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Amores mínimos – João Anzanello Carrascoza

Postado às 16:14 do dia 31/01/13

A materialidade do dia a dia, as porções de coisas que fazemos em casa, no trânsito, sozinhos, acompanhados; todo o desfile de pequenas rotinas, manias e imprevistos com que lidamos automaticamente – enfim, isso tudo pra que existe uma palavra, e você sabe qual: vida. Quando ela parece uma sucessão de eventos banais, nessa hora em que você olha o relógio e segue em frente, é aí que a voz compassiva de João Anzanello Carrascoza (1962) a transforma em algo que vale a pena ser experimentado.

Amores Mínimos (2011), livro de contos curtos, finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura do ano passado, consegue um feito: perfurar a redoma que envolve o aspecto indiferente da vida, restituindo-lhe equilíbrio. Gosto de pensar que, agindo como elemento C, do princípio zero da termodinâmica, a linguagem de João restabelece razão e emoção para doses adequadas, de modo que passamos a fruir os acontecimentos sem queimaduras de frio nem de calor. E na manipulação em que a escrita de João opera, morno não é sinônimo de insosso. É sinônimo de temperatura perfeita.

Existe nesta coletânea de 25 histórias um trabalho acentuado com as palavras. As marcas de sua prosa ficam ainda mais evidentes: as sinestesias e os advérbios de lugar, que nos instigam a assumir como nossas as impressões do narrador. Existe também um cálculo para que a força da história não apele apenas aos temas sensíveis do envelhecimento, da solidão, do relacionamento amoroso, da paternidade e da perda da inocência. Sobretudo, há disposição para se construir um mundo onde você escolhe para que lado olhar.

Abaixo selecionei meus trechos favoritos. Entre os contos, Escolar e Porta, que têm a ver diretamente com crianças, foram os que mais me fizeram feliz. No primeiro, um motorista de van reflete sobre levar crianças à escola. Já o segundo é a fala de um pai divorciado.

 

Atração

“Deitei na cama e a esperei e, se ela entrou logo em seguida, pela primeira e única vez, sei que nela me entrei para sempre.” (de Cerâmica, p. 10)

“Atraída pela touceira verde dos meus olhos […]” (de Amor arcaico, p. 69)

“No início, fazíamos amor às claras […] E, se fosse noite, acendíamos todas as luzes, humilhando o escuro com nossa juventude.” (de A última estação, p. 125)

 

Crianças

“Pegaram logo suas vidas, como as mochilas, e, com os olhos ainda sujos de espanto, saíram à rua e entraram na van escolar, onde seguem comigo. Se o mundo nos agride – a nós que vivemos em vigília e temos veneno nas unhas, facas na voz – , é um susto para elas desligar os sonhos e acender a realidade, torpor silencioso como o de uma febre alta. Mas, por esses milagres que fazem as flores suportarem temporais, eis que vão aos poucos despertando novamente, de volta a sua condição ensolarada, de meninos e meninas.” (de Escolar, p. 15)

 

Mães

“Colocou os óculos escuros em seguida, murmurou seu fiat lux, e, no ato, o marido e as crianças se acomodaram ao seu redor, como se orientados pelo silêncio que dela emanava, satélites gravitando em sua órbita.” (de Brisa, p. 21-22)

 

Amadurecimento

“[…] a vida, com a sua escrita torta […]” (de Porta, p. 83)

“Adolescente, eu vivia desarrumado por dentro.” (de A hora, p. 48)

“A menina estava na escola, aprendendo a ser o que um dia seria plenamente: ela mesma, maior – e mais sabida.” (de Fala, p. 101)

“[…] o silêncio era o seu medo no último volume.” (de Fala, p. 101)

“Quando viu, mudara de estação: primaverava.” (de Violeta, p. 1113)

 

Velhice

“[…] não vai demorar para descobrir o que sabemos

e infelizmente já não podemos esquecer,

que nada a espancará mais que a suave mão do tempo, […]” (de Personal trainer, p. 56)

“Não me ergui de imediato – em verdade, ergui-me, mas o corpo não me obedecia e continuei ali, imóvel – , ouvindo os passos que o traziam até mim, filho de meu filho.” (de Tarde, p. 95)

“No fundo, ela era a mesma. Mas devagar.” (de Raiz, p. 135)

 

Amor

“Mas lá estava ele de novo, no milagre dos reencontros, ignorando quanto amor eu lhe colocava nos ombros, sendo tão somente um menino, com a sua pequena bagagem, de volta à casa do pai. Pródigo era apenas o momento, e isso me satisfazia, eu não desejava para nós senão o que éramos, um homem e seu filho, duas portas se abrindo com a mesma chave.” (de Porta, p. 84)

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro (C) 2013

OUTRAS OBRAS RESENHADAS DO AUTOR:

Dias Raros (2004) – Ler a resenha

Aquela Água Toda (2012) – Ler a resenha

CARRASCOZA, João Anzanello. Amores mínimos. Rio de Janeiro: Record, 2011.

 

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