Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crítica literária > Zazie no metrô – Raymond Queneau
Zazie no Metrô não seria tão bom livro, em português, não fosse o espetacular trabalho de tradução de Paulo Werneck. É arriscado dizer que a tradução até o melhorou, mas certamente o rejuvenesceu 50 anos (o livro é de 1959; a tradução, 2009). Se bem que nada que a turma do OuLiPo tenha feito cheire a mofo; pelo contrário, dá vergonha ousar quaisquer experimentações linguísticas depois de, por exemplo, A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento, de Georges Perec, que fez parte da mesma patota do Queneau.
A história de Zazie… traz uma garota que vem passar o final de semana na casa do tio, em Paris, porque a mãe quer trepar com um novo bofe. O tio parece ser gay, e Zazie é a menina mais desbocada da face da Terra, e convive com assédios sexuais que não sabemos terem sido leves ou graves. A questão é que o tio quer lhe mostrar Paris e a guria quer andar de metrô, troço impossível, já que ele está em greve, além de vestir uma calça jeans.
Pronto, não tem mais nada o enredo. A graça da história está mesmo nos absurdos que os personagens falam, sem nenhuma inibição moral e – tanto no original, quanto na tradução – tampouco linguística: sendo o francês uma língua cuja escrita passa longe da fonética, Queneau adaptou a grafia de várias palavras pra que fossem escritas como faladas, e misturou alguns recursos típicos de roteiros, como diálogos e marcações de pausa e gestual, pra trazer a Paris das ruas pras páginas do livro. Adaptado por Louis Malle para o cinema, no ano de 1960, com roteiro escrito pelo próprio Malle e Queneau, o filme é ainda mais absurdo e deixa transparecer a diversão que talvez o texto, em algum momento ou outro, perca.
Da tradução de Werneck, apreciei particularmente alguns trechos em que ele recorreu à estrutura de tópico+comentário, mais colado no português brasileiro oral, que à padronizada, na norma culta escrita, sujeito+verbo. Se escrever algumas palavras como se fala (zatamente em vez de exatamente; keke ele ker em vez de o quê que ele quer; por ezemplo em vez de por exemplo) é engraçado, frases como “- Pois então, é que o Charles, nem sempre ele é legal” revela a bandeira de emancipar o português que todos falamos ele assim. Aliás, se quiser assitir um filme que mostra, de forma contundente, como a educação nas escolas está distante da realidade das ruas em Paris, recomendo o DVD Entre os Muros da Escola (Entre les Murs, 2008), muito show.
Abaixo citei algumas grafias gostosas de ler e uns trechos interessantes. O livro é bacana, vale a pena. Só uma coisa me irritou: o papel duplo que a Cosac inventou pra edição, que faz o livro escorregar quando o seguramos com uma mão só. Isso foi um saco, realmente.
Escrita fonética
Dondekevemtantofedô (p. 7)
Kekefoikevocêdiss (p. 8)
Pultaquilparil (p. 18)
Deusdossel (p. 31)
Milhor (p. 47)
Olhaqui (p. 51)
E quê que o seu fortão fazia cas bombas? (p. 61)
Zatamente (p. 65)
Tó (p.70)
Hormossecsualidade (p. 76)
Peraí (p. 77)
Tácsi (p. 78)
Secsualidade (p. 78)
Ezercício (p. 79)
Temkevê (p. 81)
Esprimenta (p. 82)
Esplicou (p. 88)
Ezagera (p. 91)
Keke tákontecendo aki? (p. 93)
Olhassó (p. 99)
Ezecutou (p. 105)
Poizé (p. 109)
Abissurdamente (p. 113)
Propózito (p. 114)
Kerotracoiz (p. 117)
Pra caráleo (p. 118)
Eles tão cagente (p. 119)
Hurgente (p. 123)
Éssim? Énão? (p. 124)
Poizentão (p. 124)
Espediente (p. 125)
Exquentar (p. 125)
Ezistência (p. 131)
Escadabaixo (p. 140)
Desdaquela hora (p. 148)
Sique erregê (p. 149)
Ezame (p. 154)
Calaboca (p. 157)
