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Paris no século XX – Júlio Verne

Postado às 17:00 do dia 01/08/12

É um livro pouco conhecido de Júlio Verne (1828-1905), de publicação póstuma (1989, na França), parece que escrito entre Cinco Semanas em um Balão (1863) e Viagem ao Centro da Terra (1864). Não tem, como alertam os críticos no preâmbulo e prefácio da edição que tenho em mãos, todas as qualidades deste que é um dos meus escritores favoritos, mas consegue nos alegrar com algumas frases naquele estilo espirituoso que somente os escritores franceses do século XIX conseguiram produzir.

Paris no Século XX narra a história de Michel Dufrénoy, um jovem de 19 anos que termina seus estudos laureado com o prêmio de melhor composição poética em Latim no ano de 1960 em Paris. Tutelado por um tio banqueiro, é obrigado a trabalhar numa instituição e abandonar qualquer ambição que tenha como artista: no século XX, na França, as únicas profissões concebíveis são de industriário, comerciante ou financista. Os artistas vivem à margem de uma sociedade onde o problema não é não ter dinheiro, mas o que fazer com ele. Michel, como é de se esperar, não se encaixa em nenhuma atividade que lhe encontram, nem mesmo como roteirista de teatro, pois é incapaz de produzir peças que glorifiquem a mecânica, a física, a engenharia ou a matemática financeira. Aos poucos, Michel constroi um círculo de amigos que, artistas como ele, tentam manter um trabalho para sustentar, às escondidas, sua música e sua literatura. Esses amigos aconselham Michel a trabalhar para que possa sustentar a noiva, mas é inútil. Nessa Paris, Victor Hugo mofa nos porões da biblioteca nacional, e ao artista cabe o exílio ou caminhar por uma cidade que Julio Verne não reconhece mais – apesar de ser ele mesmo quem a imagina no futuro.

Qual é a graça do romance?

A graça é lê-lo como um Fahrenheit 451 em que o narrador, ao contrário de não ver em seu horizonte nada além da opressão, tem a alternativa de se maravilhar com o desenvolvimento tecnólogico, ao mesmo tempo em que deprime pela falta de lirismo, poesia e emoção que este mesmo desenvolvimento traz. É um Julio Verne entre o ensaio e a ficção. Mas leia de todo o jeito. Se for fã, gostará. Abaixo trago citações selecionadas. O autor, como sempre, acerta um bocado sobre o futuro – tanto quanto erra. Felizmente, os acertos são muito mais fascinantes que seus erros.

 

 

Estruturas sócioeconômicas

“O monopólio, esse nec plus ultra da perfeição, mantinha o país inteiro em suas estufas; empresas multiplicavam-se, inauguravam-se, organizavam-se – seus resultados inesperados teriam deixado nossos pais profundamente surpreendidos.” (p. 31)

– Recordo uma tabela que recebi mostrando a participação dos grandes fundos nas empresas do mundo. Ele também nos deixa profundamente surpresos. Primeiro, não existem empresas nacionais, nem aqui, nem nos EUA, Europa e China. Segundo, não existe esta coisa de concorrência. Todo mundo é sócio de todo mundo. (Aliás, como na política.)

“Ora, para um empresário, construir ou instruir é tudo a mesma coisa, visto que para falar a verdade a instrução não passa de um tipo de construção um pouco menos sólida.” (p. 32-33)

– Na França do livro, toda a educação está a cargo de uma empresa que paga lucros extraordinários aos mesmos acionistas da indústria e comércio. Mas, tirada do contexto do livro, não entendo muito a frase. Ela possui uma ironia que absolutamente não é verdade nos dias de hoje, em que a classe empresarial é a que mais teme a falta de instrução de um país. E, não, não vão dizer que eles preferem uma massa incauta. Políticos preferem.

