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Jung e o Tarô – Sallie Nichols

Postado às 12:46 do dia 13/08/17

Você pode estudar tarô durante uma vida e apenas arranhar a superfície de todo seu significado e simbologia. Ainda mais considerando que as figuras nestas cartas têm, como nos diz a autora deste “Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica”, Sallie Nichols, pelo menos 600 anos de existência. Então são 600 anos de pessoas deitando estas imagens numa mesa e fazendo-lhes perguntas das mais triviais às mais profundas.

Jung e o Taro capa livro

Mas Sallie propõe as mais profundas, aquelas que levam ao auto-conhecimento. Sua base é a psicologia junguiana, e vários são os momentos no livro em que ela cita Jung literalmente. O livro também tem um leve tom confessional, a própria jornada da autora na compreensão dos desenhos dos arcanos principais.

O baralho no qual ela se baseia é o de Marselha, mas muitas vezes recupera as reinterpretações de outros: suíço, Waite, aquariano, florentino, Manley P. Hall entre os que mais revisa. A ideia é, sempre, trazer à luz novos aspectos para a compreensão dos arquétipos, inclusive para salientar como a psiquê humana foi se modificando ao l0ngo dos séculos em volta deste centro pouco móvel do arquetípico.

O primeiro livro que li sobre tarô foi o de Liz Green, sobretudo por ser uma autora de quem eu tinha muitos livros de astrologia (hoje, toda minha coleção de astrologia foi doada às Faculdades Espírita, de Curitiba/PR, para compor a seção de Artes Divinatórias do curso de pós-graduação em Sagrado Feminino). Lembro que me provocou profundo impacto esta primeiro encontro com o Louco, o Mago, o Carro, o Eremita (meu arquétipo favorito), a Roda da Fortuna, a Morte e a Torre. A vida é difícil – quando somos mais novos e mais suscetíveis, é natural que os arquétipos mais desafiadores nos chamem atenção. Por isso foi interessante notar que, mais velha, outros arquétipos foram os que mais gostei de aprender, principalmente os femininos: a Papisa, a Imperatriz, a Força, a Temperança e a Estrela.

É possível ler o Tarô como uma coleção de mitos, é possível lê-lo como arte divinatória, mas penso que o ler como jornada seja, de fato, o modo mais proveitoso. Para todos que já tenham tido contato, em outras leituras, com a jornada do herói (Campbell, Vogler, por exemplo), voltar ao livro de Sallie é como revisitar um antigo vilarejo onde as casas permaneceram as mesmas, as ruas, as árvores, mas onde as pessoas são todas novas. Você não reconhece mais os rostos – e isso lhe traz uma estranha sensação de não-pertencimento -, porém reconhece a moldura – e isso lhe traz nostalgia.

No final, é preciso fôlego pra caminhar por estas mesmas ruas: o livro é denso, a letra é miúda, são 374 páginas sem folgas. Sallie indica que o livro seja lido da seguinte forma: antes de abrir o capítulo de um arcano, quedar-se um pouco na observação da carta, escrever as impressões, anotas as sensações que a imagem lhe passa. E apenas depois ler. E após a leitura prestar atenção em como aquele arquétipo se introduz em sua vida na forma de sonhos e sincronias. Fiz isso: quando um autor sugere, não vejo por que não seguir a sugestão.

E a experiência mais interessante foi com o Diabo, pois minha primeira impressão foi de que sua figura era pura fanfarronice, um aspecto que Sallie trouxe deste arquétipo. Impressionada que eu era com ele, anos atrás, pude perceber como a maturidade, de fato, traz ganhos indiretos. Envelhecer é seguir em frente na sua própria jornada do herói. A linha nunca será reta nesta jornada – algo que a gente não vislumbra quando se tem 20 anos. Mas será uma jornada parecida com sair do chão e alcançar o topo de um trepa-trepa cheio de gente: contorna-se, às vezes se volta para o andar mais baixo pra conseguir escapulir pro andar de cima, fica-se de ponta cabeça, equilibrado numa perna só. A diferença de uma jornada tão “acidentada” assim é que, no final, ela se torna divertida.

Espero que se divirta também com as (bem poucas) citações tiradas das (trocentas) melhores partes. Leia abaixo.

