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As cidades invisíveis – Ítalo Calvino

Postado às 00:03 do dia 18/12/13

A coisa que mais incomoda neste livro é a capa: sisuda. Mas, vencido o receio, o interior é do Ítalo Calvino (1923-85) fabulista, aquele que escreveu O Cavaleiro Inexistente e O Visconde Partido ao Meio. Realmente, é difícil atinar porque a Companhia das Letras escolheu uma arte pedante pra capa se as histórias que o autor conta são tão surreais. Tudo bem que, por trás da descrição de cidades impossíveis de existir se revelam as qualidades e mazelas das que existem de fato, num intricado enredo em que Marco Polo, o navegador veneziano, narra suas viagens a Kublai Khan, imperador mongol do século XIII famoso então na Europa. Teoricamente estaríamos na época em que Khan recebeu Marco Polo pra uma conferência, porém as cidades descritas se localizam, mais apropriadamente, no plano do não-tempo.

A orelha do livro recomenda que ele seja lido demoradamente, mas fica difícil quando se trata de Calvino. A mistura bem-humorada de filosofia com fábula e crítica social nos capta desde o início. Mas talvez haja alguma razão no conselho: parágrafos longos vão formando imagens bem intricadas, daquelas que você se pergunta “péra aí, como é que é? pode repetir?”. Se é difícil descrever um quadro, imagine dezenas deles. Então, por vezes, sim, verdade: você terá que reler um trecho e fechar os olhos pra imaginar as cidades e habitantes mais estrangeiros que já soube haver.

Abaixo algumas das melhores partes.

 

 

Vaticínios

“Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe […]” (p. 22)

– Traduzido em psicologia jungiana: tomamos a forma de nossa sombra.

“ Seja como for, agora parecem contentes, essas moças: cantam de manhã.” (p. 50)

– Antigamente dizíamos que uma moça contente tinha visto um passarinho azul.

“ ‘Chega um momento na vida em que, entre todas as pessoas que conhecemos, os mortos são mais numerosos que os vivos. E a mente se recusa a aceitar outras fisionomias, outras expressões: em todas as faces novas que encontra, imprime os velhos desenhos, para cada uma descobre a máscara que melhor se adapta.’ ” (p. 90)

– Então né.

– O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.” (p. 150)

– A vida da dor e a vida do amor. Escolhamos o amor.

 

 

Governar

“Os embaixadores eram persas armênios sírios coptas turcomanos; o imperador é aquele que é estrangeiro para cada um de seus súditos […]” (p. 25)

– Quando o governo não é estrangeiro, se torna estrangeiro após um tempo, vide Brasil.

“Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categoria [felizes ou infelizes], mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados.” (p. 36-37)

– China: primeiro grupo; Estados Unidos: primeiro grupo; Alemanha: primeiro grupo; Inglaterra: primeiro grupo; Índia: primeiro grupo. Brasil: tão óbvio!

“ […] Bersabeia, cidade que só quando caga não é avara calculadora interesseira.” (p. 104)

– Que cidade não é como Bersabeia?

“Do caráter de Ândria, duas virtudes merecem ser recordadas: a confiança em si mesmos e a prudência. Convictos de que cada inovação em si mesmos influi no desenho do céu, antes de qualquer decisão calculam os riscos e as vantagens para eles e para o resto da cidade e dos mundos.” (p. 137)

– Todas as cidades deveriam ser Ândria. Aliás, se você tiver  a ideia de abrir um negócio sustentável e quiser um nome bacaninha, taí: Ândria. Você vai posar de erudito cool.

 

 

Navegar é preciso

“[…] porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revel-ase nos lugares estranhos, não nos conhecidos.” (p. 28)

“ – Você viaja para reviver o seu passado? – era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: – Você viaja para reencontrar o seu futuro?

E a resposta de Marco:

– Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.” (p. 29)

– Gosto demais desses trechos, porque costumamos pensar que as pessoas que viajam estão sempre correndo de si; mas Calvino nos propõe que estão correndo para si.

Fílide é um espaço em que os percursos são traçados entre pontos suspensos no vazio, o caminho mais curto para alcançar a tenda daquele comerciante evitando o guichê daquele credor.” (p. 85-86)

– Na atualidade, tal tipo de arquitetura é impensável: numa concessionária de carros, por exemplo, o IPI Zero caminha de mãos dadas com os juros de 21% aa.

POLO: Talvez do mundo só reste um terreno baldio coberto de imundícies e o jardim suspenso do paço imperial do Grande Khan. São as nossas pálpebras que os separam, mas não se sabe qual está dentro e qual está fora.” (p. 96)

– Ofereço uma réplica: “Somos dessa matéria de que os sonhos são feitos. E a nossa breve vida é circundada pelo sono.” – Shakespeare, em A Tempestade, na tradução de Geraldo Carneiro, 1991.

“A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar […]” (p. 115)

– Gertrude Stein, no livro Paris França, disse que deveríamos ter duas cidades, sempre: aquela pra onde nos mudamos nos fará ver com bons olhos aquela de onde partimos.

“Ândria foi construída com tal arte que cada uma de suas ruas segue a órbita de um planeta e os edifícios e os lugares públicos repetem a ordem das constelações e a localização dos astros mais luminosos: Antares, Alpheratz, Capela, as Cefeidas. O calendário da cidade é regulado de modo que trabalhos e ofícios e cerimônias se disponham num mapa que corresponde ao firmamento daquela data: assim, os dias na terra e as noites no céu se espelham.” (p. 136)

– Construíram-na com geometria sagrada.

 

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2013

 

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, edição 2012

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