“- Quanto à orquestra – prosseguiu Quinsonnas, – essa decaiu muito desde que o instrumento deixou de ser suficiente para alimentar o instrumentista! Eis um ofício que nada tem de prático! Ah! Se pudéssemos utilizar a força desperdiçada dos pedais de um piano para escoar a água das hulheiras!” (p. 103)

– Os instrumentos continuam não alimentando a maioria, Verne,  não continuam…

 

 

Literatura na Paris de 1960 de Julio Verne

“Se ninguém mais lia, pelo menos todo mundo sabia ler, escrever até (…).” (p. 32)

– Julio Verne deve ter pensado que seria um grande avanço que, em cem anos a partir de sua época, todos soubessem ler. Mas ele sabia que não seria, pois saber ler é diferente de ler. Ele foi o criador avant la lettre do termo analfabetismo funcional.

“ – Primeiro prêmio de versos latinos: Dufrénoy (Michel Jerôme), de Vannes (Morbihan).

A hilaridade foi geral, em meio a observações do seguinte tipo:

– Prêmio de versos latinos!

– Ele era o único que escrevia!

– Vejam só esse acionista do Pinda!

– Esse frequentdor do Helicônio!

– Essa pilastra do Parnaso!

– Ele vai! Ele não vai!” (p. 40)

– Silvio Santos não teria escrito melhor a última frase! O lado sombrio da cena é saber que ela poderia se passar hoje exatamente como imaginada há 150 anos por Verne.

“E, entre outras, as Harmonias elétricas, de Martillac, obra laureada pela Academia de Ciências, as Meditações sobre o oxigênio, do Sr. de Pulfasse, o Paralelograma poético, as Odes descarbonatadas…” (p. 62)

– Não consigo nem imaginar o que poderiam ser essas obras se houvessem sido escritas numa época em que a arte tivesse perdido a importância. E que criatividade para nomes, não?

“ (…) Ah, meu rapaz, com suas ideias, com seus talentos, você nasceu muito tarde (…)” (p. 66)

– No livro, o artista não é incompreendido por ser de vanguarda, mas por ser anacrônico. Aparece a mesma coisa mais pra frente, leia:

“(…) respirou o perfume literário que lhe subia ao cérebro como uma cálida emanação dos séculos transcorridos, apertou a mão de todos aqueles amigos do passado que teria conhecido e amado se tivesse tido a capacidade de nascer mais cedo!” (p. 128)

 

“ – A literatura morreu, meu rapaz – respondeu o tio. – Veja estas salas desertas e estes livros sepultados na própria poeira; não se lê mais; eu sou, aqui, o zelador deste cemitério, e é proibido fazer exumações.” (p. 67-68)

– Que imagem, não?

“ – Venha por aqui – disse ele a Michel – e vamos começar pelo começo; hoje não se trata de ler, mas de olhar e conversar. Estamos passando em revista, não travando uma batalha; imagine Napoleão nas Tulherias, não no campo de Austerlitz. Ponha as mãos atrás das costas. Vamos passar entre as fileiras.” (p. 117)

– E advinhe quais são as fileiras? As fileiras  de uma extensa prateleira cheia de livros. Na ânsia de ler os romances que considerava perdidos, o protagonista quer logo pôr as mãos neles. Mas o tio o adverte “mãos atrás das costas” e eles começam a percorrer com os olhos séculos de literatura francesa numa das passagens mais bacanas do livro, em que Verne compará cada famoso autor francês a algum posto no exército.

“ Balzac é o primeiro romancista do mundo (…)” (p. 124)

– Dito por volta de 1863. Eu não poderia deixar de falar de Balzac, um de meus heróis.

“Pois bem, toda essa grande mania de jornal em pouco tempo provocou  a morte do jornalismo, pela inquestionável razão de que os escritores haviam ficado mais numerosos do que os leitores” (p. 165)

– Oxalá o vaticínio não se aplique ao mercado de ficção com todas estas obras autopublicadas!

 

 

A Paris de 1960 de Julio Verne

“Foi em 1937, durante o reinado de Napoleão V, que ele lançou o empreendimento.” (p. 33)

– Ninguém escapava aos encantos do Império. Quinta geração de Napoleão?!

