Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoconhecimento > Quando a alma fala através do corpo – Hans Morschitzky e Sigrid Sator
Este livro tem como subtítulo “Compreender e curar distúrbios psicossomáticos”, mas não espere fórmulas mágicas, narrativas inequívocas do tipo “diga-me onde dói e te direi como és”. O livro acredita que, sobretudo, o adoecimento psicossomático manifesta-se de forma tão individual quanto o número de indivíduos que existem no planeta. Para lidar com ele, informação faz parte do pacote e é disso que trata este livro: informar sobre a dinâmica das diversas doenças nas quais o componente “psico” é bem importante.
Os autores, alemães, abordam algumas doenças que aparecem associadas a relevantes questões comportamentais, quais sejam: doenças cardíacas, pressão arterial, asma, dor no estômago, incontinência urinária, coceiras na pele, questões ginecológicas, zumbido no ouvido, afonia e outras questões da esfera ORL (otorrinolaríngea), questões oculares, bruxismo, questões do movimento e dores sem causa identificada. Para cada uma das doenças, o texto é organizado de forma didática iniciando com o relato de um estudo de caso, seguido de uma explicação sobre os aspectos simbólicos do distúrbio e concluindo com uma análise sobre as duas facetas dos sintomas estudados: quando possuem uma causa orgânica e quando são distúrbios funcionais somatoformes.
Para exemplificar esta organização do livro, vou pegar aqui o capítulo sobre asma e outras questões respiratórias. Os autores colocam a hiperventilação e a tosse psicogênica na esfera de distúrbios funcionais somatoformes do sistema respiratório; e colocam a asma brônquica e o bronquite crônica na esfera de doenças do pulmão com relevância psicossomática. Esta organização é particularmente útil quando se tem dúvida sobre o nível de “organicidade” de um sintoma, embora eu não queira dar a impressão de que os autores creem que existam doenças puramente psicossomáticas, pois eles não creem nisso. Aliás, a introdução do livro é elucidativa em relação à maneira como a psicossomática foi evoluindo na história, passando por fases em que o somático era mais relevante que o psíquico e outras em que esta relação estava invertida. No final, o recado é o salutar caminho do meio: todo adoecimento é psicossomático e devemos investir tanto nos tratamentos biológicos quanto nos psicológicos.
Outro ponto tornam esta leitura interessante, que é vislumbrarmos o funcionamento do sistema de saúde alemão, pois um dos autores, Hans Morschitzky é psicoterapeuta com emprego no hospital-dia psicossomático Landes-Nervenklinik (Linz, Alemanha), mas também atende de forma particular em consultório. Assim, obtemos cá e ali uma ideia de como a questão do adoecimento psicossomático é encarado no meio médico alemão. A outra autora é jornalista e imagino que isso tenha ajudado o livro a ficar com uma leitura mais fluida, encontrando o tom adequado para conversar com profissionais da saúde e, ao mesmo tempo, com pacientes.
Abaixo selecionei algumas melhores partes pra comentar. Me diga o que achou depois, combinado?
Psicossomática de manual
“A concepção de que pacientes com os mesmos sintomas físicos seriam igualmente idênticos em termos psíquicos é um mito.” (p. 16)
– Quando tivemos aula sobre psicossomática na formação em aromaterapia da Casa Máy, cunhei o termo “psicossomática de manual” pra falar daquele tipo de informação que encontramos em livros como os de Cristina Cairo, Louise Hay e Rüdiger Dahlke. Mas o criador desta psicossomática de manual foi o médico internista e psicanalista alemão Franz Alexander, que migrou para os EUA e publicou em 1950 a obra Medicina psicossomática. Suas ideias receberam o nome de Teoria da Especificidade e ele falou dos “sete sagrados” adoecimentos em que os pacientes teriam todos a mesma psicodinâmica: úlcera péptica, asma brônquica, hipertensão, artrite reumatoide, enxaqueca, colite ulcerosa, neurodermite. Pois a primeira coisa que psicólogos que lidam com pacientes psicossomáticos nos contam é que não existe esta coisa dos pacientes terem todos o mesmo “jeitão”. Cada paciente adoece de um órgão porque adoece daquele órgão, mas isso não tem a ver com o fato dele compartilhar o mesmo tipo de personalidade com outro paciente que sofre a mesma coisa. Mas agora você não precisa pegar todos os livros que já leu dizendo que dor no joelho é rigidez mental e orgulho e jogá-los no lixo. Pelo menos com aqueles pacientes que são difíceis de falar de si e não possuem recursos de linguagem pra significar no campo do simbólico seu adoecimento, esses manuais servem como um bom puxador de conversa. Apenas não deveriam, nunca, condicionar o olhar do terapeuta sobre a personalidade do paciente, senão já estamos dando o diagnóstico de personalidade antes da pessoa sequer abrir a boca pra falar de si!
