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Vento Sul – Vilma Arêas

Postado às 00:01 do dia 30/05/12

Lembro-me de Vilma, de como ela entrava na sala de aula e girava a cadeira até encontrar uma posição que ficasse boa. Mas lembro sobretudo como ficamos excitados, nós, calouros no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, em 1992, de ter aula com uma das grandes – como chamávamos os professores mais tarimbados que achavam importante formar os alunos desde os primeiros anos, ao contrário de outros figurões que só se dignavam dar aula pra gente nos últimos períodos ou nem aí, só na pós-graduação.

Depois, quando me encaminhei para a Linguística, perdi contato com ela. Só fui saber notícias suas quando meu amigo Waltencir de Oliveira, que estava naquela mesma sala de aula em que Vilma chegava com óculos escuros pela manhã, comentou que ela tinha sido capa do Rascunho. Quanto tempo depois, então? Caramba, 20 anos… Fiquei 20 anos sem me preocupar da existência dela e ela da minha, até que nos “encontramos” nas páginas deste Vento Sul, seu primeiro livro de contos que figura entre uns outros cinco escritos e que já ganharam, inclusive, prêmios – e eu que nem sabia que ela era escritora de ficção.

Ler a ficção da minha professora Vilma bateu pesado. A memória que eu tinha dela era a dos meus 19 anos de idade, quando a gente acha que os professores são as pessoas mais chatas ou as mais maravilhosas (no caso dela) do mundo. São nossos heróis e a gente fica pensando quando vai chegar a ser como eles. Vilma nos ensinava Gregório de Matos em Literatura Brasileira I e eu me divertia com suas aulas, tanto quanto com ela.

A Vilma de Vento Sul é pungente demais, por isso a batida forte. Eu jamais suporia esta voz dentro dela, embalada que eu estava, quando abri a primeira página, pela recordação daquelas felizes aulas.

Vento Sul traz contos amargos, destes em que somos atirados no meio do tiroteio e “te vira, rapaz!”. Falam da morte, da vida que começa sem nada e termina de qualquer jeito. Aqui estão as partes que selecionei.

 

Do conto Thereza

“O noivo era Vicenzo Sciamarella Sant´Anna, um enérgico calabrês que aqui aportou em 1898 e se dedicou ao comércio. Quando morreu em 1931, aos cinquenta e seis anos, deixou uma rede de agêcias de jornais e revistas espalhadas por vários estados.” (p. 15)

– Sciamarella é um nome por demais familiar para mim. Lê-lo logo aí, na primeira página do primeiro conto, transportou-me diretamente à minha infância, em que ia de carro com meu pai até a esquina da Scimarella, que vendia jornais e também era uma banca de apostas da loteria. Mas meu pai parava o carro na esquina e jogava mesmo era no jogo do bicho. Vez em quando jogava na loteria. Lembro uma vez que ele ganhou e trocou o bilhete por 300, se eram cruzeiros, cruzados, não sei: eram 300! Este Vento Sul da Vilma fala de um vento na região do rio Paraíba do Sul. Eu me criei no Vale do Paraíba, não teria sido mais bem-vinda esta abertura.

 

Do conto República Velha

“O corpo pede rede no alprendre, canto limpo de sabiá-laranjeira e a fresca do nordeste que sopra no rio.” (p. 20-21)

– Não sei quem primeiro descobriu que o falar sertanejo é pouco fraseado, sem artigos indefinidos e raros definidos. Mas parece que, se for diferente, não parece verdade. Gostei por demais da cantoria da linguagem deste conto.

 

Do conto O Rio

“Saí. Era novembro e fazia muito calor. As lojas já ofereciam sua ornamentação rotineira de Natal.” (p. 44)

– Com esta frase o Natal anunciado em novembro fica ainda mais ridículo.

 

Do conto Caçadas

“Nos tanques, abandonada à própria sorte e também atormentada pela fome, a lagosta vai pouco a pouco se devorando pelas entranhas.” (p. 59)

– Este conto bem pode ser usado como manisfesto vegetariano em prol dos peixes e “frutos do mar”. E o seguinte também, Canto Noturno dos Peixes.

 

Do conto Lugar-Comum

“Casamento é casamento, que história é essa de felicidade, casamento acaba com o sonho de um homem, não dá pra explicar a uma virgem, é melhor esquecer.” (p. 67)

– Genial! Este “não dá pra explicar a uma virgem” é de lascar de bom!

 

Do conto A Dialética dos Vampiros

“Além do mais você é muito crítica. Isto [um seriado sobre vampiros na TV] não é para pensar, é só para ver e esquecer.

Ela faz um gesto de surpresa.

Não sou assim tão crítica. Só quero entender. Wittgenstein dizia que é preciso entender ou morrer.

Está vendo como você é?

Como é que posso esquecer o que não entendo? O que não entendo não esqueço jamais.” (p. 75)

– Eu gostei demais demais demais deste conto e por n motivos: a dificuldade de pais entenderem o gosto dos filhos; esta onda ridícula de vampirologia (achei que Anne Rice já tinha escrito tudo que valia a pena ser escrito sobre eles); o lado B de todos nós que consome enlatados e vibra. Ainda tem outro parágrafo sensacional, veja:

“De repente ela se lembra de que eles são eternos [os vampiros], então aquele dramalhão [o seriado de TV com vampiros] não vai ter fim.” (p. 77)

 

Do conto A Letra Z

“Está provado que a sensibilidade do homem moderno aos cheiros fortes foi pouco a pouco sendo aguçada pela indústria dos perfumes e dos cosméticos em contínuo aceleramento, gerando lucros que atingem as estrelas. Odores vivos de suor ou sangue dificilmente serão hoje sentidos como excitantes, conforme experimentou Graciliano Ramos em seus tempos de infância, pois aromas doces e fantasias higiênicas criaram a repugnância e volatilizaram o corpo. É fácil concluir que nada disso tem ajudado os amantes e muito menos os moribundos.” (p. 92)

– Trouxe este parágrafo porque ela é a essência de um capítulo do livro Aroma, Uma História Cultura dos Odores, de Constance Classen, que também já comentei aqui no As Melhores Partes. Constance fala da nossa disneylândia de sabores e cheiros artificiais. É isso aí.

 

Do conto O Vivo o Morto: Anotações de uma Etnógrafa

– Deste conto trago um sintagma que adorei: “a dimensão pragmática do meio-dia” (p. 108)

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

ARÊAS, Vilma. Vento sul: ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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