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Diário de um perfumista – Jean-Claude Ellena

Postado às 21:19 do dia 01/01/14

Jean-Claude (França, 1947) é um perfumista muito, mas muito famoso – mas não é um pop star. Trabalha há quase uma década para a mesma casa, a Hermès, que não é lá uma marca faiscante comparativamente a outras que detêm linhas de perfumes próprias, como Carolina Herrera, Calvin Klein, Diesel ou mesmo a Chanel. Filho de perfumista, nascido em Grasse, já trabalhou pra grandes casas de fragrâncias, como Givaudan e Symrise, criando perfumes para Bvlgari, Balenciaga, Giorgio Armani, L´Artisan Parfumeur, Van Cleef & Arpels e Yves Saint Laurent. Mas seus maiores sucessos vieram mesmo a partir de 2004-05 quando criou a série Hermessence e “ Un Jardin” para a Hermès.

De lá pra cá já publicou quatro livros, colaborou em outros dois, sendo este, Diário de um Perfumista (2009-11), o primeiro traduzido no Brasil. É que seu nariz é muito literário. O mais apaixonante em Ellena é seu amor pela literatura. Acostumados que estamos, desde Septimus Piesse, a encarar a perfumaria como uma composição musical, vem ele e abre o livro com a epígrafe “O odor é uma palavra, o perfume é a literatura”. Pronto, você precisa de mais nada pra ler o livro.

Mas se quiser outros argumentos, ei-los, do mais óbvio ao menos: se você brinca de perfumaria, vai amar algumas fórmulas que ele menciona no final do livro; se você é aromaterapeuta, vai gostar de saber sobre algumas (poucas) essências naturais usadas na perfumaria na França; se você também acha a Anvisa um porre, vai encontrar pelo menos duas boas e fundamentadas opiniões de por que ela e o IFRA são uns chatos de galocha; se você queria ter nascido na França, vai ficar com mais vontade ainda – Jean-Claude tem tudo que um francês deve ter: senso politico, consciência da fugacidade da fama, propensão a filosofar em cima do banal e amor pelo sofisticado-simples; se você gosta de literatura, vai achar incrível as reflexões que ele faz em cima de seu ofício, o de um escritor de símbolos fragrantes.
Depois da leitura, só lhe restará uma atitude sensata a tomar: ir até uma boa perfumaria e cheirar as criações de Ellena. Leve mais braços: mesmo que borrife nos pulsos, nas dobras internas dos cotovelos e nos bíceps, faltará espaço pra cheirar tanta beleza.

Voici les meilleures parties.

Escrevendo emoções

“Não me sinto à vontade para falar a respeito do prazer, para mim é mais fácil falar do desejo.” (p. 7)

– Nada mais francês que dissociar o prazer do desejo.

“Tenho necessidade de ouvir no interior da minha cabeça a música das palavras, o ritmo das frases, os silêncios.” (p. 9)

– Sempre achei admiráveis aquelas pessoas que leem ouvindo música – eu não consigo. Ler, pra mim, é ouvir-me – e preciso estar totalmente absorta em mim pra não desafinar. Também acho admirável quem ouve mais música que lê, ou quem vê mais filme que lê: não consigo – troco qualquer música, qualquer filme por um livro. É um prazer egoísta mesmo – ler: faço sozinha.

“Se, tradicionalmente, o perfumista é comparado a um compositor musical, sempre me senti como um escritor de odores.” (p. 9)

– Nada mais apropriado: Ellena usa Moleskine como caderno de anotações.

“O retrato olfativo que vou tirar no laboratório não será a reprodução do que senti, mas a imagem do odor fixada na memória.” (p. 12)

– Isso é o oposto do headspace: deixa-se o tempo apagar as perfeições.

“Volto ao meu ateliê e aos meus queridos frascos.” (p. 25)

– Poderíamos dizer: volto à minha biblioteca e aos meus queridos livros.

“Não escolho um material unicamente em função da qualidade do odor, mas também em função da capacidade que vislumbro na sua utilização.” (p. 72)

– Pensemos em palavras: há adjetivos belíssimos, mas um texto se escreve com substantivos. Não tem jeito de escapar de determinados ingredientes olfativos.

