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A visita cruel do tempo – Jennifer Egan

Postado às 22:21 do dia 06/01/13

Na última Festa Literária de Parati (FLIP 2012), Jennifer Egan (1962) estava lá, falando do palco, toda loira e magra, a uma plateia efusivamente masculina. Não deu outra: foi um sucessaço. Não porque ela seja bonita – isso também! – , mas porque é danada de inteligente e divertida. Jennifer Egan seria a Diana Krall das letras norte-americanas: um loira sexy que, ainda por cima, é super talentosa. E se ela escrever um romance sobre rock´n´roll com palavrões, algum sexo e várias drogas, pronto: ela catapulta uma legião de fãs apaixonados a seus pés. Esse romance é A Visita Cruel do Tempo, ganhador do Pulitzer em 2011. Mas seria reducionismo dizer que o livro se resume a uma história sobre o mundo da música: trata-se da ruína que o tempo causa nas vidas das pessoas, por mais glamourosas, loucas ou bacanas que possam parecer quando jovens.

Sérgio Rodrigues, do blog Todo Prosa, disse que A Visita Cruel do Tempo é ridiculamente bem-escrito. Outros blogs o festejaram, além de pelo menos uma revista feminina brasileira. Então você deve lê-lo. Sim, deve: todo mundo está certo. Jennifer escreve bem pacas, brinca com os estereótipos tanto da juventude quanto da maturidade, zomba e lamenta da busca por dinheiro e fama e, como todo escritor festejado em seu país, fala mal dos Estados Unidos. Para tornar o troço todo ainda mais interessante, ela incursiona a prosa por experiências de linguagem, como escrever um capítulo inteiro em power point (leia esse capítulo em inglês a partir do site oficial da autora *). Também alterna as vozes narrativas, escreve como se estivesse teclando torpedos; enfim, a moça ousa.

Como a história narra o que ocorreu dos sonhos e desejos de pessoas ligadas à cena musical são francisco/nova iorque ao longo de 50 anos, o livro vai e volta no tempo, e um personagem, secundário num capítulo, torna-se o protagonista em outro. (Quero comentar que isso é bem balzaquiano.) O interesse se mantém porque queremos saber, afinal, como acaba a vida deles, se se realizam ou se vão pro inferno. Pelo título do romance, é de se esperar que o inferno seja o que nos aguarda na velhice. Sendo assim, acho que a leitura passa mais redondo pela garganta se você tiver lá seus 25-30 anos. Se já passou dos 40, leia – porque vale a pena – , mas você irá engolir em seco, isso se não engasgar.

Dou umas amostras boca-livre; veja trechos que selecionei (a numeração das páginas se refere à versão digital em iPad):

* Aproveito para dizer que li o livro na versão ebook. Infelizmente, o capítulo em questão – Grandes pausas do rock and roll por Alison Blake – é praticamente ilegível na tela do iPad. Tentei contato com a editora Intrínseca, porque ela menciona no ebook que esses slides podem ser visualizados em seu You Tube, mas o vídeo não está mais lá, tampouco em seu site. Fui achá-lo, em inglês, no site oficial de Jennifer, mas a Intrínseca não respondeu nem ao meu email, nem aos meus tweets.

 

Sintomas

“E o zumbido, sempre aquele mesmo zumbido, que talvez~, no final das contas, não fosse um eco, mas sim o barulho do tempo que passa.” (p. 307)

– Quando a gente se dá conta de que ouve zumbidos nos ouvidos, ferrou!

