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Escrevendo no escuro – Patrícia Melo

Postado às 15:19 do dia 15/05/12

Nunca tinha ouvido falar de Patrícia Melo, embora sua foto na orelha do livro não me seja de todo estranha. Fato é que não gosto do gênero policial, nem em filme, nem em livro. Lembro muito meu pai, quando surgiram as primeiras video-locadoras em São José dos Campos, SP, minha cidade de criação, que estacionava na porta da loja e me pedia par ir lá dentro apanhar uns filmes:

– Mas quais, pai?

– Pede pro dono, diz que a sacola tem que voltar pingando sangue, ele vai entender.

E voltava eu com filmes tão violentos que até mesmo o som me incomodava. Meu quarto era ao lado da sala de TV e eu devo ter me protegido daquele bang-bang dentro de páginas de livros fantasiosos, onde o mundo é mágico e o vermelho aparecia apenas para colorir flores e lábios de princesas. Deve vir daí – e mais de uma tendência temperamental ao bom-mocismo – que me afastam de narrativas soturnas, da morbidez e niilismo do que parece ser a prosa moderna: refugio-me nos clássicos, que sempre me parecem oferecer, quando drama e tragédia, pelo menos a dose certa de filosofia e esperança e, quase sempre, o sarcasmo e o humor para dourar a realidade.

Então me cai a tarefa de criticar uma literatura do agora. Eu não precisava de jeito nenhum escolher Patrícia Melo, mas quis facilitar minha vida escolhendo uma narrativa curta, de um autor brasileiro. A escolha por uma autora atendeu aos apelos de gênero desenvolvidos durante a faculdade quando estava sob a orientação de Margareth Rago.

Comprei três livros para o ensejo: este, de Patrícia; um outro de contos de Carol Bensimon; e outro de uma professora também dos tempos de faculdade, o Vento Sul de Vilma Arêas.

Li dois deles num único dia, com um gosto amargo na boca, porque só vi morte, suicídio, drogas, sexo sem amor e desesperança em suas páginas. Eu, que tentei ser uma outsider na faculdade, mas não consegui, e acabei virando uma yogi natureba vegetariana ecochata que não gosta de palavrões e abre o vidro do carro pra pegar folheto de propagandas porque entende que o cara está trabalhando –; eu bem que tentei gostar destes livros, mas foi difícil. O de Vilma ainda estou lendo e ele já me agradou mais, porque nos entermeios aparecem regionalismos, nonsenses tropicais e, afinal, a pontuação é mais certinha.

Apesar deste estranhamento, reconheço passagens muito boas nos livros de Patricia e Carol. O de Patrícia é um bom livro, um nó em pingo d´água que ela deu numa narrativa em que se confundem escritor, narrador, personagem. A crítica dele ainda não posso publicar, mas posso já colocar aqui as melhores partes comentadas. De paralelo, assisti Patricia em duas entrevistas no You Tube: amei sua dicção. Ela já é avó e não sei se onde surgem tantas histórias sorumbáticas. Ela disse que foi uma criança solitária, mas vai ver que na sala de TV só havia filme de cinderela, então ela se refugiou em Agatha Christie. Não sei, pode ser.

Sobre o Escrevendo no Escuro, leia apenas se conseguir se divertir com Brás-Cubas. Brás-Cubas é o limite entre o mórbido feliz e o mórbido enterrado.

 

 

do conto Cecília

“Daqui, dessa trincheira – é assim que gosto de chamar o meu local de trabalho, com suas camadas e camadas de livros e papéis, formando um recife à minha volta – daqui, como Hades, planejo tudo sozinha. Não há outros sócios ou parcerias possíveis. Sou o vórtice que leva os personagens ao seu destino. Sou responsável por cada gesto e cada fala. Quando minha tropa de fodidos abre a boca, o grito é meu. Eu decido. Eu digo ataquem. Destruam, e eles destroem.” (p. 18)

– Este parágrafo está na contra-capa do livro e foi o que verdadeiramente que fez comprá-lo. Acho-o de uma expressividade ímpar. Tropa de fodidos é o que melhor define os personagens deste livro de contos e ele segue assim, com esta força dramática, por todas as demas páginas: vórtice, tropa, destroem, a aliteração da guerra.

 

 

do conto Escrevendo no escuro

“Dizem que os vampiros têm pior destino que os mortais, e que a mais severa punição é a eternidade. Não há vampiros para a confirmação da tese. Suspeito que o verdadeiro castigo aos homens, o que causa mais sofrimento, seja a insônia, que alterna o horror da realidade com nossos demônios notívagos num ciclo perverso. Insones, somos só um punhado de carne irritável, um feixe de nervos em frangalhos, um sistema que não desliga nem funciona, sempre pronto para entrar em colapso.” (. 40)

– Sorri com esta observação sobre os vampiros. Já fui leitora inveterada de histórias de vampiros, do clássico de Bram Stocker aos livros de Anne Rice. Então esta escritora inventou que Lestat deveria se banquetear com o sangue do ciclo de uma protégée, foi quando desisti: tinha ficado escatológico demais pro meu gosto burguês. A partir daí, perdi todo e qualquer interesse em vampiros, mas meu interesse por mágicos e fadas permanece intocado. As pessoas leem e filosofam sobre vampiros com uma fluência incrível, mas concordo com o personagem de Escrevendo no escuro: não há vampiros para confirmar as teses. Passemos adiante. Finalmente, o que é esta observação precisa sobre a insônia, hein? Já se sentiu assim, desumanizado porque não consegue dormir? Terrível!

