Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoras > Mundo Perdido – Patrícia Melo

< voltar

Mundo Perdido – Patrícia Melo

Postado às 12:00 do dia 06/10/12

Você não deve ler Mundo Perdido, romance de 2006 de Patrícia Melo (1962), se tiver a cabeça fraca. Bem, talvez cabeça fraca seja falta de educação: se você for cheio de não me toques. Nesse livro, a premiadíssima escritora e roteirista desnuda a corrupção deste Brasil que cresce: a impunidade do sistema judiciário, o conluio de bandidos e policiais, o tráfico de drogas, o tráfico de madeira, o desmatamento da Amazônia, o uso político/policial dos acampamentos Sem Terra, a prostituição e a escalada dos cultos evangélicos. Esses são os temas que cercam a história do matador profissional Máiquel que, foragido há 10 anos, empreende uma busca pelo Brasil atrás de sua filha, jurando de morte o homem que a adotou e lhe deu seu nome. Na viagem, que parte da periferia de São Paulo e passa por polos de crescimento econômico do centro-oeste e norte brasileiros – como Campo Grande, Corumbá, Santarém e Manaus – , Máiquel é um protagonista lúcido numa história de injustiças surreais.

O romance é a continuação de O Matador, lançado em 1995, e que rendeu uma adaptação para o cinema com roteiro de Rubem Fonseca (o filme O Homem do Ano, de 2003). Nesse livro, conhecemos Máiquel e como ele veio a se tornar o justiceiro da classe média da zona sul paulistana, firmando contratos de morte por trás da fachada de uma empresa de segurança patrimonial. Dez anos depois, em Mundo Perdido, o personagem já está plenamente adaptado à sua condição de foragido e sabe que tudo que precisa para não ser preso é se manter às margens do sistema (não tem cheque, não tem cartão, não tem casa) e evitar, ao máximo, se envolver em algum outro assassinato. Quando, entretanto, depois de receber a parca herança de uma última parenta, ele toma consciência de sua vida e decide mudá-la, a solução que encontra é ainda a mesma que fez ruir seu destino: matar.

A força do romance está principalmente na dicção de Máiquel: ele é um bandido, como eu havia dito, lúcido. É um protagonista por quem não torcemos – o que é muito curioso, já que em livros com anti-heróis é quase sempre fórmula certa nos simpatizarmos com eles. A voz de Máiquel não é cínica – como muitas vezes é o discurso da classe média a quem ele servia como matador de aluguel – ; tampouco é autoindulgente – como muitas vezes querem determinadas intelectualidades paternalistas. As forças inatas e as sociais se misturam à perfeição para explicar a vida desse bandido que se impõe princípios numa sociedade que os tem tão pouco. Ele mata, mas foge apenas depois de deixar a conta do hotel paga – uma denúncia de que, no Brasil, é permitido roubar e pagar impostos.

Abaixo transcrevo alguns trechos. São apenas alguns dos melhores, porque outros ficam muito na linha do politicamente incorreto. De novo o alerta, não leia se for cheio de nove horas. Maniqueísmo não é a praia de Patrícia.

 

 

Gigante pela própria natureza

“No Brasil, ele dizia, não é nenhuma vergonha ter uma ordem de prisão contra você. Tanto faz, pobre, rico, branco, os caras lá em cima, digo, ministro, vereador, bambambã, todo mundo tem. Brasileiro é assim, escroto mesmo.” (p. 9)

“Resolvi dar uma volta. Zanzei pela cidade, já conhecia o esquema de Campo Grande. Praia, serra, rio, não tem nada ali, é mesmo o que o nome diz, um campo sem fim. E tem muita farmácia, também. O que não é novidade neste país.” (p. 71)

 

 

Um povo heroico

“Um burro, o marido, continuou Divani. Uma coisa é morrer porque você tem que morrer. Câncer, essas paradas. Isso é destino. Ser atropelado é outra, totalmente diferente. É coisa de pobre burro. Depois que o Marcos morreu, passei a prestar atenção na maneira como as pessoas atravessam a rua. Os pobres. Eu não, porque tenho massa cinzenta. Se atiram debaixo dos carros.” (p. 17)

