Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crônicas > A cidade das palavras – Alberto Manguel
Manguel é um de meus autores favoritos para ensaios e reflexões. Seu humor sutil, sua erudição, sua devoção aos livros e seu hábito de autodepreciação como contraponto à tendência que pessoas muito inteligentes têm de se tornarem arrogantes são capazes de cativar, contudo, qualquer leitor mais paciente.
Neste livro, Manguel revisa autores e hipóteses de por que contamos histórias, e como viemos reagindo a elas. Um livro muito gostoso de ler e ainda daqueles que se lê rápido. Selecionei as melhores partes. Estão abaixo.
#ÉNÓIS
“Descobri que, com o passar dos anos, minha ignorância em vastas áreas – antropologia, etnologia, sociologia, economia, ciência política, entre outras – foi se tornando cada vez mais perfeita, ao mesmo passo que uma via inteira de leituras aleatórias me legou uma espécie de livro de citações em que reencontro meus próprios pensamentos nas palavras de outros.” (p. 6)
– Nossos autores favoritos são, em grande medida, aqueles que nos descrevem. Se este blog As Melhores Partes não seria este meu livro de citações revelando tentando dirimir minha ignorância em tantas áreas.
” ‘Eu leio’, anotou Döblin, como a chama lê o lenho’.” (p. 18)
– Que descrição! Apenas um alemão (Alfred Döblin, 1878-1957) que viveu no entre guerras poderia descrever a leitura assim.
“Como Döblin bem sabia, muitas vezes o papel do artífice é o mesmo de Cassandra, a sacerdotisa grega a quem Apolo deu o dom da profecia, sob condição de que ninguém jamais acreditasse em suas palavras. Muitos artífices sofrem sob a maldição de Cassandra: a pouca disposição do leitor a dar ouvidos.” (p. 19)
-De um modo geral, o mainstream hoje vivencia esta maldição. Recordo aquela palestra no TEDx da microbiologista Natalia Pasternack, anos atrás, quando ela conclamava os cientistas a combaterem publicamente o mau uso da ciência e as pseudociências. Sua palestra se chamava A ciência brasileira e a síndrome de Cassandra. E quando relembro o recente cancelamento a que foi submetido o Sergio Sacani da Space Today por criticar uma postagem da Agencia Espacial Brasileira quando do aniversário do primeiro voo tripulado com uma mulher astronauta, preciso concordar com ele de que o Brasil odeia a ciência.
” ‘Quando insistem para que diga por que o amava, sinto que não há como expressá-lo, senão dizendo: porque era ele e porque era eu’.” (p. 41)
– Esta frase é de Montaigne sobre sua amizade com Étienne de la Boétie. É linda.
“Este último aspecto é importante: a indústria editorial precisa nos educar para a estupidez porque não nascemos naturalmente estúpidos.” (p. 94)
– Eu não teria a mesma cortesia de crê-lo.
E achava bonita a palavra escrita
“A linguagem é nosso denominador comum”. (p. 7)
– Mas as línguas, estas são os numeradores.
“Para Döblin, escrever era um processo que nos levava do presente ao futuro, um fluxo constante de linguagem que permitia que as palavras dessem forma e nome a uma realidade sempre em processo de formação.” (p. 7)
“A linguagem, declarou Döblin, é um modo de amar os outros.” (p. 10)
– Com estas citações me lembrei de cenas de filmes em que uma pessoa, sabendo que morrerá, deixa cartas a quem fica. É uma forma de tornar-se vivo pela leitura do outro. Acho cenas profundamente melancólicas.
“As histórias são nossa memória, as bibliotecas são os depósitos dessa memória, e a leitura é o ofício por meio do qual podemos recriar essa memória, recitando-a e glosando-a, traduzindo-a para nossa própria experiência, permitindo-nos construir sobre os alicerces do que as gerações passadas quiseram preservar.” (p. 11)
– Nunca li nada sobre filmes e vídeos permitirem-nos cocriar uma memória. É inegável que ler é muito mais criativo que ver. Lamento que as redes sociais estejam tornando todos autômatos visuais com esta insistência em vídeos.
“Na antiga língua anglo-saxã, o termo para ‘poeta’ era maker, ‘fazedor’ ou ‘artífice’, palavra que reúne a acepção de entrelaçar palavras à de construir o mundo material.” (p. 12)
– Uma carpintaria com palavras.
“This was life
The luckiest hours
Like scribbles in chalk
On a slate in a classroom.
We stare
And try to understand them.
Then luck turns its back –
And everything’s wiped out.” (p. 21)
– Na tradução do tradutor do livro, o trecho que se refere a uma fala de Cassandra ao coro em Oréstia de Ésquilo, é a seguinte: Isso era a vida/As melhores horas/Como garatujas de giz/Numa lousa numa sala de aula./Olhamos para elas/E tentamos entendê-las./Depois a sorte nos dá as costas/E tudo o que está escrito se apaga. Dureza, hein? Conversa, mas em tom pessimista, com a minha preferida que é “Somos da mesma matéria de que os sonhos são feitos, e nossa breve vida é circundada pelo sono”, de Shakespeare.
“Talvez a tarefa de todo verdadeiro poeta-artífice seja contonuar a escrevinhar na lousa depois que tudo o mais foi apagado”. (p. 21)
– Vocação rara esta.