“Ficamos as duas ali sem dizer nada. Todas as minhas perguntas soam erradas: como foi que você ficou tão velho? Foi tudo de uma vez, em um dia só, ou você foi se apagando aos poucos? Quando parou de dar festas? Todo mundo envelheceu também ou só você? Os outros ainda estão lá, escondidos entre as palmeiras ou prendendo a respiração debaixo d´água? Quando foi a última vez em que você nadou na piscina? Seus ossos estão doendo? Você sabia que ia acontecer e escondeu que sabia, ou isso o pegou por trás, de emboscada?” (p. 80)

– Envelhecer é sempre de emboscada…

 

Desconectados

“Foi aí que ele começou a tocar as músicas que passara anos escrevendo no submundo (…) – , baladas de paranoia e desconexão arrancadas do peito de um homem para quem bastava olhar para ver que ele nunca tinha tido página pessoal, nem perfil, nem apelido, nem console, que não fazia parte do banco de dados de ninguém, um cara que tinha passado todos aqueles anos vivendo nas frestas, esquecido e dominado pela raiva, de uma forma que agora surgia como pura. Intocada.” (p. 304)

– Existe um falso lamento no livro pelo avanço das tecnologias em nossas vidas. Como se trata de um livro sobre a indústria da música, é inevitável lembrar que a internet afundou os lucros dela. Mas Jennifer vive de livros, então, ainda pode brincar com elas, inserindo-as em sua narrativa.

 

Home-office

“Nessa noite, quando Rebecca e Cara-Ann já estavam profundamente adormecidas, Alex saiu da cama de casal quentinha feito um mingau sob a nuvem do mosquiteiro e foi até a sala/quarto de brincar/quarto de hóspedes/escritório.” (p. 285)

– Desde a invenção do home-office, nunca um único cômodo tinha ganhado tantas funções.

“Na verdade, o apartamento inteiro, que seis anos antes lhe parecera um ponto intermediário no caminho para algum lugar melhor, havia acabado por se solidificar ao redor de Sasha, ganhando massa e peso, até ela se sentir ao mesmo tempo atolada ali e sortuda por estar naquele lugar – como se não apenas fosse incapaz de se mexer, mas também não quisesse fazê-lo.” (p. 19)

– Nada mais triste que uma situação que você aceita, por ser provisória, virar sua prisão perpétua.

 

Acessórios musicais

“Ted refletiu sobre a questão enquanto tomava três expressos no saguão do hotel, deixando a cafeína e a vodca se cumprimentarem em seu cérebro como dois peixes de briga.” (p. 200)

– Gosto particularmente de Jennifer ter escolhido “peixes” em vez de galos, ou cães ou qualquer outro bicho. Afinal, o conteúdo do estômago é mais ou menos líquido, não é?

“ – Tem um problema no cabelo de seu filhos – dissera Stu.

– Problema?

Stu levou Bennie até a cadeira em que Chris estava sentado e afastou os cabelos do meninos para expor alguns  insetos marrons do tamanho de sementinhas de papoula passeando por seu couro cabeludo. Bennie achou que fosse desmaiar.

– Piolho – sussurrou o barbeiro. – Eles pegam na escola.

– Mas ele estuda em uma escola particular! – disparou Bennie. – Em Crandale, Nova York!

Os olhos de Chris haviam se arregalado de medo.

– O que foi, pai?

Outras pessoas já os encaravam, e Bennie, com sua própria cabeleira desgrenhada, havia se sentido responsável a tal ponto que até hoje borrifava OFF! nas axilas todos os dias de manhã e guardava um frasco extra no escritório – uma loucura! Ele sabia que era!” (p. 35)

Assisti uma entrevista com Jennifer em que ela fala sobre essa coisa de caracterizar o personagem pelo fato de ele usar OFF! como desodorante, um repelente de insetos. Foi o que despertou meu interesse para ler o livro, além do capítulo escrito em power point.

“Numa coisa eu reparei: nenhum punk tem sardas. Punks sardentos não existem.” (p. 48)

“Até lá tenho minha coleira de cachorro e minha tinta verde para o cabelo, porque como é que alguém vai poder me chamar de ‘a menina sardenta’ enquanto meu cabelo for verde?” (p. 45)

– Que conclusão hilária! Hahaha, pois é: não vão chamá-la!

