maior de ensaio, que me faz lembrar a primeira leitura que fiz dele em Por que virei à direita?. Mas a segunda parte do livro é o Pondé frasista, o nosso La Rochefoucauld brasileiro.
Selecionar melhores partes dos livros do Pondé é um trabalho frustrante porque tudo é bom, tudo é exaustivamente bom e talvez esta seja a única queixa que faço deste filósofo de quem tanto gosto: ele poderia dar folga ao nosso cérebro e ter menos sacadas ótimas, assim a gente ficaria menos exasperado por não conseguir se lembrar de tanta coisa boa que ele fala (no meu caso, de digitar tantas passagens).
Seguem as citações selecionadas.
TODOS SEREMOS VELHOS, COMO NUMA ESPÉCIE DE VINGANÇA CONTRA OS JOVENS QUE SE VOLTA CONTRA NÓS MESMOS
“Arriscaria dizer que o jovem nasce junto com o velho, e nesse processo, morre o sábio. No lugar da ideia de conhecimento como sabedoria estabelecida (intimamente associada ao repertório constituído, já citado) ao longo dos anos de vida, instala-se a ideia de déficit de informação válida, decorrente da falta de contato com o que é novo, recém-descoberto ou pensado na Europa ocidental. O repertório passa a ser déficit. Muito antes da era digital, a idade já tinha se transformado em prazo de validade da dignidade de uma pessoa.” (p. 26)
– Apenas pra que haja um contexto, Pondé cita “Europa ocidental” porque neste trecho analisa o romance Pais e filhos, de Turguêniev. Em outro momento, em Você é ansioso?, Pondé fala de como a humanidade é estúpida por enaltecer a juventude sendo que o destino de todos nós é a velhice.
“Quando os mais velhos imitam os mais jovens, aqueles perdem o lugar de agentes consistentes de valoração e estes não veem futuro no envelhecimento.” (p. 124)
– Apenas a modernidade poderia ter criado uma técnica como a da Constelação Sistêmica, em que se pode acertar as contas com qualquer época do passado, para que ele não atue mais fantasmagoricamente em nosso presente.
TRISTEZA, CETICISMO, IRONIA
“[Alexander] Herzen percebeu que uma pessoa triste, cética e irônica seria, talvez, mais capacitada para analisar a natureza humana – pelo menos naquele século XIX. Sua desesperança era um motor efetivo; seu ceticismo, uma prontidão para identificar os fracassos da razão otimista; sua ironia, a forma de sobreviver em meio à mentira desse otimismo.” (p. 61)
– Maus momentos geram boas análises sobre quem somos. Infelizmente, sua superação gera literatura de auto-ajuda.
“O sofrimento da mulher feia, sobre o qual muito se mente hoje em dia […].“ (p. 76)
– O sofrimento da mulher feia é tão maior quanto se sabe que mulheres bonitas tornam-se feias depois dos 40…
“Para Schopenhauer, quando fazemos uma inspeção interior, isto é, quando olhamos para dentro de nós mesmos, o que salta aos olhos é uma vontade louca, insaciável, contínua e cega – essa ideia é a matriz da pulsão em Freud.” (p. 101)
– Reprimir a pulsão gera mal-estar (na civilização), mas nos permite (sobre)viver antes desejos com potencial destrutivo.
“ […] sabemos que o olhar filosófico deve ser negativo. Devemos olhar ali onde o mundo falha, onde ele fracassa. A negatividade, muitas vezes vista como o nome chique de pessimismo, é um método para ver um mundo cego sobre si mesmo. Do contrário, nos perdemos na positividade alienante da alegria da mercadoria triunfante. Esse olhar negativo é o nosso olhar aqui [no livro]. Sem ele, não enxergamos o nada que nos ronda, não só do ponto de vista de uma natureza cega, indiferente e sem telos, mas também do ponto de vista de um mundo cuja engrenagem é empacotar esse nada para presente.” (p. 112)
– Advinha quem se tornou especialista em empacotar o nada pra presente? Leia a próxima citação.
“Ao percebemos, ainda que intuitivamente, a dissolução de tudo diante do valor absoluto do dinheiro, sentimos o nada desse tudo diante dele. O dinheiro é cínico em sua operação, fingindo que tem sentimentos de preocupação com o mundo. O fingimento desses sentimentos é uma operação do seu clero (e o marketing se tornou sua forma mais plena), e não dele mesmo uma vez que, como bem descreveu Marx, o dinheiro na sua forma de capital, é um autômato que funciona com a cegueira de um vírus fora de controle. O capitalismo é uma epidemia que aos poucos desenha a face profunda do surto moderno. Quem não percebeu que o capitalismo gera niilismo como seu by-product não atingiu a mais mínima maturidade sociológica em relação ao mundo em que vivemos.” (p. 118)
– Ninguém aqui falou nem em consertar o capitalismo.
“A vontade schopenhauriana tornou-se uma estrutura dinâmica que cria uma histeria de consumo, ao mesmo tempo que nos lega um permanente tédio como experiência ao final do dia.” (p. 119)
– Compro, logo existo.
“Quem sabe, em breve, veremos o amor romântico não mais como uma bela doença, como vimos desde o século XII para cá, mas como uma forma de violão do direito à solidão depressiva. Não devemos menosprezar a possibilidade de um ´novo´ contrato social que se movimente entre a alegria histérica do marketing existencial e a depressão como condição ´normal´ da vida. Da polarização à bipolaridade como prática social.” (p. 133)
– Isto talvez aconteça depois que decidirmos, como Pondé alerta, que filhos são um projeto complexo demais para serem gerados a partir do sexo, tornando-se a inseminação artificial após seleção genética o standard na propagação da espécie humana.
