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Fahrenheit 451 – Ray Bradbury

Postado às 22:11 do dia 01/05/12

Este livro foi recomendado pela minha livreira preferida, a Angélica Ayres, da Mahatma Livraria, de Curitiba, PR. É que eu tinha acabado de ler Coração de Tinta, de Cornelia Funke, e comentávamos sobre uma cena bárbara neste livro inspirada na história do Farenheit, que eu então não conhecia, escrito em 1953. Geraçãozinha K7 esta dos anos 1950-60 nos Estados Unidos pra escrever coisa boa, hein?!

Eu confesso que a leitura do Fahrenheit não me entusiasmou divinamente. Confesso também que ouvir da boca da Angélica sobre como os livros eram preservados no mundo imaginado por Ray Bradbury me pareceu muito, mas muito mais excitante que ler o capítulo. Talvez porque eu e ela, que temos alguns números 9 em nossos mapas, nos contagiemos grandemente pela paixão que uma e outra têm por livros.

Mas algumas passagens do Fahrenheit 451 me fizeram dobrar pontas de páginas e trazê-las até aqui.

 

Porque livros são um objeto tão poderoso

“[…] Não há neles [nos livros] nada de mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós, a partir de retalhos do universo. […] A primeira: você sabe por que livros como este são tão importantes? Porque têm qualidade. E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a lâmpada, emanando em profusão infinita. […] Entende agora porque os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Estamos vivendo num tempo em que as flores tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto. […]” (p. 121)

– Embora o interlocutor esteja se referindo metaforicamente à textura e aos poros de um livro, eu gosto de pensar no livro como objeto fetiche, que compramos e amamos alisar pelo quão lindas são suas capas, pelo quão aromáticas são suas folhas. Toda vez que escrevo e leio me vem à mente um de meus versos preferidos das letras de músicas escritas por Vinícius de Moraes: “… e achava bonita/a palavra escita…” Eu sou uma que acho bonita a palavra escrita e muitas vezes é por isso que saio comprando livros.

 

Aromas

– Esta passagem me chamou a atenção pelo que ela trouxe do impacto dos aromas na consciência do personagem Montag, quando ele foge da cidade vigiada e cai no campo, numa região que a polícia controlava parcamente. Veja se não sente os aromas você também:

“Um veado. Montag sentiu o cheiro almiscarado como perfume misturado com sangue e a exalação viscosa do hálito do animal, todos os odores de cardamomo, musgo e ambrósia nesta noite gigantesca em que as árvores investiam para ele, retrocediam, investiam, retrocediam, ao ritmo do coração, atrás de seus olhos.

Devia haver um bilhão de folhas na terra. Montag mergulhou os pés nelas, um rio seco cheirando a cravos quentes e poeira morna. E os outros cheiros! De toda a terra se elevava um cheiro como o de batata cortada, crua, fria e branca por ter ficado exposta à lua na maior parte da noite. Havia um cheiro como o de picles num pote e outro, como o de salsa à mesa. Havia um leve aroma amarelo como o de um vidro de mostarda. Havia um aroma como o de cravos vermelhos do quintal da casa vizinha. Montag abaixou a mão e sentiu o capim se elevar como se um criança a roçasse. Seus dedos cheiravam a alcaçuz.” (p. 204)

– No livro Aroma, A História Cultural dos Odores, de que já tratei neste blog, o autor fala do quanto o ideal de uma sociedade perfeitamente burguesa é a desodorização. Com isto em mente, apreciamos ainda mais o mergulho de Montag nos cheiros em sua noite de fuga, fugindo da vida besta que levava, da sua Matrix inodora, para a super consciência do sentido mais inconsciente de todos, que é o olfato. Lindo.

 

Como a sociedade continua queimando livros

– Ray Bradbury escreveu um posfácio ao seu livro e um posfácio ao posfácio, a que ele chamou de Coda. É deste coda o trecho que trago a seguir, em que ele fala sobre como a sociedade continua queimando livros, como ocorreu na sua obra, e a despeito da Inquisição ser coisa do passado. Leia:

“[…] Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos. Cada minoria, seja ela batista, unitarista; irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista; sionista, adventista-do-sétimo-dia; feminista, republicana; homossexual, do evangelho-quadrangular acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar querosene e acender o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura insossa, como um mingau sem gosto, lustra sua guilhotina e mira na nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima de jardim-de-infância.” (p. 245)

– Reflita sobre a pertinência deste comentário, se não acontece de fato… Bradbury ainda diz mais isto aqui:

“Pois este é um mundo louco e ficará mais louco, se permitirmos que as minorias – sejam elas de anões ou gigantes, orangotangos ou golfinhos, adeptos de ogivas nucleares ou de conversações aquáticas, pró-computarologistas ou neo-ludditas, débeis mentais ou sábios – interfiram na estética. O mundo real é o terreno em que todo e qualquer grupo formula ou revoga leis como num grande jogo. Mas a ponta do nariz do meu livro ou dos meus contos ou poemas é onde seus direitos terminam e meus imperativos territoriais começam, mandam e comandam. Se os mórmons não gostam das minhas peças, eles que escrevam as deles. Se os irlandeses detestam meus contos passados em Dublin, eles que aluguem máquinas de escrever. Se os professores e os editores das escolas elementares acharem que minhas frases trava-línguas partirão seus dentes-de-leite, eles que comam o bolo rançoso embebido em chá fraco de sua própria produção apóstata. Se os intelectuais chicanos desejarem cortar novamente meu ‘maravilhoso terno sorvete (‘Wonderful Ice Cream Suit’) para que tenha o feitio de um terno popular (‘zoo’), é possível que o cinto se solte e as calças caiam. […]

Em suma, não me insultem com decapitações, decepamentos de dedos ou esvaziamento de pulmões que pretendam fazer em minhas obras. Preciso de minha cabeça para rejeitar ou assentir, minha mão para saudar ou fechar em punho, meus pulmões para gritar ou sussurrar. Não irei gentilmente para uma prateleira, eviscerado, para me tornar um não-livro.” (p. 248)

– Alguém entrega este trecho pro governo, por favor?

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro

 

BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pela fogo e queima. Tradução de Cid Knipel. São Paulo, Globo, 2009, 2ª reimpressão.

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