 

 

do conto Síndrome do pânico

“Sou rápido na área sentimental. O amor não tem etapas, Lúcia. Me liguei em você. Assim, Imediatamente. Só de ver estas fotos eu sei. Poderia ter me casado com você. Hoje jantaríamos juntos. Hoje não, amanhã. Hoje vou dar plantão. Ainda bem que você apareceu. Estou cansado de ser delegado, amor. Festinha de promoção. Exibição de arma ilegal. A Homicídios acabou com minha fé. Estou com esse povo até o pescoço.” (p. 89)

– Meninas, a solução para os homens é: vão trabalhas no Depto. Homicídios, entenderam?

 

 

do conto Depilação holandesa

“Ver meu marido nesse perrengue da porra, recalculando nossas despesas, cortando centavos, acabava comigo. Fui para a cama, peguei o livro do grã caralho que minha cliente me dera. Era só cona e grã cona e cu e foder, tudo em rima, poesia erótica de Aretino, ela explicou. Leia para o Zeca, disse Sílvia, como se Zeca fosse gostar daquelas porcarias. Como se precisássemos daquele lixo. Pode até ser que ‘uma das mãos põe-me no cu’ ou que ‘fodamos meu amor, fodamos presto’ fossem mesmo versos de qualidade. Para mim, no entanto, o importante é que daquele livro, que há dias estava mofando na minha cabeceira, surgiu meu plano infalível.” (p. 105)

– Já circulou por email um conto sobre uma mulher que vai fazer sua primeira depilação completa de virilha e perianal. Quando o li, me pareceu engraçado. Depois o reli, e me pareceu lastimável. Na minha adolescência eu tinha um lindo livro de poesias eróticas, numa encardenação bonita, e ora ria, ora suspirava. Depois, quando li e traduzi para um curso da faculdade o Les Jardins Secrets, aí, sim, descobri um tipo de poesia erótica bacana de ler. O resto é pornografia e se você estiver no clima, ok; senão, corta o clima no mesmo momento. Este conto de Patrícia tem um dissonância que me escapa explicar com precisão: me parece improvável que a depiladora soubesse apreciar os versos que cita e ao mesmo tempo pronunciar “perrengue da porra”. Leia você e depois me conte.

 

 

do conto Eros

“Logo entendi que havia três tipos de pacientes: as que me viam como uma espécie de destista, um mal necessário, as que encaravam o exame como um estupro clínico, e as que tinham imaginação.” (p. 117)

– Bem, é um jeito interessante de falar sobre ultrassonagrafia transvaginal. Vai ver é por isso que sempre tem uma enfermeira acompanhando o exame, mesmo se for feito por uma radiologista. Pensei em duas palavras, as conclusões são suas: exibicionismo e voyeurismo.

 

 

do conto Feliz Natal

– Não colocarei nenhuma melhor parte deste conto, senão estrago a surpresa. Só digo uma coisa: seja vegetariano, meu caro. De jeito nenhum? Leia, então.

 

 

do conto Agnus Dei

“Meus pais eram ateus convictos, mas, na infância, minha avó me levara seguidas vezes às missas dominicais durante as férias que passávamos em Ribeirão Preto. Dormíamos juntas na sua cama de viúva, embaixo de um pôster plastificado com a imagem de Jeses Cristo flutuando sobre pescadores, eu sempre acreditando que ela era o ‘cordeiro de Deus’ para o qual cantávamos na igreja, e que a medalha Agnus Dei que minha avó carregava no peito tinha de fato o poder de proteger meus pais e toda nossa família.

Com o que restou disso tudo inventei uma religião própria, sem cultos ou liturgia, que só exigia que eu usasse uma medalha igual à de minha avó e acreditasse que, desta forma, estava sob um manto protetor.” (p. 159-160)

– Acho que se alcançássemos plena maturidade, seríamos todos agnósticos. Uma das coisas que nos ata à religiosidade é a lembrança que temos de nos sentirmos protegidos em criança. Nossa religiosidade pode mudar, mas sempre estamos colocando novos agnus dei no pescoço. A verdadeira espiritualidade é descrente e nela a palavra proteção não existe.

 

 

do conto Acerto de contas

“Um tapa é a morte moral. A não ser que você seja uma pessoa má, a não ser que você se sinta merecedora  e deseje uma bela bofetada na fuça como forma de ser redimir, não há a menor possibilidade de superar a humilhação de levar um tabefe.” (p. 166)

– Impossível discordar.

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

 

MELO, Patrícia. Escrevendo no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

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