Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > filosofia > Que bobagem! – Natalia Parternak e Carlos Orsi
Existem dois tipos de críticas a uma obra: seu mérito, que busca elementos externos à obra pra comentá-la, e sua qualidade, que avalia os elementos intrínsecos à obra. Boa parte das críticas que foram feitas ao livro Que Bobagem! concentraram-se no mérito uma vez que, versando sobre 12 temas diferentes, seriam necessários 12 especialistas – um pra cada área – pra avaliar os argumentos e as referências bibliográficas trazidas pra classificá-las todas como pseudociência ou bobagem. (Aliás, é digno de elogio o esforço dos autores de mapearem referências em tão distintas áreas.) Já a discussão do mérito, qualquer pessoa – um leitor que comprou e leu o livro, como eu, por exemplo – pode fazer porque se julga a idoneidade da obra, suas intenções, seus pressupostos, sua pertinência, seu êxito na intenção.
Dito isto, se o livro tivesse trazido algo sobre aromaterapia – até mesmo fitoterapia – eu poderia avaliar o capítulo e discutir sua qualidade, embora eu consiga imaginar por onde os autores iriam e como eu discutiria o tema já que acompanho o Instituto Questão de Ciências, fundado pela autora do livro, desde sua fundação em 2018 com um anúncio de meia-página na Folha no mesmo dia em que eu participava de uma mesa-redonda no Ciaroma com a coordenação da PNPIC do SUS.
Então, eu só poderei discutir aqui o mérito da obra que, parece-me, tem um erro sério: quando você quer criticar alguém dizendo que o faz para “poupar a saúde, o bem-estar e o bolso do leitor”, como os autores afirmam no Epílogo – ou seja, com boa intenção -, o primeiro ponto a se observar é não tratar esta pessoa com descortesia. E este é um livro descortês.
Quando se quer ajudar o outro, ou convencê-lo, o que você diz não é mais importante de como você diz. Creio que os autores do livro conhecem a máxima de que a diferença entre veneno e remédio é a dose e talvez entenderão de que administraram um veneno por demais amargo. A consequência é que aumentaram a chance dos pacientes não aderirem ao tratamento.
Embora eu não tenha repertório pra avaliar os temas discutidos, os argumentos trazidos me pareceram bem construídos. Mas posso criticar alguns pressupostos. O primeiro diz respeito à astrologia. Os autores afirmam que a astrologia se pretende científica – este é seu pressuposto. Bom, não sei qual astrologia eles consumiram pra ter esta percepção, mas se pegarmos Liz Greene, por exemplo, nunca a vi dizendo que astrologia é ciência. Na verdade, me soa extremamente forçado dizer que os astrólogos se pretendem científicos. Tanto é assim que qualquer papo sobre astrologia começa por “você acredita em astrologia?”. Se as pessoas iniciam um papo assim é porque sabem que astrologia é crença – em vez de algo científico. É mais ou menos como “você acredita em Deus?”. Eu penso que pra que algo seja classificado como pseudociência, primeiramente precisaria se pretender ciência. E como eu leio sobre astrologia há talvez 35 anos (aliás, minha antiga biblioteca sobre o tema foi doada ao curso de Artes Divinatórias das antigas Faculdades Espíritas de Curitiba – preste atenção: ARTES Divinatórias), soou-me absurdamente estranho os autores terem esta referência de que haja um consenso no meio da astrologia de que qualquer coisa ali seja científica. De toda forma, penso que seja fácil buscar aqui e ali alguém dizendo que astrologia é ciência. E como este debate, aliás, pouco me interessa – porque astrologia pra mim é antes de tudo uma curiosidade divertida e uma forma que conversar sobre o comportamento humano -, de minha parte o dou por encerrado.