 

Encarando o bicho de frente

“Uma viagem pelas cartas do Tarô, primeiro de tudo, é uma viagem às nossas próprias profundezas.” (p. 18)

– Mermão, desconheço profundezas mais apavorantes que aquelas que chamamos de nossas.

“Povoamos o mundo exterior de feiticeiras e princesas, diabos e heróis do drama sepultado em nossas profundezas.” (p. 26)

– Um prejuízo, talvez, do recente resgate do arquétipo da feiticeira no século XXI é a forma como ele foi feito: resgatando-se preferencialmente seu logos e seu ethos, mas se esquecendo completamente de seu pathos, submerso na sombra, residente no abjeto, mancomunado com o instintual. Tornamo-nos – nós, bruxas autodeclaradas no novo milênio – bruxas do bem. Nossa época insiste em querer viver apenas na luz. O bem, como insistentemente nos mostra este saber antigo do tarô, não cria raízes sem aceitar e realizar integralmente seu mal.

“À medida que nos tornamos cada vez mais conscientes de nossos poderes internos para o bem e para o mal, as projeções exageradas com as quais vestimos nossos amigos e inimigos aos poucos desaparecem.” (p. 128)

– Só pra frisar: elas não desaparecem sozinhas: você precisa explodir 100 vezes sem conta até 10 pra entender que explodir 100 vezes ajuda a contar até 10 pela primeira vez.

“Pois, como disse Jung repetidamente, o conflito é a essência da vida e o pré-requisito necessário a todo o crescimento espiritual.” (p. 139)

– Numa sociedade que abomina o conflito e fica indignada com a mais leve possibilidade de discórdia, adoece – as pessoas adoecem, no sentido literal: adoecer é uma forma muito eficaz de não escaparmos à lição do conflito.

“Como disse Jung com tanto acerto: ‘Não nos iluminamos imaginando figuras de luz, porém tornando consciente a escuridão´.” (p. 314)

– O pensamento positivo é negativo, tendeu?

“Filosoficamente aceitamos a lógica de que a morte não é a antítese da vida – o nascimento e a morte são antes os dois postes sobre os quais a vida repousa. Conhecemos todas essas palavras e podemos recitá-las com frequência (e o fazemos). Mas como chegamos a um acordo com a nossa mortalidade pessoal? Eis a dificuldade.” (p. 232)

– É aí que a porca torce o rabo.

 

Acalmando o bicho

“(…) assim como uma pessoa ganha independência para ser não-conformista, assim também ganha confiança para ser conformista.” (p. 34)

– Me parece mais corajoso, no mundo em que vivemos, o conformista. Não é pra qualquer um se manter na boiada quando todos dizem que o bacana é ser touro.

“A gente do Tarô são criaturas da imaginação. O holofote do intelecto fará que se enfiem correndo embaixo da terra.” (p. 36)

– Às vezes, tudo que de que precisamos é do feitiço Ridiculus em nossas vidas: com brincar – em vez de entendê-los – afasta nossos maiores medos.

“Paradoxalmente, o caminho para a verdadeira sanidade passa através da infantilidades e da loucura.” (p. 51)

– Professor Hermógenes já dizia: “Deus me livre de ser normal”. E eu acrescentaria: mas se for normal, tá tudo certo: apenas não se esqueça de brincar como uma criança.

“A luz noturna da fantasia, mais do que o facho perscrutador da consciência, nos religa à eterna sabedoria de nossas constelações interiores.” (299)

– 1% inspiração, 99% transpiração – certo? Certo. Mas baita 1% este, hein?!

“(…) a imaginação ativa leva a cabo alterações milagrosas na corrente principal do inconsciente.” (p. 302)

– A terapêutica não é uma arte; a arte é que é terapêutica.

” (…) o amor é a força unificadora e regenerativa que liga yangyin, o espírito e a carne, o céu e a Terra (…)” (p. 98)

– Sim, sempre.

“A primeira figura cujo auxílio precisamos angariar é A Justiça. O Louco afirma que ela uma ilusão de ótica, porque (como todo louco o sabe) a justiça não existe.” (p. 159)

– Uma certeza que sereniza a alma é saber que a coerência é profundamente injusta.