“Mais fotos, Érica de biquíni, na piscina, celular na mão. Corpão, toda malhada. Vai ver que tem amante, pensei. Pelo menos, essa era a teoria da Érica. Academia ganha dinheiro é com adúltera, ela dizia. Adúltera é que gosta de academia. As que falam que gostam de fazer ginástica são mentirosas descaradas.” (p. 38)

“Estava envergonhada no restaurante, com medo dos garçons, dos talheres, dos pratos, dos copos, eu conhecia aquele sentimento. Já tive muito medo na vida. Depois que adotei meu lema ‘foda-se’, tudo ficou mais fácil.” (p. 85)

“Na hora que você começa a pagar um carnê, você já morreu e não sabe.” (p. 153)

 

 

Berço esplêndido

“Cada nome, Jesus Aqui e Você com Ele, Corneta de Deus, eu estava lendo a lista de igrejas evangélicas que Jonas, o detetive, me trouxe. Margaridas de Jesus, Ventos de Deus, parece peido, isso, eu disse, vento de Deus é peido. Cidade das Ovelhas de Deus, você quer que eu leia tudo isso?, perguntei. Três páginas, só com nome de igreja evangélica.” (p. 23)

“Eu ando pensando em virar pastor, também, disse Anderson, isso é que dá dinheiro no Brasil. Além do mais, você não precisa de faculdade, é só blá-blá-blá mesmo, sabendo ler e escrever, o Espírito Santo cuida do resto.” (p. 82)

“Otávio Freitas é daqueles que acreditam que igreja é como saneamento básico. Para ele, uma cidade tem que ter banco, esgoto, água encanada, McDonald´s e galpões evangélicos.” (p. 165)

 

 

Margens plácidas

“O bom de São Paulo é que tem de tudo aqui (…) É por isso que eu gosto desta cidade. Acho que eu nunca vou precisar de um dedal, mas me dá uma paz danada saber que tem até loja de dedal por aqui, se eu precisar, entende?” (p. 35-36)

 

 

Mãe gentil

“A primeira coisa que meu pai me ensinou foi que eu era invisível. E a segunda foi que eu não valia nada. E que nada tinha importância. Ensinou isso do jeito dele, sem falar palavras, só com os olhos, enquanto tudo apodrecia a nossa volta. Um saco de vermes. Aprendi logo. Quando entro em qualquer lugar, se vejo muita gente, fico fermentando dentro de mim: sou o pior.” (p. 53)

 

 

Pátria amada

“Giane era muito magrela. Ossuda. Cara de fuinha. Mas eu não ia dizer isso para ela. Tem coisa que a gente não pode dizer para uma mulher.” (p. 186)

 

 

Verde-louro dessa flâmula

“Nosso caminhão estava cheio de madeira, contou Josias, você sabe, estamos leiloando a Amazônia, subo e desço esse país, e o que eu vejo é soja. Soja e mais soja. E queimada também. Apuí, Lábrea, Manicoré, Boca do Acre, Novo Aripuanã, antes você chegava lá, era mata pura, aliás, você nem chegava lá, hoje você chega, e é só desmatamento. É tudo pasto, grão, madeira, é só isso mesmo. A floresta que se foda, essa é a política dos nossos políticos.” (p. 103)

 

 

Sol do novo mundo

“Que nojo, disse Eunice, cachorro é cachorro, gente é gente, você devia aprender a separar as duas coisas. Eu não separo, falei, para mim, cachorro é gente e gente é cachorro.” (p. 57)

“O difícil mesmo era ser bom sem Deus. Ser magro sem dieta. Magro de maldade. Bom na caradura. Bom sem Bíblia.” (p. 69)

“Nunca mais eu ia ver Lúcia. No fundo, não interessa o que você faz, não sobra ninguém. Tudo acaba. Acabam para você. Põem coisas no meio. Coisas para fazer. A vida mesmo. Ou nada. Simplesmente não dá. Você mesmo trata de destruir. Porque o difícil não é amar. É continuar. Ir em frente. Viver junto, todos os dias. Às vezes, você só vai perceber que era bom depois que já destruiu tudo.” (p. 148)

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

 

Leia também a resenha de Escrevendo no Escuro, livro de contos lançado por Patrícia em 2011.

 

MELO, Patrícia. Mundo Perdido. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. 

 

Comentários

Assinar Newsletter