Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crítica literária > O Primo Pons – Honoré de Balzac
O Primo Pons é aquele livro que você lê e fica com raiva: raiva da vida, da gente que é do mal, da ambição, da mesquinharia do ser humano. Mas é um livro para continuar amando Balzac (1799-1850). Está lá o poder de observação deste que faz parte do meu triunvirato do coração junto com Machado e Shakespeare (triunvirato que acomodou um apêndice que é quase um lugar de honra, Jo Rowling).
O livro foi escrito em 1847, no ano em que Eveline Hanska voltava com o escritor da Ucrânia para uma temporada em Paris. Três anos depois, eles se casariam. Já fazia 18 anos que se correspondiam por carta; três meses depois do casamento oficializado, Balzac viria a morrer. A convivência em carne e osso com Mme. Hanska, naquele ano, deve ter lhe servido de muita inspiração, pois é do mesmo período o extraordinário A Prima Bete. Juntos, formam a dupla de livros Os Parentes Pobres, que tratam da ambição e da avareza de espírito. Balzac, pra variar, estava atolado em dívidas. Ele tinha vendido sua casa, a Les Jardies, em 1845, derrotado por um projeto de reforma que não pôde concluir, e notícias de seu caso com a governanta Louise de Brugnol chegavam à Ucrânia. Além disso, Balzac já começava a ficar doente e Eveline não conseguia a aprovação do Czar para o casamento fora da aristocracia.
Mas, como disse, a proximidade de Eveline, e o fato de que Balzac bancava o decorador de ambientes para o apartamento que lhes serviria de casa, deve ter lhe servido como tônico para produzir esses dois livros arrebatadores. Ainda apareceriam, pelo ano, em jornais, O Deputado de Arcis e A Última Encarnação de Vautrin. Balzac tinha um fôlego estupendo!
Vamos à história.
Sylvain Pons é um velhote que se veste com spencer, anacrônico de modos e vestuário. Quase tendo sido um músico famoso, vive de aulas particulares. Mas sua verdadeira natureza é a coleção com 1907 peças de obras de arte, composta de itens que “encontrara por dez francos o que hoje só se vende por mil ou mil e duzentos francos”. Celibatário e guloso, jantava todos os dias fora, fazendo-se aceitar em torno de dez casas que frequentava, entre elas a do primo do primo, os Camusot. Pons tem apenas um amigo, também músico, o alemão Schmucke, com quem veio a dividir uma casa no Marais. No Marais, esse bairro onde o demi-monde reina absoluto, os amigos entregam os cuidados da casa aos porteiros Sr. e Sra. Cibot. O romance se desenrola quando aquela família e este casal se dão conta da fortuna em arte que Pons possui e começam a arquitetar como arrancá-la de suas mãos.
Prepare-se para observações argutas sobre o dinheiro e as paixões, sobre o vício e a amizade, sobre a família e as burocracia do Estado. Balzac, para ser admirado, exige apenas um pouquinho de paciência com as frases compridas. Mas as de efeito compensam-nas grandemente. Vá lá, atire-se, é uma das melhores coisas que a França produziu!
Ah, sim, para um biografia de Balzac, que foi a que consultei nesta resenha, leia Balzac, de Johannes Willms (Planeta, 2009).
Paris e os franceses
“O francês se cala diante dessa desgraça, que lhe parece a mais cruel de todas: não poder agradar!” (p. 12)
“Primeiro, nunca nenhum esforço administrativo ou escolar há de substituir os milagres do acaso ao qual devemos os grandes homens.” (p. 15)
Manias
“O prazer de comprar curiosidades é apenas o segundo; o prazer maior é o de trocá-las.” (p. 19)
“De fato, nenhum aborrecimento, nenhuma sensação de tédio resiste ao cautério que se aplica à alma quando esta se torna maníaca.
Vós todos que já não podeis beber aquilo que, em todos os tempos, se denominou a taça do prazer, dedicai-vos a colecionar seja o que for (há quem colecione cartazes!), e reencontrareis o lingote da felicidade em troco miúdo. A mania é o prazer em estado de ideia!” (p. 20)
“Ninguém ousa dar adeus a um hábito.” (p. 26)
Arte
“ (…) as obras-primas felizmente são sempre jovens.” (p. 20)
Amizade e traição
“Nada fortalece a amizade como quando, de dois amigos, um se crê superior ao outro.” (p. 30)
“Quando as criaturas simplórias e corretas se põem a dissimular sentimentos, tornam-se terríveis, exatamente como as crianças, cujas armadilhas são preparadas com a perfeição só atingida pelos selvagens.” (p. 281)
Gula
“ (…) se existe alguma coisa mais melancólica que o gênio ignorado é o estômago incompreendido.” (p. 69)
“A digestão, empregando as forças humanas, constitui um combate interno que, nos gastrólatras, equivale às mais altas fruições do amor.
Sente-se tamanho desenvolvimento da capacidade vital que o cérebro se anula em favor do segundo cérebro, posto no diafragma, e ocorre a embriaguez pela própria inércia de todas as faculdades.” (p. 26)
Adoecer
“As enfermidades morais têm sobre as doenças físicas uma vantagem imensa: elas curam instantaneamente, devido ao cumprimento do desejo que as provoca, assim como nascem da privação desse desejo.” (p. 86-87)
“Em geral, os enfermos, principalmente os que já se encontram sob a envergadura da foice da Morte, se agarram a seus empregos com a mesma fúria que os novatos empregam para obtê-los.” (p. 241)
“ [o] acaso da doença, uma dessas incríveis exceções que fazem da medicina uma profissão tão perigosa.” (p. 264)
Ganhar o sustento do dia a dia
“As outras misérias, as do poeta, do artista, do comediante, do músico são alegradas pelas jovialidades próprias das artes, pela despreocupação da vida boêmia na qual se lançam desde o começo e que levam às Tebaidas do gênio!” (p. 185)
“O jovem advogado sem causas e o jovem médico sem clientes são as duas maiores expressões do Desespero decente (…)” (p. 185)
revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012
BALZAC, Honoré de. O primo Pons. Tradução de Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
OBS.: É verdade, mas O Primo Pons e A Prima Bete estão esgotados no Brasil. Aliás, editoras, urgente: reedição das obras completas de Balzac. Não é possível que o formidável trabalho de Paulo Rónai com as traduções fique escondido em sebos.