Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > filosofia > Filosofia da ciência – Walter e Ricardo R. Terra
Longe da estridência das redes sociais, do engajamento a partir de tretas, Walter R. Terra e Ricardo R. Terra, respectivamente doutor em Bioquímica e doutor em Filosofia, ambos professores titulares da USP, escreveram um livro denso sobre epistemologia. A obra está construída em torno do eixo histórico, metodológico, institucional das ciências e também discute temas como pseudociência a partir de uma base cognitiva, explicando porque acreditamos naquilo que parece ciência, mas não é.
O livro contém exercícios, como um livro-texto de disciplinas escolares. E conceitos e palavras-chaves se espalham pelas folhas em negrito, em um esforço didático pra tornar mais palatável o que é difícil: filosofia e ciência. O glossário desses termos no final ajuda a entendê-los mais rapidamente e o resultado é que a gente sai um pouco mais letrado no assunto do quando iniciamos a leitura.
Talvez eu tivesse querido um professor pra auxiliar na leitura de algumas passagens, porque filosofia é o tipo de coisa que demanda repertório prévio. Mas o esforço dos autores, acostumados decerto com alunos cheios de dúvidas, é louvável. De um modo geral, a leitura flui bem e alguns conceitos a gente até acaba incorporando no dia a dia. O meu preferido? Propriedades emergentes, que temo ser o golpe de misericórdia em crenças muito arraigadas sobre a vida.
Abaixo estão algumas citações.
Ciência 101
“A ciência procura descrever e explicar os acontecimentos da realidade com a finalidade de prever eventos futuros ou organizá-los de forma inteligente, formando, assim, uma representação da natureza.” (p. 12)
– Nós gostamos de atribuir tantas funções e missões à ciência que fica fácil se esquecer de que, no fundo, ela explica a natureza. O esquecimento é porque confundimos, como os autores explicam, ciência com tecnologia científica, como são medicina, a veterinárias, as engenharias e a agronomia.
“A conclusão dessa parte é que as bases cognitivas da ciência são as mesmas do senso comum, mas que a peculiaridade da ciência reside no fato de que todo o conhecimento científico é lastreado em confronto com a realidade e é consolidado pela comunidade científica.” (p. 15)
– Alguém bastante cínico lembraria que a ciência evolui quando os decanos morrem e os discípulos podem finalmente desenvolver suas ideias.
“Em outras palavras, a metafísica tem o mesmo objetivo da ciência, isto é, descrever a natureza dos objetos e os eventos da realidade. A diferença é que a ciência segue um método cujas conclusões são confrontadas empiricamente com a realidade, enquanto a metafísica usa em suas considerações somente a razão (Mumford, 2010).” (p. 91)
– Evidentemente, a metafísica cogitou o céu, mas é a ciência é que levanta aviões.
“As qualidades fundamentais da ciência podem ser resumidas em três aspectos principais: confiabilidade, fertilidade e utilidade prática (Carruthers, 2006; Hansson, 2013).” (p. 181)
– Os autores seguem explicando que o aspecto da confiabilidade é mais importante, consequência da aplicação do método científico.
“Aliás, o repúdio de uma proposição científica em função de condenação política não é uma refutação científica.” (p. 228)
– Política e ciência, nhééé, esquece, são como água e óleo. E isso nunca é usado quando, por exemplo, vão refutar a psicanálise, nunquinha.
Ciência cognitiva
“A mente é descrita pela Ciência Cognitiva como o conjunto de algoritmos que processa representações correspondentes e dados sensoriais, registros de memória e de interações, as quais aumentam a capacidade humana de analisar o ambiente e gerar respostas comportamentais mais adequadas do ponto de vista evolutivo.” (p. 127)
– A mente desumanizou-se: maquinizou-se.
“A nossa mente evoluiu pra detectar padrões, pensar em termos causais e automaticamente atribuir significado a eventos conectados no tempo e no espaço.” (p. 184)
– Tenho alguns memes para explicar a diferença entre relação causal e temporal, mas nada supera o excelente texto de Fernando Reinach intitulado Correlação e causa: cegonhas e bebês, publicado no Estadão no dia 01 de junho de 2024. Leia aqui.
“É frequente admitir que a moralidade surge por aprendizado social dos padrões morais, embora seja crescente a aceitação de que a moralidade se baseia em uma moralidade intuitiva biologicamente adaptativa (Haidt e Joseph, 2004). Nesse caso, os padrões morais são ditados por regras morais universais (invariantes em diferentes culturas e associadas aos módulos cognitivos) e, em parte, por prescrições culturais específicas. Entre os padrões morais universais (moralidade intuitiva) estão aqueles que proíbem comportamentos tais como violência interpessoal, comportamento criminoso, mentir, trapacear e roubar (Tangney, Stuewig, Mashek, 2007).” (p. 267)
– Não sei você, mas sempre pensei que ficaríamos em maus lençóis sem uma religião para ensinar o que é certo e errado.
Extrapolações
“No entanto, embora as explicações de um nível sejam dadas em termos do nível subjacente, isso não significa que, uma vez conhecidas as propriedades dos elementos de um nível inferior, seja possível derivar as propriedades do nível superior, como afirmam os defensores do reducionismo filosófico (Nagel, 1961). A razão disso é que sistema condiciona o tipo de inter-relações entre seus elementos. Assim, se conhecemos apenas as propriedades dos elementos não podemos derivar as propriedades do sistema. É necessário conhecer também todas as interações possíveis. Esse fenômeno é o que se chama de emergência (Bedan e Hummphreys, 2008).” (p. 47)
– O conceito de que mais gostei de aprender, emergência, a propriedade que emerge de sistemas complexos dando-lhe características que ultrapassam o esperado, levando o sistema pra um outro nível. Ou seja, como os autores falam em outros momento (p. 56): “Em outras palavras, um sistema é emergente quando suas propriedades não são previsíveis pelas propriedades de suas partes.”