“Ela havia reparado em uma ou duas cabeças louras paradas junto à quadra para vê-la jogar, e sentira orgulho da própria diferença em comparação àquelas mulheres: cabelos escuros e curtos, a tatuagem de um polvo minoico abraçando a panturrilha com seus gordos anéis. Embora também fosse verdade que ela havia comprado um vestido de tênis especialmente para a aula, um vestido justinho e todo branco, com um short branco bem curto por baixo: era a primeira roupa branca de Stephanie em toda a sua vida adulta.” (p. 104)

– Repare na ordem, são todos acessórios musicais: café, álcool, cabelos coloridos, tatuagem, roupa preta.

 

Enquanto o tempo sorri

“Ela havia crescido. E tão irrefutável era essa idade adulta, tão exuberante o conjunto formado por seios, quadris e cintura levemente marcada, tão experiente o gesto de bater a cinza do cigarro, que Ted apreendeu essa mudança como se ela tivesse sido instantânea. Um milagre. Os cabelos da sobrinha já não eram tão ruivos como antes. Seu rosto era frágil, travesso, pálido o suficiente para absorver os matizes do mundo à sua volta – roxo, verde, rosa – como um rosto pintado por Lucian Freud.” (p. 191)

– Não tenho certeza se foi um elogio parecer uma pintura de Lucian Freud.

“Como Kitty é muito jovem e bem nutrida, muito protegida da crueldade alheia gratuita, ainda muito inconsciente de que chegará à meia-idade e acabará morrendo (possivelmente sozinha), como ainda não se decepcionou, apenas se espantou e espantou o mundo com suas realizações prematuras, a pele de Kitty – essa bolsa lisa, rechonchuda e docemente perfumada sobre a qual a vida registra nossos fracassos e nossa exaustão – é perfeita.” (p. 156)

– Adorei que ela tenha descrito a pele como uma bolsa lisa. Desconfio que apenas uma autora poderia se lembrar de falar da pele nesse momento.

“Seus ombros, à mostra no vestido branco de frente única, são pequenos, bronzeados e muito delicados, como dois filhotes de passarinho. Mas isso os faz parecer pouco atraentes, e eles eram incrivelmente atraentes! Quando digam ‘filhotes de passarinho’, quero dizer que eram tão atraentes (os ombros dela) que por um instante pude me imaginar separando todos aqueles ossinhos e chupando a carne deles um a um.” (p. 154)

– De longe, a descrição mais perversa sobre a beleza da juventude de todo o livro.

“Ao contrário de quando estava acordada, Lulu relaxou no abraço da mãe. Dolly sentiu uma gratidão irracional pelo general por ter lhes dado aquela cama única – era um luxo muito raro poder abraçar a filha e sentir o leve tremor das batidas de seu coração.” (p. 138)

– É tão bom quando os filhos são pequenos e podemos aninhá-los no colo.

“Mas a palavra agrava à pianista, que tinha quilômetros e mais quilômetros de cabelos louros brilhantes, além de (conforme havia deixado escapar) ter se formado em Harvard. Bennie acalentara um sonho audacioso de levá-la para a cama, de sentir aqueles cabelos deslizarem por seus ombros e por seu peito.” (p. 28)

– Eu sempre reparo quando um homem descreve uma mulher por atributos diferentes de bunda, peito, coxas e rosto.

“Dezessete anos, pegando carona. Ele estava dirigindo um Mercedes vermelho. Em 1979, isso pode ser o início de uma história emocionante, uma história em que tudo poderia acontecer. Hoje em dia é um prenúncio de tragédia.” (p. 82)

– Mãe, por favor, não me critique se insisto levar seu neto de carro até a escola a quatro quarteirões daqui. Os tempos são outros.

 

Paisagens

“O sul surge, ofuscante, girando agressivo e metálico em frente a seus olhos, ionizando a superfície do rio de modo que não se pode ver lá embaixo qualquer sinal de poluição ou impureza. O rio parece místico, bíblico.” (p. 179)

– “Ionizando”. Quanto não vale uma frase em que o verbo ionizar está ao lado de sol, hein?!

