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Crônicas do cotidiano e outras mais – Andressa Barichello

Postado às 00:49 do dia 04/07/14

Quando conheci Andressa, ela ganhava prêmio com a melhor fotografia num concurso cujo tema era “a leitura”: do alto, mirou em sua lente uma porta escancarada de onde se entreviam as pernas de um idoso que apoiava um livro no colo. É com o mesmo olhar que ela se debruça sobre cenas do cotidiano: com o afeto de quem sabe que se encantar com o comezinho é segredo para uma vida com mais sentido.

A presente coletânea de crônicas deu a Andressa outra vitória: foi vencedor do Prêmio Alejandro Cabassa 2013 da União Brasileira dos Escritores do Rio de Janeiro. Atenção: a autora é nova, muito nova – e está pronta. As qualidades de sua voz são muitas e não estão todas estampadas no volume, acredite. Leio a poesia que ela tem escrito e, afirmo, é impactante a força de suas metáforas. Mas aqui saltam aos olhos a delicadeza, o singelo, a tecitura terna de quem quer se maravilhar como crianças inocentes diante da primeira onda que lhes avança pelas pernas. A linguagem é calma, sem arroubos verborrágicos nem elocubrações de modernidades de estilo. As imagens se perfilam descontraídas, tal qual adolescentes namoradoiros em fila de sorveteria. Existe uma alegria de mocidade em cada página do livro que contagia, de fato contagia.

E existe também algo muito raro na literatura de hoje: esperança. Andressa não se queda mal humorada ante o desatino da vida, recusa-se à derrota e – suprema prova do frescor da juventude – , recusa-se à ironia. É alguém que quer dar a mão sem temer dar o braço. Por tudo isso, sugiro: compre o livro, dê-lhes alguns minutos e não tenha medo de lhe dedicar toda uma hora de leitura. Do alto, é sua alma que estará feliz de te ver com o livro nas mãos.

Abaixo selecionei minhas melhores partes:

 

 

Gulosos prazeres

“Qual é o meu programa preferido? Assim, de improviso, café! Não me ocorre pensar em nada melhor.” (de A cafeteira, p. 9)

– Por jovens que possam preferir ir a um café que a um churrasco! Viva!

“Perceber que o livro dos outros tem um cheiro diferente dos nossos.” (de Para ser feliz, p. 31)

– Gente, tem mesmo. Papel é que nem pele, reage. Sabe aquele negócio de que o ph da pele de mulher não combina com sushi por isso não há sushigirl? Então! Com chá é parecido: só mulher faz a colheita da Camellia sinensis, porque o ph da pele dos homens modifica o aroma da planta.

“A escola é sempre cheia de interditos. Até a própria sala de aula é proibida quando é suposto estar fora dela.

“Várias vezes simulei esquecer algo para, sozinha, ter de retornar – adorava encontrá-la iluminada apenas pela luz do sol.” (de [Des]enganos, p. 40)

– Gostei tanto de recordar essa sensação. Quando me ocorria de fazer o mesmo na adolescência, era tão estranho! Sensação de fim de festa: sempre preferi sala cheia.

 

 

Voz feminina

“Talvez eu me revele numa exclamação qualquer, feita em uma quinta-feira à noite ou numa segunda antes das oito da matina.” (de Carta aberta [ao silêncio], p. 14)

– Não seria capaz de apontar melhores horários para tal.

“É bom que você tenha muita paciência se escolher gostar de mim. Sou um tanto aguda demais – e, felizmente, ao menos ao meu tom de voz esse adjetivo não se aplica.” (de Carta aberta [ao silêncio], p. 14)

– Adoro esse tom de mando.

“Homens. Pularam o muro da escola. Compraram cachaça e cigarros aos 16. Roubaram as frutas do quintal alheio, tocaram a campainha e saíram correndo, colaram chiclete embaixo da mesa, espiaram a vizinha, colecionaram revistinhas de mulher pelada.” (de Conven-ção, p. 66)

– Entenderam por que Madonna e Cyndi Lauper foram os ícones das meninas que nasceram pelos idos de 1970?

“Nem mãos dadas. Nem braço dado. Nem o braço dele sobre o ombro dela. Nem ela segurando com as duas mãos um dos braços dele. Caminhavam um com a mão nas costas do outro, abraçados. Como para dar impulso. Como para regular o passado. Como para dar a ideia de que dois, quando bem juntos, são visualmente quase um.” (de Silêncios, p. 88)

– Tem que ser mulher pra reparar em coisas assim. Aliás, quem primeiro descobriu que é menos amor se não dormir de conchinha deve ter sido uma mulher.

 

 

Barba, cabelo, bigode

“Hoje, se a decolagem estiver prevista para antes das dez é bem provável que eu me apresente de cara lavada e calça de moletom. Na época eu não sabia que advogadas podiam sair de casa sem maquiagem e vestidas assim.” (de Das passagens, p. 27)

– Isso me fez lembrar que quando eu era professora de yoga em Londrina/PR, um aluno me reconheceu no shopping e, no dia seguinte, vindo para a aula, disse não saber que yogis usavam calça jeans. Cuma?!

“[…] um faxina nunca termina – dá trégua.” (de Da [nossa] bagunça organizada, p. 64)

– Afe.

“E não fosse para ficar linda, honestamente eu nunca teria comprado um depilador.” (de Estrago despropositado, p. 72)

– Ninguém teria.

“Mas todos os charmosíssimos saltos altíssimos e finíssimos que já comprei nesta vida só foram comprados porque me apaixonei. Por alguém.” (de Feminas, p. 75)

– Há muitas coisas que compramos porque nos apaixonamos por alguém. Inclusive alianças.

“Tá, eu confesso: pensei em não levar [o casaco]. Mas, quando vi, a vendedora já segurava de um jeito que bastava abrir os braços para estar vestida.” (de Escolhas, p. 77)

– Hahaha, isso mesmo! É por isso que a gente compra tanta roupa que não usa. Essas vendedoras são terríveis.

 

 

Paisagens

“Tarde de domingo com cara de tarde de domingo. Ruas preguiçosas, roupas mais coloridas. E mais colorido também o céu, finalmente azul, todo azul… As nuvens foram parar nos palitos de algodão-doce!” (de Re[creação] p. 17)

– Que delicia comer nuvens!

“Vai chover. O tempo ensaia e tudo à volta espera o primeiro pingo, na tensão de um olho aberto que aguarda uma gota de colírio.” (de Emoções, p. 46)

– Ótima imagem.

 

 

Amadurecimento

“Meu senso de pena talvez tenha sido um leve despeito, confesso.” (de Re[creação], p. 18)

– Sempre é.

“Queria eu chòver às vezes.” (de Emoções, p. 46)

– Não se apresse: é inevitável aprendê-lo.

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro © 2014

 

Barichello, Andressa. Crônicas do cotidiano e outras mais. São Paulo: Scortecci, 2014.

 

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