“Não obstante, malgrado a afluência do público, tudo decorria dentro da ordem (…) haviam sido necessários cento e cinquenta anos para que se reconhecesse a verdade de que em dia de multidão mais valia multiplicar as saídas que restringi-las.” (p. 36-37)

– Não tenho certeza a que evento Julio Verne alude. Mas bem pode ser o 18 Brumário. Paris era notória pela vielas estreitas que facilitavam os massacres. Verne teve chance de ver a modificações que Hausmann estava fazendo na paisagem parisiense e, por certo, a aprovava, diferentemente de alguns contemporâneos.

“ (…) as maravilhas do século XX já estavam presentes nos projetos do século XIX.” (p. 39)

– A razão da imaginação de Verne não é imaginação: é pesquisa de campo. Hoje, futurologia é profissão das mais bem remuneradas.

“Além disso, a telegrafia fotográfica (…) (p. 72)

– Verne antecipou o fax.

“ – Ora, ora! E a indústria, essa boa mãe, e a mecânica, essa boa filha? (…) (p. 91)

– No livro, é o comentário irônico de um músico que vê seu piano se transformar em mesa de refeições, depois em cama, graças aos avanços da indústria moveleira. Hahaha!

“ (…) já se disse, sei lá, com Montaigne, talvez com Rabelais, no século XIX: que diferença isso faz para mim? Hoje em dia se diz: quanto isso me rende? Pois bem, no dia em que uma guerra render alguma coisa, à maneira de um negócio industrial, haverá guerra.” (p. 97)

– No mundo imaginado por Verne, não havia mais guerras porque tudo tinha virado comércio. Que ideia será que ele fazia das guerras?! Sempre foi apenas um comércio.

“Eis como essa grande arte era compreendida durante a primeira metade do século XIX! Não se andava atrás das fórmulas novas; assim como no amor, não há nada de novo a encontrar na música, prerrogativa encantadora das artes sensuais, a de serem eternamente jovens.” (p. 106)

– Não lembro que escritora comentou que, sim, voltava ao velho tema do amor, pois, se não há nada de novo para falar sobre ele, há novas pessoas que amam.

“ (…) A francesa virou americana; fala gravemente de negócios graves, encara a vida com rigidez, cavalga sobre o lombo magro dos costumes, veste-se mal, sem gosto, e enverga coletes de tecido galvanizado capazes de resistir às pressões mais intensas. Meus filho, a França perdeu sua verdadeira superioridade; suas mulheres, no delicioso século de Luiz XV, haviam afeminado os homens; de lá para cá passaram para o gênero masculino e já não vale o olhar de um artista nem a  atenção de um amante!” (p. 145)

– Passagem absolutamente deliciosa do livro, fala sobre a extinção, no novo século, da mais perfeita mulher “dentre elas todas, a Parisiense”. Verne, não culpe os norte-americanos, será uma conterrânea que terá vestido as mulheres no mundo todo de preto.

“Não é na França que se constroem as reputações francesas; aqui se importam produtos estrangeiros. Vou fazer-me importar.”

– Aplica-se ao Brasil do século XXI. As pessoas saem pra aprender inglês e voltam artistas e empreendedores consagrados.

 

 

Personagens do livro

“O Sr. Stanislas Boutardin (…) exprimia-se por gramas e centímetros e andava com uma bengala métrica fosse qual fosse o clima, o que lhe dava um grande conhecimento das coisas deste mundo; desprezava solenamente as artes, principalmente os artistas, para dar a entender que os conhecia; para ele, pintura não ia além da água forte, o desenho da cópia, a escultura da fôrma, a música do apito das locomotivas, a literatura dos boletins da Bolsa.” (p. 53)

– Não é uma descrição formidável! Muito engraçada! Imagine o sujeito ler boletins da Bolsa e achar aquilo o máximo?! Hahaha.

“Era um homem desagradável, sem juventude, sem coração, sem amigos. Seu pai o admirava muito.” (p. 56)

– Não fosse o estilo em duas as frases e a gente acreditaria menos. Aliás, o pai em questão é o tal que lê boletins da Bolsa.