“Trata-se de um problema básico dos conceitos psicossomáticos unilaterais o fato de os seus representantes buscarem nos pacientes sempre aquelas causas que já associaram de antemão à doença psicossomática. Essa postura pouco crítica é problemática, pois reduz a complexidade de psicossomática. Na psicoterapia, por sua vez, é estritamente necessário descobrir no caso de cada paciente os modos de pensamento, vivência e comportamento individuais relevantes para o distúrbio, assim como as condições de vida que adoecem.” (p. 17)
– Se coloque no lugar do paciente com asma que vai no consultório de psicoterapia. Como você se sentiria ao saber que o psicoterapeuta está olhando pra sua cara e esperando o momento em que você dirá: “okay, eu tenho um vínculo não dissolvido com minha mãe!”? Duro, né? Mas a pergunta seguinte seria: pra que pagar um psicoterapeuta pra entender como suas questões emocionais disparam a asma se tudo que você precisa saber é que num manual está escrito que asma é problema de vínculo não-dissolvido com a mãe?
Pacientes e pacientes
“Comparados a pacientes com doenças primariamente psíquicas como, por exemplo, transtornos de ansiedade, aqueles com distúrbios somatoformes e psicossomáticos apresentam na maioria das vezes uma motivação baixa para a psicoterapia.” (p. 40)
– Isso é algo curioso. Será que pessoas com baixa motivação para a psicoterapia recorreriam mais facilmente à aromaterapia? Cogito isso porque a aromaterapia cria uma dinâmica de autossuficiência e talvez isso seja importante quando se acredita que uma psicoterapia não ajudará em nada.
“Não são as afecções em si, e sim, aspectos psicossociais e a avaliação destas como perigosas, que determinam se as pessoas atingidas procuram um médico ou não. E é justamente isso que define a essência dos distúrbios somatoformes!”(p. 134)
– Isso é algo que fica claro no livro: quem define se está ou não está doente é, em primeiríssimo lugar, o paciente. Se mesmo quando os exames não revelam nada, o paciente poderá continuar doente, desde que perceba seus sintomas como sintomas de alguma doença qualquer.
Os fracassos psicossomáticos
“Como um todo é adequado que sejamos modestos em relação ao tratamento terapêutico de doenças de pele, pois estas muitas vezes são crônicas, incuráveis e fruto de causas multifatoriais. Normalmente trata-se “apenas” de amenizar as afecções, impedir um agravamento, fortalecer a autoestima e evitar ou desfazer reações ansiosas e depressivas.” (p. 190-191)
– Eu sempre digo aos meus alunos: doença de pele é a coisa mais ingrata na face da terra de tratar, inclusive na aromaterapia.
Nós, o mulherio
“A ação recíproca entre corpo, psique, condições de vida sociais, culturais e econômicas manifesta-se no caso de mulheres de modo específico no passado e no presente. A saúde feminina é, em primeiro lugar, amplamente determinada pro processos fisiológicos espontâneos como puberdade, ciclo menstrual, gravidez, parto, puerpério e climatério. Mal-estares passageiros como ocorrem alguns dias antes da menstruação ou durante a menopausa são estados normais, não doentios e só exigem tratamento em função de um sofrimento subjetivo muito intenso, diminuição das atividades e quando a capacidade de funcionamento social ou profissional é afetada.” (p. 193)
– Lembre: quem ganha dinheiro com o adoecimento feminino sempre terá interesse em que encaremos os estados normais de forma sofrida.
“Ambos os sexos também se diferenciam em relação às ideias a respeito de saúde e doença: mulheres tendem a seguir um modelo integral da doença na qual a experiência subjetiva do corpo e o bem-estar, incluindo a situação de vida como um todo, encontra-se no centro. Homens, por sua vez, definem saúde principalmente como ausência de doença e a partir de seu desempenho.” (p. 195)
– Ou seja: se você disser que está doente porque tem uma vida perfeita mas não é feliz, tem chance de você ser mulher. E se consumir aromaterapia, há 99,9% de chance de você ser mulher, já que a proposta da aromaterapia é olhar de forma holística para o adoecimento/saúde. (Exceto se você estiver na aromaterapia pelo business da venda de OE em sistema multinível, aí uns 50% de chance de você ser um homem.)
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2021
MORSCHITZKY, Hans; SATOR, Sigrid. Quando a alma fala através do corpo: compreender e curar distúrbios psicossomáticos. Tradução de Lorena Richter. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.