Os demais pressupostos que questiono são sobre Homeopatia, Psicanálise e Antroposofia. Homeopatia, pra mim, é placeboterapia, sempre tive esta percepção. E sempre achei que é muito positivo haver uma placeboterapia administrada por um médico, que não será criticado por não prescrever nenhum medicamento convencional depois da consulta – posto que o paciente não tem nada que merecesse medicação – já que prescreveu alguma coisa: um placebo. Da mesma forma que a discussão sobre automedicação é intransigente (nunca faça automedicação), aquela sobre placeboterapia também o é. Todo mundo sabe que placeboterapia funciona pra uma parcela de pessoas, mas ninguém acha ético investir em placeboterapia pois, como os próprios autores comentam, um médico teria que deliberadamente enganar o paciente. Não considero este argumento peremptório e consigo lembrar situações em que médicos deliberadamente enganam seus pacientes como quando vão contando sobre a gravidade da doença aos poucos, por exemplo. Contudo, posso aceitar que esta discussão não caberia neste livro – mas é algo que vale a pena trazer no futuro. A placeboterapia é inerente à farmacoterapia (sugiro ler o excelente livro Manual de Medicina Baseada em Evidências). A fé na ciência, um traço comportamental que conceitualmente não faz sentido, contudo é real e provoca efeitos. Por que não incluir esta discussão sobre placeboterapia também?
Sobre Psicanálise e Antroposofia, o que me surpreendeu na discussão é a importância dada à ideologia em vez de aos aspectos técnicos. Parafraseando-me, eu diria que discutiram estas áreas pelo mérito muito mais que pela qualidade. Eu convivo no meio de psicanalistas e de médicos e psicólogos antroposóficos há pelo menos 3 décadas. Da mesma forma que pra Astrologia, não vejo – no meio no qual convivo – ninguém dizendo que qualquer coisa ali seja científica. Os autores também deixam transparecer que Antroposofia é coisa de fascitas/nazistas (não o dizem com estas palavras), mas o que mais tem em escolas antroposóficas, em consultórios e escolas de psicanálise – e em consultórios de homeopatia – é eleitor de esquerda. Sei que isto pode chocar os cientistas, mas foi a esquerda que colocou as PICS no SUS: não foram eleitores da direita – e é assim até hoje. Os primeiros argumentos antivax que li em minha vida me foram repassados por eleitores do PT; o povo que não quer usar vacina é, antes de tudo, gente natureba, e gente natureba é fundamentalmente de esquerda, porque são progressistas e valorizam os saberes minoritários e autodeterminativos. A adesão antivax de conservadores de direita é um fenômeno muito recente ou restrito a comunidades como os Amish. Assim, as críticas que os autores fizeram tanto à Psicanálise, quanto à Antroposofia (e, em certa medida, à Constelação Familiar) me pareceram enviesadas demais, ideologicamente falando. Sobre Psicanálise, poderiam ter enveredado, por exemplo, como argumento contra, para os mesmos que Leonardo Mlodinow trouxe em seus livros (que, aliás, eles citam) ou sobre este novo campo do conhecimento chamado de Ciência Cognitiva. Isto já seria suficiente pra demonstrar que há coisas melhores pra entender o inconsciente hoje em dia. Mas preferiram fazer uma crítica a Freud ignorando (não sei se de propósito) o papel indiscutível que ele teve como crítico de toda a cultura que convencionou-se chamar de “pós-modernismo”. Sobre Antroposofia, bastaria equipará-la a qualquer outro sistema de pensamento (ou “episteme”, pra ficar na linguagem do livro) pra mostrar ao leitor que é uma questão de crença e cultura. O que ficou difícil é que os autores quiseram classificar a crença das pessoas em certas e erradas, em permitidas e não permitidas, em inteligentes ou em bobagens – e isto é muito descortês. Se tivessem discutido se é ético colocar crenças no SUS, a discussão teria sido mais proveitosa, inclusive porque ninguém hoje aborda o assunto das PICS no SUS a partir desta chave. Quando alguém vai começar a discutir se o conceito de saúde – que é amplo o suficiente na OMS e em nossa Constituição – deve ou não aceitar pseudociências e/ou crenças (aka, bobagens) no SUS? Esta, pra mim, é a discussão mais importante e mais proveitosa. Mas cadê a coragem pra mexer neste espinheiro? Desconfio que mexer neste espinheiro é questionar o progressismo – que valida, como eu disse, os saberes e identidades minoritários. E o progressismo é o mainstream da intelectualidade. Quem tem coragem de criticar isto?