“Não, eu não cheiro da mesma maneira que vocês. Ao longo do tempo, construí em mim, para os perfumes e exclusivamente para eles, um nariz analítico, metódico e distante, e, se minha curiosidade é sempre exigente e viva, há muito tempo perdi meu entusiasmo diante da descoberta de uma novidade. Invejo a emoção que um amador sente e exprime quando cheira pela primeira vez um perfume; são palavras de amor que gostaria de reencontrar.” (p. 80)

– Ellena é um fofo. Na literatura é assim também: a gente faz oficinas, conhece os autores, lê as críticas, e vai ficando blasé.

“Conversando com Pissarro, o pintor Cézanne dizia: ‘Com uma maçã apenas, quero assombrar Paris.’ Há na minha atitude a mesma ambição: surpreender, assombrar com um odoro do cotidiano.” (p. 81)

– Que você consiga, Ellena, oxalá consiga!

“Artesão, artista: nunca soube me enquadrar em uma ou outra das definições. Sinto-me artesão quando ocupado exclusivamente com a realização de um perfume; eu me sinto artista quando imagino o perfume que preciso criar.” (p. 83)

– Escrever é igual: se é um autor, mas também se é um escriba.

“Quando crio um perfume, eu o prolongo com uma história.” (p. 99)

– Não tenho certeza de se entendi direito isso, mas me parece que o marketing faz o mesmo.

“Os odores não são peças de Lego que encaixamos umas nas outras para construir um perfume, mas objetos imateriais que procuro tornar inteligíveis.” (p. 100)

– Só é possível compreender essa afirmação tendo-se em mente os ingredientes isolados.

“Para mim, o perfume murmura ao nariz, dirige-se ao nosso íntimo, se alia ao pensamento.” (p. 106)

– É por causa do nervo olfativo, entranhado lá no cérebro.

“No equilíbrio digno de um malabarista, devo saber ouvir sem necessariamente escutar. Se tenho uma consciência aguda daquilo que faço, prezo a dúvida e o diálogo: não conheço nada melhor para criar.” (p. 111)

– Ninguém cria se tiver medo de críticas.

“Um perfume nunca apela apenas para um sentido, mas se oferece a todos os sentidos.” (p. 123)

– Mas é preciso cheirá-lo de olhos fechados pra alcançar esse efeito.

“Um perfume não precisa necessariamente de um tema, de um conceito, se for belo, ele existe por si mesmo.” (p. 125)

– É que nem poesia.

“Busquei a liberdade de elaborar perfumes, e os odores acabaram por me subjugar. Não posso parar de cheirar, de pensar a respeito de odores, por medo de perder o sentido da composição.” (p. 129)

– E quem é aquele que trabalha com o que ama e dorme pensando em estrelas?

Linha de montagem

“Numa sociedade que corre atrás do tempo, o perfume é avaliado em dois segundos, tão rapidamente quanto um olhar. Essa rapidez no julgamento me incomoda: um perfume só se revela realmente na medida em que é aspirado e usado.” (p. 7)

– Vou aqui criar um termo: slow perfumery, que significa você ir até a Sephora e borrifar o perfume em si. Uns dois dias depois, cê volta lá e faz de novo. Dá pra ficar nessa por umas duas semanas – ninguém vai te barrar na loja, as vendedoras não ganham comissão individualmente, fique tranquilo. Depois que você estiver com o perfume por uns 15 dias, aí, sim, se realmente tiver gostado dele, passe no caixa: vocês estão prontos pra iniciar um relacionamento sério.

“Para os não iniciados, descobrir um perfume por meio da lista dos seus materiais é como ler os ingredientes de uma receita de cozinha com a frustração de não poder imaginar o gosto do prato.” (p. 25)

– E como na alimentação, alguma coisa tem que ser mencionada para salvaguardar dietas restritivas: não contem glúten, não contém soja, não contém amendoim, etc. Em perfumaria, a legislação tem apertado pelas mesmas razões, mas as casas de fragrâncias são mais arredias que as indústrias de alimentos no que se refere revelar os ingredientes.