“(…) uma família rica bem provida das qualidades que o dinheiro faz emergirem, com um coração na medida justa para fazer o sangue circular nas artérias.” (p. 56)

– Ninguém escreveu com tanta diplomacia a falta de coração.

“Aquele trabalho mecânico foi uma grande dificuldade para ele; não tinha o fogo sagrado e sob seus dedos o aparelho funcionava bastante mal (…)” (p. 73)

– Olha a inversão que Verne fez: no futuro, as musas não habitariam artistas, mas os operários!

“ – Ora, ora! Não é nada disso! Conte-me o que tem feito, seus planos! Naquele estabelecimento bancário! Por acaso suas ideias…?

– Sempre as mesmas, meu tio.

– Diabo! Vamos para a mesa, então! Mas tenho a impressão de você não me deu um abraço!

– Dei sim, tio!

– Pois bem! Abrace outra vez, sobrinho! Não há de me fazer mal, ainda não almocei; aliás, um abraço vai me abrir o apetite.” (p. 112)

– Deve ser o tio mais querido e simpático da literatura francesa! Quem tem tios assim deve estar sorrindo agora, né? Você está?

“ (…) A Srta. Lucy tinha quinze anos de idade, era deslumbrante com seus longos cabelos louros abandonados sobre os ombros, de acordo com a moda do momento, fresca e toda viçosa, se é que essa expressão consegue transmitir tudo o que nela havia de novo, de puro, de recém-surgido (…)” (p. 131)

– Júlio Verne não tinha como imaginar que as mulheres estariam queimando sutiãs em 1960 e preferindo ser chamadas de gostosas a viçosas. Não o culpe.

 

 

Máximas e boas frases

* sobre ter apenas dois amigos na vida:

“ – É muito, se estiverem enganando você – respondeu sentenciosamente o velho – e suficiente, se amarem você.” (p. 115)

 

* sobre a juventude:

“ (…) gosto da juventude, desde que seja jovem! Os velhos antecipados sempre me pareceram uns hipócritas!” (p. 115)

 

* sobre as mulheres:

“ (…) a opinião que possamos ter das mulheres, nós homens, é muito variável. Pela manhã não penso o que pensava à noite; a primavera me inspira coisas diferentes a respeito delas das que me inspira o outono; a chuva ou o bom tempo tem o poder de modificar singularmente minha doutrina; na verdade, até minhas digestões têm uma influência incontestável sobre meus sentimentos para com elas.” (p. 143)

 

* das condições que devem existir para forçar um solteirão a se casar:

“ (…) Enquanto não instituírem o famoso tribunal solicitado por Voltaire para julgar casos de infidelidade, composto por seis homens e seis mulheres, com um hermafrodita com voto preponderante nos casos de empate.” (p. 146)

 

* do casamento com um artista:

“ – Meu filho, então você não sabe que o gênio e até o talento são uma doença, e que a mulher de um artista tem que conformar-se com o papel de enfermeira?” (p. 150)

 

* sobre a recém liberdade:

“ Haveria de querer dizer a um escravo ébrio com suas primerias horas de liberdade: ‘Saiba, meu amigo, que agora vai morrer de fome!’ “ (p. 155)

 

* sobre o absurdo da propriedade da terra:

“Quando se pensa que um homem, seu semelhante, feito de carne e osso, nascido de uma mulher, de uma simples mortal, possui uma certa porção do globo terrestre! Que essa porção de globo terrestre lhe pertence de fato, como sua cabeça, e muitas vezes mais ainda que sua cabeça!” (p. 159)

 

* sobre a imprestabilidade do Rio Sena quando congelado:

“ – Mau tempo para o desespero – exclamou. – A pessoa não pode sequer afogar-se.” (p. 198)

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

 

VERNE, Julio. Paris no século XX. Tradução de Heloisa Jahn; prefácio e estabelecimento do texto: Piero Gondolo della Riva; preâmbulo do editor na França: Véronique Bedin. São Paulo: Editora Ática, 1995.

OBS: O livro está esgotado em português. Procure-o nos sebos da Estante Virtual.

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