Voltando ao ponto da descortesia, um exemplo palpável dela apareceu na escolha dos autores de como notar uma data antes de Cristo (a.C.): usaram a notação laica a.ec (antes da era comum). Sendo cientistas, pode até fazer sentido usar a.ec em vez de a.C. porque a ciência é, desde o Iluminismo, a vitória da razão sobre a fé (mesmo não sendo incompatível professar alguma fé e ser cientista), mas também revela uma certa dificuldade de não tornar tudo o que você escreve um statement, uma certa dificuldade de compreender que há significantes que ultrapassam seus significados primários; em suma, revela a postura – bem alinhada com pensadores como Foucault e Derrida – de que palavras são atos políticos, uma visão bastante à esquerda que, muito provavelmente, vai afugentar do livro leitores que se identificam mais à direita. Outra lição sobre convencimento: não mude signos que são importantes ao seu interlocutor apenas pra marcar sua posição. A diferença entre guerra e diplomacia talvez esteja justamente em ser cortês com as crenças dos outros e adotar significantes dos outros quando se quiser abrir um campo de referências em comum.
Como leitora, indico a leitura do livro. Como aromaterapeuta, como bacharel em linguística e como acadêmica de farmácia, acho que é uma leitura obrigatória. Mas sei que sou um ponto muito fora da curva no meio das PICS, porque acolho as críticas que nos são feitas. E também sou um ponto fora da curva porque insisto sempre que não se faça o que chamo de sci-washing em aromaterapia, acho que ela não deveria estar no SUS (e lembro que eu já era presidente da Abraroma na época) e porque prefiro dizer que a aromaterapia é uma arte terapêutica, um saber tradicional em vias de construção e de entendimento a dizer que é uma ciência. Por causa destas minhas opiniões, já fui xingada como “a desgraça da aromaterapia no Brasil”, já me mandaram “parar de ensinar e deixar isto pra quem ama a aromaterapia”, já me disseram pra eu “descer do meu pedestal de lama”. Em bom português, tô nem aí pra estas críticas. Mas me importo com as críticas que pessoas como Natalia Pasternak fazem ao nosso campo de conhecimento: elas me instigam a melhorar, me instigam a adotar as melhores práticas, a buscar o que pode ser feito pra que a aromaterapia seja aceita no mainstream científico como, por exemplo, a iniciativa ARQAT, a da Fundação Gattefossé, o mapa do CABSIN entre outras. Na verdade, eu admiro a autora mesmo que não concorde com tudo, mesmo que esteja aqui fazendo uma crítica da abordagem do livro (a descortesia). Mas, se o faço, é porque eu mesma sei que, quando subimos o tom, mais afastamos que aproximamos. Às vezes subimos o tom (eu o subo muitas vezes), e pagamos o preço por isto. Se a autora gostasse de Psicanálise, ela poderia dizer que minha crítica foi uma projeção. E eu a aceitaria me divertindo com a ideia pois, afinal, rir de si é algo bem típico de quem tem sol em leão e lua em sagitário.
Abaixo selecionei as melhores partes pra comentar.
Premissas
“Uma terapia que falha em mostrar benefícios para a saúde quando testada de forma rigorosa pela ciência pode desempenhar um sem-número de outras funções – emocionais, sociais, religiosas, artísticas, econômicas, espirituais, o que seja. Mas é certamente incapaz de realizar as curas que promete.” (p. 11)
– Cura aqui talvez não esteja no sentido amplo, pois alívio de sintomas não é cura, redução da progressão da doença/condição/sintoma não é cura. Terapia, por outro lado, está num sentido amplo: é possível, usando este termo, descartar tudo que uma terapia faz ainda que algumas intervenções dela demonstrem eficácia. A pergunta que fica, então, é: quantas intervenções de uma constelação que existe em determinada terapia precisam demonstrar eficácia clínica para que a terapia em si passe a merecer ser chamada de eficaz: 100%, 80%, 70%. Pra talvez ficar mais preciso, este parágrafo poderia ser reescrito assim: “Uma intervenção terapêutica que falha (…) Mas é certamente incapaz de realizar o resultado em saúde que promete.”