“Acredito, contudo, que as trocas econômicas globalizam o gosto e, portanto, a capacidade de sentir os odores, e que desse modo compartilhamos afetos comuns apesar das aversões pessoais.” (p. 41)

– É a praga da Cozinha Internacional adentrando a perfumaria.

“Nossas riquezas residem nas nossas diferenças, não na semelhança. O mesmo vale para os perfumes franceses batizados com nomes internacionais, nomes que não fazem sonhar, nomes sem aromas.” (p. 51)

– Concordo. Dior Addict (Dior) é um nome tolo; Allure Homme Sport Eau Extrême (Chanel) é ridículo; Attraction (Lancôme) é vulgar. Mas também não acho Eau D´Orange Verte (Hermès) algo sublime, nem Chanel nº5 (Chanel). Bacana é L´Eau de l´Eau (Diptyque), L´Âme d´un Héros (Guerlain), La Chasse aux Papillons (L´Artisan Parfumeur). Com a série Un Jardin…, creio que Ellena se redimiu nos nomes com aromas.

“Não dou mais ouvidos ao mercado – a criação às vezes exige a surdez.” (p. 62)

– Caro perfumista em início de carreira, o conselho não se aplica a sua etapa de vida profissional.

“Gosto da ideia de que, aos vinte anos, uma mulher ou um homem escolham um perfume e possam reencontrá-lo aos sessenta anos, depois de ter satisfeito o desejo de praticar algumas infidelidades.” (p. 75)

– Sim, seria maravilhoso. Mas os perfumes saem de linhas e sebos de perfume não lidam com um produto que, digamos, depois de usado vá se conservar belamente. O vintage em perfumaria não existe.

“É difícil hoje abrir caminho para gostos ou odores novos, pois vivemos não apenas num mundo no qual predomina a possibilidade de perseguir os traços das substâncias, mas também numa época em que é preciso justificar tudo. Inventar um odor tão inovador como foi o âmbar na perfumaria, ou o gosto da Coca-Cola no seu tempo, é desde então uma aposta, uma aventura. Em alguns poucos anos passamos de uma louvável demanda por explicações a uma demanda de justificativas de cunho moralizador.” (p. 87)

– Que bosta!

“Sei que as palavras, e mais ainda os odores, não têm o mesmo significado para cada um de nós; contudo os odores são objetos que os perfumistas podem transformar, reviver, mudar. É justamente porque mudam de sentido que eles vivem, e que os perfumem vivem.” (p. 122)

– Não me pareceu que a última frase tenha sido bem traduzida, mas a realidade é que não é a pele que está mudando o perfume, é nosso pensamento.

Cópia da Natureza

“A natureza é complexa – quinhentas moléculas para o odor de uma rosa, mais ainda para o gosto do chocolate, menos para o do alho.” (p. 14)

– Impossível deixar de pensar que, quando Coco encomendou a Ernest Beaux o perfume que viria a ser o Chanel nº5, ela pediu um que cheirasse à flor mas a nenhuma flor em particular. Muitas vezes a arte cria o que a Natureza não vê sentido em criar.

“Foi a química do perfume que, em fins do século XIX, permitiu que o perfumista artesão se transformasse num artista, liberando-o das restrições que a natureza exerce sobre nós.” (p. 53)

– Não tenho nada contra perfumes sintéticos, exceto que dificilmente gosto de um. Atualmente, estou apaixonada pelo Terre d´Hermès, mas é raro.

“[…] para o perfumista que sou, eu me subtraio à natureza para trazê-la de volta ao nível do signo.” (p. 64)

– Ah, Oscar Wide – não cansam de citá-lo.

“Há muitos anos ando à procura de novas notas verdes.” (p. 72)
“O verde é a única cor que faz sentido para um odor.” (p.73)

– Que ele esteja procurando, posso imaginar; que o verde seja a única cor, não captei. Alguém me ajuda?

“O perfume não depende da ciência, mesmo que se apoie nela.” (p. 112)

– Você talvez não saiba, mas há um mundo subterrâneo pulsante na perfumaria. Ele se chama perfumaria botânica natural. Estão fazendo misérias por lá sem ciência (moderna) alguma.