“Muito já se falou sobre as redes sociais. Quero apenas aqui pontuar seu vinculo com o ruído e com o nada que lhe é adjacente. Esse nada específico decorre de sua natureza ruidosa. O ruído das redes enche o mundo de nada.” (p. 142)
“A desarticulação da vida privada, da vida política, da vida profissional, da vida afetiva – todos devem se humilhar se fazendo produto do marketing digital -, da vida cognitiva, e mesmo epistêmica […], é uma constante como efeito do ruído das redes. Como uma casa de loucos, o mundo é tomado pela fúria dos irrelevantes e das celebridades.” (p. 142-143)
– Apenas se lembre: as redes sociais foram criadas por garotos que queriam pontuar as gostosas do campus universitário. Isto diz muito sobre a essência das redes sociais.
“[…] o mundo é um parque temático de ofendidos.” (p. 145)
– Nem mesmo Pondé pode não render homenagem ao politicamente correto.
PROGRESSISMO APLICADO
“O fato é que a pedagogia é, sem dúvida a louca da casa nas humanidades.” (p. 44)
– Em seu curso online “Conservadorismo para além do blá blá blá da polarização”, Pondé discorre mais sobre a pedagogia se pautar em pressupostos não passíveis de teste. Fica a dica aí de um excelente curso, aliás, pra quem já sabe que conservadorismo não tem nada a ver com reacionarismo e gostaria de conhecer mais sobre os autores desta corrente de pensamento (de Montaigne a Sowell).
“O fetiche com a ´inovação´ como paradigma da educação é o coroamento do supérfluo como ´educador´.” (p.45)
– O fato da educação não ter mudado muito desde o século XIX deveria nos dizer algo não sobre as mazelas das salas de aulas tradicionais, mas sobre as virtudes de uma metodologia de ensino que, embora considerada ultrapassada, trouxe-nos até aqui, ao século XXI.
“Nada é melhor para acabar com seu filho do que querer fazer dele um agente para um mundo melhor.” (p. 126)
– Sim porque, afinal, quem deveria ter capacidade de cuidar deste mundo são os adultos.
“O marketing é o niilismo em movimento, por meio de métricas cada vez mais precisas. Se há alguns anos dizíamos que um bom profissional de marketing era aquele que sabia que o que você ia querer dali a dois anos, esse profissional já assumiu, com seu parceiro artificial inteligente, a capacidade de formar seu desejo de modo prévio. E, ao contrário do que reclamam os idealizadores dos consumidores como cidadãos vítimas do marketing, esses profissionais só conseguem realizar seu trabalho graças à nossa fúria de sermos felizes realizando desejos.” (p. 121)
“O marketing é o grande construtor de narrativas no mundo pós-moderno, em que a verdade não existe e o valor não tem fundamento para além da interação entre os crentes por meio do próprio marketing. […] O marketing é o niilismo na sua forma feliz e sociopata.” (p. 121-122)
– Nunca o marketing poderá ser mais atacado do que chamá-lo de sociopata.
DISTOPIA PROGRESSISTA
“A era do niilismo é o desespero da falta de objetividade das crenças humanas causada pela própria emergência do ´progresso´(mobilidade) moderno.” (p. 15)
“[…] a era do niilismo depende da mentira como forma estruturada de comportamento.” (p. 20)
“Niilismo aqui [derivado do romance Pais e Filhos] não é a afirmação do ´nada´ enquanto ´ser´, é a afirmação do nada como ausência de sentido das coisas. […] Se não há sentido absoluto na estrutura do cosmo e da natureza, estamos diante do nada como horizonte ontológico e de significado.” (p. 31)
“Ser capaz de não crer em nada indicaria um tipo de coragem selvagem que poucos têm.” (p. 33)
“O nada surge exatamente como derivação dessa sensação de que sem certos objetos você não tem existência psíquica nem social. O processo descrito aqui na primeira metade do século XIX russo se aprofundou até os dias atuais, quando o capote [casac0] foi substituído pela existência medida pelas métricas de engajamento nas redes sociais. A dança macabra tornou-se marketing digital.” (p. 88)
“Mais do que isso, para o niilista Cioran, a obsessão pela salvação torna o ar irrespirável. […] O ar se torna irrespirável porque, desse ponto de vista, a busca pela salvação aprisiona nossa capacidade de pensar nas consequências de um mundo que navega à deriva […].”. (p. 95)
“O romantismo é a primeira grande ressaca da modernização burguesa consigo mesma e, até hoje, sua maior crítica.” (p. 99)
“O niilismo é o rebento mais sombrio dessa crise romântica. Filho da crítica à racionalidade iluminista feita pelo romantismo, o niilismo é o ´fundo do poço´ do desencanto com a modernidade, do desejo (auto)destrutivo do mundo e, ao mesmo tempo, a aposta mais radical numa vida sem qualquer busca de salvação, como dizíamos anteriormente, a partir de Cioran, seja na religião, seja na história, seja no próprio amor.” (p. 100)
“Portanto, a melancolia nilista não brota apenas do desespero ante a modernidade humana enquanto tal. Como um excesso de consciência, muito pesada para uma alma que nunca esperou conhecê-la.” (p. 139)
– São muitas citações. Já que Pondé nos desejou boa sorte, só consigo pensar que a ignorância ainda continua sendo uma bênção.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2021
PONDÉ, Luiz Felipe. A era do niilismo: notas de tristeza, ceticismo e ironia. São Paulo: Globo Livros, 2021.