“Densidade de causa, por sua vez, acontece quando o número de pessoas tentando a pseudocura é elevado, o que aumenta a chance de surgirem, por acaso ou coincidência, exemplos de supostos ‘resultados positivos’ que chamam a atenção do público.” (p. 13)
– Olhe, estatisticamente, resultados positivos são mais prováveis de ocorrer em n baixos porque há menos elementos no conjunto e, por isto, é mais fácil ocorrer algum tipo de relação entre eles. Então, ou entendi errado o que o parágrafo acima quis dizer, ou o parágrafo está simplesmente errado. O que seria certo é dizer que, quanto mais pessoas estiverem se submetendo a uma terapia, maior a chance de você conhecer alguém que a testou. A chance de você ouvir falar de um efeito positivo, nesta situação, por outro lado, me parece derivar não do número de pessoas em si obtendo efeitos positivos (densidade de causa) mas de um viés que já foi bem documentado em Rápido e Devagar, que é a heurística do afeto e a ilusão de validade. (A Lei dos Números Realmente Muito Grandes, aliás citada no livro, afirma que coisas improváveis podem ocorrer (Taleb chama isto de “cisnes pretos). Mas a probabilidade do improvável é rara; então, eventos improváveis apenas chamam atenção pelo ineditismo, mas não por sua frequência.)
“Condicionamento clássico é um dos segredos por trás do efeito placebo.” (p. 16)
– Estão falando aqui de Pavlov. Eu não penso que esta seja um conclusão tão óbvia assim. Parece-me um pouco simplista. O condicionamento clássico depende de um certo número de vezes de exposição a um estímulo com reforço positivo. Considerando que o efeito placebo é observado em ensaios clínicos cujos participantes estão se expondo pela primeira vez àquela intervenção e não recebem reforço positivo pois tal reforço poderia enviesar os resultados, como poderia ser um condicionamento clássico? A expectativa, que não é um condicionamento clássico, parece-me mais razoável como ponto de partida pra explicar o efeito placebo. Por outro lado, considerando o nocebo, os autores estariam dispostos a considerá-lo um simples condicionamento clássico também? Se a gente estressar o assunto, até “temperamento” capaz de aparecer nas explicações de placebo e nocebo.
“Parece complicado encaixar a homeopatia em conhecimento tradicional, já que se trata de prática inventada há aproximadamente 200 anos.” (p. 57)
– A definição do que é uma medicina tradicional rende um doutorado. A definição mais comumente citada é a da OMS, na qual o tempo não é determinante para uma medicina ser considerada tradicional, mas o fato dela vir de “populações indígenas”. Claro que, quando se fala em populações indígenas, a coisa complica, porque uma população indígena não é estanque no tempo, mas se transforma, assimilando a cultura vivenciada por uma geração quando o conhecimento é transmitido à próxima geração. Porque o conceito de população indígena não é estanque no tempo é que podemos nomear os descendentes das etnias indígenas do Brasil de povos originários, mesmo na atualidade, em que muito do que compartilham também é compartilhado por um brasileiro, como a língua portuguesa, por exemplo. Primeiro ponto, então, não é o fato de possuir “apenas” 200 anos que descredencia a homeopatia como medicina tradicional: seria muito mais o fato de ela não descender de indígenas. Por outro lado, não é unânime que uma medicina, pra ser tradicional, deva necessariamente descender de populações indígenas. A OPAS, por exemplo, salienta que medicina tradicional requer longa história, ancestralidade ou tradição, mas exclui a questão da população indígena. Assim, veja que dentro de uma mesma organização – OMS e seu braço OPAS – há divergência sobre o que seja medicina tradicional. Claro que achar que tudo que existe há 200 anos existe há pouco tempo é apenas uma opinião. Afinal, quem definiu que 200 anos é pouco? Além disso, a homeopatia deriva de um conhecimento que remonta a postulados “indígenas” (no caso, os “indígenas” que habitaram a região do Mediterrâneo oriental, persas, gregos, romanos…) como a Tábua da Esmeralda. Se admitimos que o conceito de indígena evolui no tempo, por que negar que a homeopatia também tem suas bases indígenas? Mas, olhe, eu discuto isto aqui pelo bem da discussão. Na real, eu pouco me importo como classificam a homeopatia, de tradicional ou moderna, só que quero deixar a discussão justa, trazendo outros pontos de vista.