Por dentro do métier

“[…] as colônias, contudo, não são simples; a rápida sucessão das notas que as compõem nos leva a acreditar que o perfume não se sustenta sobre a pele.” (p. 18)

– Cheire os florais numa prateleira: serão todos idênticos, normalmente bons, alguns divinos. Agora pegue as colônias: seu nariz sofrerá até achar uma que realmente tenha algo interessante.

“É evidente que a qualidade dos materiais usados na perfumaria é essencial. A qualidade é um compromisso, ela deve ser perseguida, pois é a parte integrante do perfume, mas ela não pode, em hipótese alguma, ser uma reivindicação que dirija a criatividade. Os mais belos materiais não fazem os mais belos perfumes.” (p. 20).

– Concordo. E acrescento: contra-tipos são que nem medicamentos genéricos, parece que são todos a mesma coisa, mas tem laboratório melhor que outro.

“O nome [do perfume] é um som que deve fazer um apelo a todos os nossos sentidos, uma vez que representa o primeiro contato com o perfume.” (p. 37)

– Já reparou como propagandas de perfumes são só imagens, diálogo nenhum e, lá no fim, vem uma voz falando o nome do perfume?

“[…] o verdor frio da menta e a espessura sombria do patchuli […]” (p. 39)

– Ai que eu fico doida com essas descrições – dá vontade de gritar show! “Espessura sombria do patchuli” é phoda.

“Crocante e não gourmand. Os aromas gourmandes são preguiçosos, o crocante é sedutor. ‘Crocante’ é uma palavra suficientemente evocativa para que se transforme numa aroma.” (p. 45)

– Nenhum perfumista italiano chegaria a essa conclusão. Gourmandes – preguiçosos? Não, apenas um dolce far niente.

“Deixo de lado a combinação menta verde-patchuli, guardando-a para uma futura eau de toilette: essa combinação sombria convém mais a esta forma de apresentação, enquanto uma colônia deve ser mais irrequieta e proporcionar um prazer imediato.” (p. 48)

– Ah, tá explicado porque colônias são a apresentação favorita dos brasileiros! Já viu brasileiro calmo e planejador?

“Em termos industriais, o futuro não está de modo algum na descoberta de novos materiais olfativos.” (p. 67)

– É uma afirmação controversa, considerando que a tecnologia é quem frequentemente impulsiona a arte. Esperemos duas décadas para ver que rumo tomará a perfumaria.

“São os materiais que formam o perfume; justapostos, eles entram em ressonância. Buscando a harmonia, as proporções se estabelecem por si sós.” (p. 127)

– Apesar de que se pesa, e se pesa, e se pesa várias vezes.

On filosofe

“O computador é um grande compilador de listas, a ponto de oferecer listas de listas; ter acesso ao conhecimento do mundo a um toque dos nossos dedos é algo que nos dá vertigem. Curiosamente, as listas nos tranquilizam.” (p. 32)

– É verdade, não tinha pensado nisso antes. Por isso amamos celular: tudo vem ordenadinho, listadinho devido ao diminuto espaço da tela. A ânsia de consultar o celular a cada minuto é aplacada no próprio ato de percorrer as informações alinhadas.

“Um povo que escuta jazz é um povo que privilegia a troca entre os seres humanos.” (p. 60)

– E um povo que trocou o jazz pelo rap significa o quê?

“As sobremesas serão concisas; depois de uma generosidade [o prato principal], não há necessidade de abusar dos doces.” (p. 90)

– Ou seja, caros: franceses, ao final da refeição, não enfiam o pé na jaca. Magrooos.

“Enquanto a imagem que recebemos é exterior a nós, o odor, ao contrário, nos penetra.” (p. 91)

– Ah, os mistérios do olfato.

“Dele [Edmond Roudnitska, perfumista] recebi uma herança – as heranças escolhidas são as mais generosas […]” (p. 95)

– E como são – a importância de um mentor nas nossas vidas.

“Os legados olfativos são muitas vezes involuntários.” (p. 96)

– E agora que a ciência descobre mutações genéticas que interferem em como apreciamos odores, mais involuntários são.

 

escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2014
ELLENA, Jean-Claude. Diário de um perfumista. Tradução Cláudio Figueiredo. Rio de Janeiro: Record, 2013, 1ª edição.

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