“Se a arte for adaptativa, será necessário mostrar de que forma os grupos que produziam e apreciavam a arte seriam mais competitivos (gerariam mais descendentes) do que os rivais sem arte. Na hipótese de a arte ser subproduto de habilidades adaptativas, torna-se imperativo identificar quais habilidades são usadas e por que isso ocorreria.” (p. 231)
– Como é frustrante reduzir tudo à procriação nesse nosso mundão hahaha.
“Os campos com autonomia constantemente ameaçada, como a Ciência Social, têm de estar vigilantes para evitar que sejam orientadas a favor de indivíduos e não pelas demandas do próprio campo (Bourdieu, 2001/2004).” (p. 278)
– A educação com o cu está aí pra provar a necessidade da vigilância.
Contraintuitivo
“A construção do conhecimento como resultado da operação de observar para reunir fatos e, a seguir, propor explicações é, na verdade, uma compreensão inadequada. Há ampla evidência de que só é possível observar fatos se o pesquisador já tiver uma hipótese sobre o que pretende explicar, pois a escolha dos eventos da realidade que serão usados como fatos dependerá da hipótese formulada (Russell-Hanson, 1967).” (p. 90)
– Imagina-se primeiro; então se observa.
“O senso comum inato é um sistema para lidar com a realidade que era adaptativo para nossos ancestrais no Paleolítico. Assim, as explicações que organizam eventos importantes no Paleolítico, ou que a eles se assemelham, nos parecem naturais, porque a nossa mente foi formada no Paleolítico. Por outro lado, as explicações da ciência, que envolvem objetos e eventos que nada têm a ver com aqueles do Paleolítico, causam-nos espanto e estranheza, contrariando nossas intuições.” (p. 107)
– O capítulo destinado a discutir crenças e pseudociências aprofunda as consequências desses módulos inatos do nosso cérebro, pois são eles que tornam plausíveis o que em realidade não é. Sempre acho que a ciência cognitiva despoetiza demais a vida e temo que não sejamos hábeis em suportar uma vida apoética, inclusive porque no Paleolítico nos formamos como seres que creem em magia.
Poeira cósmica
“A aleatoriedade das mudanças que surgem nos seres vivos e são selecionadas no processo evolutivo tem como consequência o fato de que a evolução não tem objetivo final.” (p. 70)
– Durma com essa.
“Não há, contudo, evidência empírica que indique a existência de objetivos específicos a orientar a evolução sociocultural. Na prática, os estudos sobre inovação tecnológica e criatividade indicam que as invenções e as descobertas bem-sucedidas seriam ou o resultado de tentativas e erros ou subprodutos de tentativas dirigidas a objetivos distintos dos inicialmente pretendidos (Henrich, 2001; Mesoudi, Whiten e Laland, 2006).” (p. 83)
– É tão acachapante a aleatoriedade que criamos finalidades.
“Por exemplo, em termos metafísicos, poderíamos assumir que os seres vivos seriam animados por um princípio não material ou que suas propriedades se reduziriam às propriedades da matérias. A ciência atual, vale dizer, reuniu argumentos que rejeitam a necessidade de princípio não material para explicar as propriedades dos seres vivos, favorecendo o ponto de vista de que a vida pode ser entendida em termos materiais.” (p. 92)
– Uma vez respondi a um garoto que eu não me importava com a questão se existem ou não E.Ts. Indignado, perguntou como eu poderia acreditar que não existe nenhuma vida além da nossa em universo tão grande. Respondi que, se houver provas, não será necessário acreditar, porque bastará ver; enquanto não houver, que diferença faz? A matéria conta-se a si mesma.
“Ainda segundo Merton (1973), a principal motivação do cientista, seu sistema de recompensa, é o reconhecimento, sobretudo em relação à primazia de alguma ideia.” (p. 275)
– E deve ser verdade pra ninguém nunca mais, desde 1973, ter querido pesquisar se não haveria outra motivação?!
” ‘Uma nova verdade científica nunca triunfa por conseguir convencer adversários, mostrando-lhes a luz, mas porque esses adversários morrem e surge uma nova geração para a qual essa verdade é familiar’ (Planck, 2012).” (p. 279)
– Os Terras dizem que Max Planck exagerou nessa. Sei não, hein…
Pseudociência
“É importante esclarecer, contudo, que crenças religiosas ou em procedimentos mágicos que não se apresentam como ciência não são pseudociência.” (p. 183)
– Quanto problema seria evitado se algumas das PICS simplesmente não ficassem posando de ciência. Por essa razão é que prefiro chamar a aromaterapia e arte terapêutica, pelo menos por enquanto. Na página 185, os autores sumarizam características que são encontradas nas pseudociências:
Bom, creio que a aromaterapia ainda precise melhorar o item 1, mas não no sentido de desconsiderar testes e sim no sentido de melhorar os métodos dos ensaios clínicos. O item 8 é bem presente na aromaterapia sutil e, de certa maneira, esta também comete o item 7. O item 9 ainda infelizmente é presente em certas comunidades da aromaterapia, que insiste em dizer que “a indústria não tem interesse na aromaterapia” e o item 10 começa ser mudado no Brasil, mas em alguns países a aromaterapia é ensinada há anos em universidades de renome. Acho que temos um cenário em que a aromaterapia não pode de forma nenhuma ser chamada de pseudociência, mas talvez ainda possa ser chamada de ciência fraca.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024
TERRA, Walter R.; TERRA, Ricardo R. Filosofia da ciência: fundamentos históricos, metodológicos, cognitivos e institucionais. São Paulo: Contexto, 2023.