Curiosamente, até os autores parecem ter admitido que tempo não é um fator determinante pro que é ou não tradicional. Leia esta outra citação:
“Existem várias razões para que um determinado comportamento, medicamento ou tratamento seja adotado por um povo e se torne tradicional.” (p. 93)
– Bom, pra que houvesse coerência entre a afirmação sobre a homeopatia e este outro parágrafo, “tradicional” não poderia estar associado à palavra medicamento, posto que medicamento (forma farmacêutica definida) também terá lá os seus 200 anos… Ok, talvez os autores quiseram dizer “remédio”.
“De qualquer modo, é falsa a ideia de que para tratar o paciente de forma holística, ou para dar-lhe protagonismo em seu tratamento, é preciso sair do universo da medicina dita ‘convencional’.” (p. 59)
– Concordo com esta afirmação mas, pra tanto, preciso concordar com a definição de holístico embutida, que equipara holismo a cuidado, a tratar do doente e não apenas da sua doença. Bom, holismo é isto também. Não é apenas isto, entretanto. Holismo também embute uma concepção de mundo que diferencia os paradigmas médicos em biomédicos e em vitalistas. É uma diferença insuperável para a biomedicina, posto que ela não concebe o mundo como animado por uma energia vital, mas como uma propriedade emergente de sistemas complexos. Novamente, não milito no holismo, mas sempre gosto de desengravidar as palavras e sua semântica.
“Enquanto hipótese, o inconsciente psicodinâmico funciona de modo muito semelhante a uma teoria da conspiração. A partir do instante em que alguém aceita, como artigo de fé, a premissa de que o mundo é controlado por comunistas, marcianos ou pulsões inconscientes, instâncias baseadas em pareidolia (a tendência de interpretar estímulos vagos e aleatórios como tendo significado) e apofenia (tendência de enxergar conexões entre eventos independentes ou dados aleatórios) tomam conta do aparato intelectual.” (p. 193)
– Eu apenas citei esta parte do livro pra que você conheça estes dois termos: pareidolia e apofenia). A própria formulação de um mecanismo de repressão do inconsciente demonstra que ele não controla o mundo. O mecanismo de repressão está nos postulados de Freud. Next?
“Do ponto de vista dos estudos modernos sobre o funcionamento da memória, todo o conceito de repressão é problemático. Primeiro, porque sabemos que as memórias não sao exatamente registradas, como arquivos em um hard-drive, mas reconstruídas cada vez que as evocamos – e muitas dessas reconstruções incluem interferências de outras memórias, ou mesmo da imaginação, o que pode ser especialmente verdade no caso de eventos traumáticos.” (p. 195-196)
– Não sei se os autores estariam familiarizados com o conceito de “elaboração secundária” em psicanálise, porque ele fala a mesma coisa que o parágrafo acima…
“Bobagens pseudocientíficas se recusam a aceitar as regras do jogo. Mas querem ser reconhecidas como ciência mesmo assim, porque veem que o ‘branding’ científico gera credibilidade aos olhos do público (e não prejudica as vendas, muito antes pelo contrário.” (p. 309)
– Parece que eu mesma escrevi este parágrafo, embora meu estilo seria mais como: ajoelhou, reza, ou você apenas tá querendo posar de santo cientista.