Então té mais (p. 169)
– Uma coisa que se deve dizer é que as escolhas do tradutor não recaem nas mesmas palavras que Queneau usou no original. Adaptando alguns enunciados do francês pro português, Werneck precisou aclimatar a escrita fonética a determinados sotaques e podemos ouvir, na tradução, ora cariocas, ora paulistanos, ora caipiras. Muito frequentemente tive a impressão de ouvir diálogos que poderiam configurar seja n´O Auto da Compadecida seja em Lisbela e o Prisioneiro dirigidos por Miguel Arraes. Algumas dessas aclimatações me pareceram forçadas, rejuvenescendo o original como num botox mal feito: como traduzir policemane por guardacop (p. 93) que até pode ser um vocabulário antigo mas que soa moderno demais, tipo Robocop, ou em Tu vois l´objet por Sentiu o drama. Em outras ocasiões, a culpa não foi de Werneck: Queneau traz vários neologismos e, num deles, se subtruquer vira subtrucar remetendo-nos a estudantes berrando numa mesa de truco, paciência. Enfim, se você curte este tipo de estudo linguístico, tá aqui uma dissertação de mestrado que compara as traduções de Wernek e Monique H. Cubric (Rocco, 1985).
– PS: a expressão que Zazie fala, mon cul, foi traduzida por Werneck como caralho. Vi que Cubric traduziu por porra nenhuma. Prefiro esta última, se bem que nem a pau ou o cacete caberiam perfeitamente.
C´est la vie
“Gridoux comia por lá mesmo, isso ajudava a evitar que perdesse um cliente, se algum se apresentasse; pra falar a verdade, àquela hora nunca aparecia ninguém. Comer no trabalho, então, tem uma dupla vantagem: já que não aparecia cliente nenhum a essa hora, o Gridoux podia comer a boia no maior sossego.” (p. 64)
– Sabe aquela coisa de falar não falando, tipo Mazzaropi? Troço hilário.
“Ela se atrasou, no entanto, por alguns instantes, para examinar o fulano dela que, pelado, roncava. Olhou para ele no atacado, depois no varejo, considerando principalmente com lassidão e placidez o objeto que a havia ocupado tanto durante um dia e duas noites, e que agora parecia mais um bebezão depois de mamar do que um galalau.” (p. 170)
– Aqui o tradutor se esmerou, pois traduziu gros por atacado, e détail por varejo, tornando um trecho quase romântico numa pornochanchada.
“ – Que cólica é a ezistência – retomou Madeleine (suspiro).” (p. 131)
– É a melhor frase do livro, disparado disparado!
Primor
“Ela vai voando. No andar segundo chegada, bate na porta a nova noiva. Uma porta em que se bate de tão graciosa maneira só poderia se abrir. Então se abre a porta em questão.” (p. 126)
– O livro tem alguns trechos que eu classificaria com fenômenos de hipercorreção de pensamento. Do mesmo jeito que falantes não-dominantes da norma culta hipercorrigem palavras simples pra parecerem difíceis (e certas), pessoas comuns falam bonito pra parecer inteligente. É a estratégia Rolando Lero, personagem da Escolinha do Professor Raimundo de Chico Anísio.
Anomalias
“ – Se você vir.
– Se você ver.
– Se você vir, com i.
Se você vir.” (p. 150)
– Se o brasileiro tiver/ter dúvidas, se tranquilize-se: não existe erro linguístico, apenas variações social ou politicamente aceitas/refutadas. Aproveitando a deixa, se você quiser/querer ler o original em francês de Zazie, clique/clica aqui. Esse trecho, em particular, é melhor no francês, porque a pronúncia não muda com ou sem a designação do tempo verbal, veja:
“– Que je rencontrai.
– Que je rencontrais.
– Que je rencontrai sans esse.
– Que je rencontrai.”
revisto por Mayra Corrêa e Castro (C) 2014
QUENEAU, Raymond. Zazie no metrô. Tradução Paulo Werneck. Posfácio Roland Barthes. São Paulo: Cosac Naify, 2009.