“Em 1936, Walter Benjamin publicou um ensaio, ‘O narrador’, sobre um escritor russo do século XIX, Nikolau Leskóv, no qual afirmou que a arte de contar histórias estava desaparecendo, muito em virtude da ascensão do romance burguês e dos meios de comunicação em massa. As histórias, que para Benjamin eram os instrumentos de transmissão de uma sabedoria primordial às sociedades presentes, já não eram fontes de conselho:
‘Mas se dar conselhos parece hoje uma coisa antiquada é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. […] Aconselhar é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história […]. O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria.’.” (p. 63)
– Pior que as histórias morrerem com o romance burguês é elas terem sobrevivo no storytelling do marketing. Acredite-me, Benjamin.
“Essa função criativa da propaganda (voltada para alterar a realidade por meio de uma linguagem literária transformada em dogma) é claramente visível na propaganda religiosa.” (p. 100)
– E é por isto que quanto mais o laicismo se entranha em uma sociedade, mais o marketing fica fanático.
O perigo da poesia
“A razão, afirma Sócrates, força o filósofo a banir a poesia do Estado ideal. ‘A verdade’, ele admite com alguma relutância, porque ama poesia de Homero, que também deve ser exilado da república bem governada, ‘é que não podemos admitir a poesia na cidade, com exceção dos hinos aos deuses e dos elogios dos bons homens. Pois, se deixarmos entra a Musa melíflua da lírica e da épica, o prazer e a dor reinarão sobre a cidade e tomarão o lugar da lei e do que foi provado ser o melhor à razão geral’.” (p. 17)
– Esta reflexão é que está na base do perigo do chamado panis et circensis. Contudo, perigo maior à lei e à razão é a cacofonia apoética e vulgar das redes sociais.
“Para Platão, a identidade que as histórias criam é tão incerta e arbitrária quanto uma máscara.
“Platão está certo, mas não por inteiro. Em geral, seus contemporâneos e as centenas de gerações de leitores que os sucederam buscaram na literatura alguma forma, se não de entretenimento soporífero, ao menos de experiência de segunda mão – aprendizado sem ação e satisfação sem feitos. Mais próximo de nosso tempo, Carl Gustav Jung, em sua leitura incisiva do Livro de Jó, insistiu em afirmar que as histórias podem nos propiciar aprendizado e satisfação profundos.” (p. 17)
– A seguir a história, esta satisfação e aprendizado profundos também serão possibilitados pelos vídeos de 15 segundos…
“Nisso reside a grande riqueza e a grande dificuldade da literatura: em não ser dogma. A literatura registra fatos, mas não estabelece postulados absolutos, não impõe princípios indiscutíveis, não oferece identidades unívocas.” (p. 20)
– A literatura boa é assim. Porque há a literatura militante, que é um lixo independente do que ela estiver defendendo.
“A literatura é o contrário do dogma. Um texto literário está sempre aberto a outas leituras, a outras interpretações, talvez porque a literatura, ao contrário do dogma, permite tanto a liberdade de pensamento quanto a liberdade de expressão e é, como aqueles genes essenciais que nos legaram o poder da imaginação, essencialmente replicante.” (p. 100)
– A literatura sempre estará aberto até que o revisionismo woke a feche.
“Toda história é uma interpretação de histórias: nenhuma leitura é inocente.” (p. 37)
– Bom, não caia na tentação, já abordada em uma obra do Eco, de viajar na maionese quando interpretar um texto. Como ele disse em Confissões de um jovem romancista, há direitos do texto e direitos do intérprete.
“Essa ideia surpreendente de que as palavras pensam por nós, de que as palavras não apenas expressam mas também criam pensamentos, foi formulada há muito tempo, no século VI, pelo filósofo hindu Bhartrihari.” (p. 50-51)
– E aguardou a cultura woke pra ser estridentemente defendida.
Makers
“Toda história é um triângulo que envolve o autor e leitor, leitor e protagonista, protagonista e autor.” (p. 52)
– Quanto não devemos a esta forma geométrica as explicações que povoam nossos métiers. Na aromaterapia, sempre repito o que aprendi com Rhiannon Lewis: trata-se de um relacionamento triangular entre óleo essencial, aromaterapeuta e interagente.
“Toda relação literária acarreta, de modo mais ou menos consciente, esses três modos de ver o outro: como ser fantástico, semificcional, dotado de peso simbólico ou alegórico em nossa imaginação; como ameaça, como alguém que cobiça nossa propriedade e identidade e que devemos combater e destruir; como benfeitor ativo que nos governará e ensinará com sabedoria, e a quem devemos amar e cortejar.
“Leitores criam escritores que por sua vez criam leitores.” (p. 52)
– Obviamente, ninguém se preocupa com isto quando está lendo, mas é algo com que censores se preocupam quando você lê.
“Para os inuítes, as coisas funcionam de modo diverso: o ‘bom verso’, a ‘boa história’ assimila-se à identidade do indivíduo ou da sociedade e passa a lhes pertencer do mesmo modo como, em termos ocidentais, o solo sobre o qual foi construída uma casa pertence ao morador ou o tempo de trabalho ou de lazer pertence a cada cidadão.” (p. 59)
– Bem, este seria o mudo ideal dos direitos autorais: pra sempre patrimoniais.
“(…) em termos biológicos, a imaginação é um mecanismo de sobrevivência desenvolvido de modo a propiciar experiências que, por mais que não sejam de natureza física, servem de todo modo para educar e aprimorar com a mesma eficácia da experiência vivida no mundo físico.” (p. 60)
– Eu seria bem reticente com o “a mesma eficácia”, mas parece uma hipótese crível.
“O lar é sempre um lugar imaginário.” (p. 104)
– “(…) nesta vida de constante exilado”. Já é o segundo Vinícius que recordo nesta resenha.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024
MANGUEL, Alberto. A cidade das palavras: as histórias que contamos para saber quem somos. Tradução: Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.