O comportamento humano
“O raciocínio é o seguinte: o paciente tende a abraçar alguma terapia alternativa quando não aguenta mais – quando o desgaste de procurar ajuda lhe parece menor que o sofrimento por que está passando, quando o senso de urgência para tomar uma atitude, ‘fazer algo a respeito’, torna-se irresistível.” (p. 14)
– É tentador crer que apenas pacientes que “não aguentam mais” buscam terapias alternativas: mas não é a realidade. Muitos buscam primeiro a alternativa por medo das convencionais, por facilidade de acesso às alternativas, por ausência de soluções nas convencionais. Por outro lado, me parece que “o desgaste de procurar ajuda…” também ocorre no campo das terapias convencionais. Felizmente, páginas depois os autores citam a quimiofobia.
“Define-se como quimiofobia o medo irracional de ‘produtos químicos’, expressão que geralmente se refere a qualquer produto sintético, manipulado pela indústria química ou farmacêutica.” (p. 105/106)
– Descobri uma curiosidade: em 1981 fundou-se nos EUA uma certa American Antichemophobic Society (Sociedade Americana Antiquimiofóbica). O que me interessa nesta discussão não é criticar o comportamento das pessoas quimiofóbicas como se fossem simplesmente estúpidas ou burras; mas, antes, discutir: ok, quais foram os fatos que as tornaram assim? como podemos ajudá-las? se o comportamento se amplia pra populações grandes, como lidar com isto? Creio que o exemplo recente da vacinação da Covid ensinou muito a todos e pudemos constatar que a informação franca, aberta, sem esconder os riscos inerentes, apresentando informações a pessoas como se de fato fossem adultas em vez de crianças que deveriam aceitar tudo que cientistas falam como se fosse verdade é o caminho pra vencer a quimiofobia. A pior coisa que um cientista pode fazer é tratar um leigo como alguém estúpido. A melhor coisa é tratá-lo como alguém que tem medo e lembrar que o medo irracional requer empatia e afeto. (Lembrar de seus próprios medos ajuda.)
“Transformada em arma pelo mercado de wellness, a falácia do natural mira em dois alvos: o medo e a vaidade, assim atingindo dois grupos distintos. O primeiro é composto por pessoas vulneráveis, assustadas, que passaram ou estão passando por momentos de vida difíceis: alguém próximo – ou elas mesmas – sentindo-se traído ou desenganado pelo sistema formal de saúde ou pelos próprios limites da ciência. Afligidas pelo desespero e, não raro, pela frieza e falta de empatia de algum profissional de saúde, essas pessoas se voltam para camelôs de sonhos que, junto com o remédio inútil, vendem o tempo e a atenção tão escassos no sistema médico.
“E existe o consumidor por vaidade, que se sente num plano espiritual superior por causa da aula de yoga, meditação (estudos de psicologia indicam que atividades ‘mente-corpo’ tendem a reforçar, e não suprimir, o narcisismo dos praticantes) e do pedigree do tomate que põe na salada.” (p. 113)
– Perfeita colocação. Vivendo neste meio há 24 anos, concordo que é assim mesmo. Mas lembro que não é assim com todos que trabalham com o natural ou com o wellness. Da mesma forma que há gente picareta na ciência, que tem médico fdp prescrevendo medicamento sem precisar de propósito, tem gente que entende perfeitamente as limitações de sua prática “alternativa” e não explora a carência das pessoas. E arrisco dizer que os bons, numa sociedade, são sempre em maior número que os ruins, em qualquer lugar, em qualquer tempo (exceto, agora, em uma prisão).
Cientificismo
“A ciência é limitada pela nossa capacidade de ver, interrogar e interpretar a natureza. Pseudociências e ‘outras epistemes’ são limitadas apenas pela imaginação, vaidade e, não raro, ganância de seus promotores. Por isso, seu poder de sedução é enorme.” (p. 25)
– Nossa, como deve fazer bem acreditar que a ciência é imune à imaginação, a vaidade e à ganância de seus promotores.
Comparações
“A prática da sangria (…) Muitas vezes, os pacientes morriam mais do tratamento do que da doença.” (p. 47)
– Eu sempre acho que, pra toda comparação ser justa, os dois lados da história precisam ser exibidos. Teria sido muito válido citar estudos mostrando a quantidade de mortes que são estimadas por causas iatrogênicas. E estes estudos deveriam vir com uma boa reflexão sobre como separar as causas de mortes na linha do tempo desde que um tratamento iniciou. A falta desta comparação pode levar o leitor a uma ideia de que apenas as terapêuticas alternativas provocam morte.