 

A banalidade do mágico

“As sincronicidades são fenômenos naturais. Não há provas de que sejam gizados pelo destino para dar à espécie humana lições de moral. Como as frutas e as flores, são produtos da natureza. Crescem espontaneamente no nosso jardim, à espera do descobrimento. Apresentam-se para o nosso sustento e para o nosso deleite.” (p. 79)

– Um dia preciso resgatar onde li isso pela primeira vez, com estas palavras, de que “a Natureza não entende o que são milagres, pois tudo que acontece nela é-lhe perfeitamente natural”. Desconfio que somos livres, se assim desejarmos, ou pra trazer Deus pra Natureza, ou pra levar a Natureza ao reino de Deus. Falta-nos apenas a coragem pra isso.

“As palavras têm poder – muitas espécies de poder”. (p. 122)

– Como não se lembrar de uma das frases mais memoráveis de Dumbledore: “Palavras são, na minha nada humilde opinião, nossa inesgotável fonte de magia. Capazes de formar grandes sofrimentos e também de remediá-los.” HP <3

“A necessidade predominante do homem é sentir-se apaixonadamente alguma coisa – encontrar significado e propósito como parte de um desígnio grandioso, que transcende as meras preocupações do ego – dedicar a vida e as energias a serviço de uma autoridade mais alta.” (p. 171)

– Donde decorre que se apaixonar novamente pelo comezinho, falho, corruptível, cego e inflamado ego pode ser a mais simples forma de Cura.

“Conquanto novas introvisões possam trazer consigo novas ideias e novas oportunidades, no âmago da autopercepção reside essencialmente a capacidae de cada qual aceitar a própria vida – por mais simples e despretensiosa que seja – e executar-lhe as tarefas necessárias de maneira prosaica.” (p. 176)

– No final, sempre voltarmos a Arjuna implorando ajuda a Krishna e este lhe dizendo: tome uma vassoura e vá limpar a casa. Quero te sugerir de ler a resenha do excelente livro “Depois do Êxtase, lave a roupa suja”, de Jack Kornfield. Você vai entender o poder de lavar a louça de casa.

“Os alquimistas viam a redenção do homem mais como subproduto desse trabalho [o de libertar o espírito aprisionado na matéria – a Grande Obra] de uma vida inteira do que propriamente como sua meta.” (p. 292)

– Karma yoga. Simples, eficaz, conciso.

“Consoante um velho dito dos alquimistas, ‘A mente deveria aprender a maar compassivamente o corpo’.” (p. 323)

– Ahimsa. Também com o próprio corpo. Hoje, entendemos que a mente pode vergar o corpo, isso porque, certamente, somos preguiçosos. Mas uma pulga deveria ser posta atrás da orelha: há pessoas de corpo muito forte, e elas reputam tudo isso a suas mentes. Não ocorre com todo mundo.

 

Feminismo

“A liberação das mulheres é encarada, às vezes, estreitamente, como um movimento que visa libertar as mulheres da maçada do trabalho de casa e dos preconceitos dos homens em todas as áreas da vida. Mas o que está sendo realmente almejado é a libertação, tanto dos homens quanto das mulheres, da subserviência ao princípio masculino, um dirigente cuja autonomia há muito estabelecida converteu-se em tirania para homens e mulheres ao mesmo tempo. Em seu nível mais profundo, esse movimento não é uma guerra entre os sexos mas, antes, uma luta árdua da parte de ambos os sexos para libertar a Papisa das masmorras do inconsciente e para elevá-la ao lugar a que tem direito como co-soberana do seu equivalente masculino.” (p. 86)

– Que mais? #LeanInTogether

 

Dicionário de Sonhos

“Às vezes a ação do sonho é tão vaga, tão confusa e tão incoerente que se torna difícil determinar-lhe o enredo. Nesse caso, vale a pena formular estas duas perguntas: Qual foi o problema suscitado pelo sonho? Como foi resolvido o problema?” (p. 198)

– Uma outra forma de interpretá-los – possivelmente mais difícil – que abrir índice do Zolar.

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro (R) 2017

 

NICHOLS, Sallie. Jung e o tarô: uma jornada arquetípica. Tradução Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 2007.

 

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