“Para parafrasear o relatório de Franklin e Lavoisier, a imaginação, na ausência de uma suposta energia vital, produz efeitos notáveis; a suposta energia vital, na ausência da imaginação, não produz nada.” (p. 145)
– Creio que você concluiu que a imaginação é a própria energia vital, não?
“Uma pesquisa conduzida na Inglaterra e no País de Gales, publicada em 2016, envolvendo quase 15 mil pessoas , determinou que pouco mais de 5% relataram efeitos negativos duradouros de processos psicoterápicos [pesquisa 1]. (…) Outras estimativas sobre a fração de pacientes que sai da terapia pior do que entrou chegam a 10% [pesquisa 2].” (p. 184)
– Algumas coisas interessantes sobre esta pesquisa [1] é que a maioria (51%) recebeu a terapia cognitivo-comportamental (talvez alguém esteja pensando que receberam apenas psicanálise) e quase todo mundo (95%) não reportou efeitos negativos duradouros. Já na outra pesquisa [2], a informação dos 10% é apud (mas não me pergunte porque os autores não mencionaram ser um apud) de uma pesquisa de 2003 em que 12 pesquisadores de um grupo de 25 responderam a um questionário no qual uma das perguntas era concordar ou discordar da afirmativa “Approximately 10% of clients get worse as a result of therapy” (Aproximadamente 10% dos clientes ficam piores como resultado da terapia”). A pesquisa não informa de onde tirou esta afirmação, mas diz que todas as afirmações do questionários partiam de evidências. Mas a concordância deste n de 12 pesquisadores com “aproximadamente 10% dos clientes ficam piores como resultado da terapia” não foi maior que a concordância deles com a afirmativa “Therapy is helpful to the majority of clients” (Terapia é útil na maioria dos casos); uma concordância bastante coerente com o fato de que “100% – 10% é igual a 90%” não saíram piores. Agora tire suas próprias conclusões.
“Este tipo de leitura busca encaixar o passado histórico num esquema de referências ancorado na imaginação e no repertório disponíveis no presente: o fato de uma imagem evocar uma nave espacial ou um astronauta, quando vista com os olhos do homem moderno, não implica que ela tivesse o mesmo referente para nossos antepassados, séculos atrás.” (p. 263)
– Quem construiu as pirâmides, já que a tecnologia pra levar aqueles blocos de pedra e blá-blá-blá.? Bom, dê uma pesquisada e hoje já há bem mais informações sobre o método. Um sapiens sapiens do neolítico talvez não acreditasse em disco voador pelo simples fato de que eles sequer poderiam conceber isto.
“(…) o misticismo de cada era tende a seguir de perto a (in)compreensão popular da ciência da época: uma visão ao mesmo tempo simplificada e sensacionalizada do conhecimento científico disponível.” (p. 297)
– Nisto misticismo e ciência concordam: a tecnologia disponível orienta nossa percepção. Ou alguém acha que a ciência é imune a modas?
“A semente deste Que bobagem! está aí. Não se trata de desqualificar ou demonizar gente que acredita em práticas de saúde sem comprovação científica ou que tem ideias exóticas (e demonstravelmente falsas) sobre a história humana e a própria natureza da realidade.” (p. 307)
– Imagine se o objetivo tivesse sido este?!
“Assim chegamos ao paradoxo de algo se vender como científico – isto é, capaz de explicar, descrever a realidade prática, empírica, tão bem quanto os produtos da ciência -, ao mesmo tempo que alega que a ciência é incompetente para testá-lo.” (p. 310)
– Como eu sempre digo aos meus pares: ajoelhou, reze, senão você tá querendo fazer bonito com o chapéu dos outros. Mas os autores o disseram acima de forma muito mais bem elaborada.
PARTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos Que bobagem! Pseudiociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. 1a. ed. São Paulo: Contexto, 2023.
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