“A sala de Bennie era espetacular, e não digo isso no sentido dos skatistas adolescentes de hoje em dia – digo isso no sentido literal de antigamente. A mesa era gigantesca, oval e preta, com aquela superfície de aspecto molhado dos pianos mais caros que existem. A mesa me fez pensar em um rinque de patinação no gelo todo preto. Atrás dela havia apenas a vista – a cidade inteira se estendia aos nossos pés, como aquelas toalhas de camelôs cheias de relógios e cintos vagabundos e reluzentes.” (p. 93)

– Outra comparação milionária: toalhas de camelôs? Sérgio não disse que a moça escrevia ridiculamente bem?

“Olhei para a cidade lá embaixo. Sua extravagância me pareceu um desperdício, como o petróleo jorrando de dentro da terra ou alguma coisa preciosa que Bennie estivesse juntando para si e usando até o fim para ninguém mais poder pegar. Pensei: se eu tivesse uma vista como esta para olhar todos os dias, teria energia e inspiração para conquistar o mundo. O problema é que, quando você mais precisa de uma vista assim, ninguém lhe dá.” (p. 96)

– As pessoas tomam; isso mesmo, ninguém dá.

 

Fama e sucesso

“Enquanto nos acomodamos para comer, um pouco de teoria: o tratamento que o garçom dispensa a Kitty na verdade é uma espécie de sanduíche no qual o pão de baixo é a forma insana e ligeiramente exausta como ele em geral trata os clientes, o recheio é a forma insana e anormal como ele se comporta diante dessa meninas famosa de 19 anos e o pão de cima é a sua tentativa de conter e ocultar esse recheio com algum tipo de comportamento que pelo menos chegue perto da camada inferior de tédio e exaustão que é a sua norma. Da mesma forma, Kitty Jackson tem algum tipo de pão de baixo que é supostamente ‘ela própria’ ou a forma como Kitty Jackson se comportava antes, no subúrbio de Des Moines em que foi criada, como andava de bicicleta, frequentava festas de formatura, torava notas razoáveis na escola e, o mais intrigante de tudo, praticava salto equestre, conquistando assim uma quantidade substancial de fitas e troféus e, pelo menos por um tempo, acalentando o sonho de virar jóquei. Por cima disso há a sua reação extraordinária e possivelmente um pouco psicótica à fama recente – o recheio do sanduíche – , e no topo de tudo a própria tentativa de imitar a primeira camada com uma simulação de seu eu normal, ou anterior.” (p. 150)

– Ok, é meio longo de ler, mesmo no meio do livro, mas não deixa de ser interessante… e chato! O narrador é um jornalista e o cara é um mala!

“ ‘O general pensava que a sua remuneração fosse ser mais alta’, disse ele, e se Dolly tivesse conseguido falar nessa hora, teria respondido: Essa é a minha remuneração semanal, hombre, não mensal, ou Eu ainda não lhe dei a fórmula para calcular o preço real, ou Isso é só para o período de experiência de duas semanas até eu decidir se quero trabalhar com vocês. Mas Dolly não conseguiu dizer nada.” (p. 125)

– Meninas, fiz questão de transcrever esse parágrafo porque a primeira e a terceira respostas são excelentes e vocês também devem estar se perguntando por que nunca tinham pensado nelas antes. Anotem.

“ (…) sentiu por sua assistente uma onda de gratidão e apreço, em contraste com a raiva assassina que lhe despertava o resto de sua equipe.” (p. 31)

– Mais do que comum, odiar aqueles que estão na sua folha de pagamento.

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro (C) 2013

 

EGAN, Jennifer. A visita cruel do tempo. Tradução de Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, edição digital.

Conheça também o conto Caixa Preta, que Jennifer Egan escreveu para o Twitter em 2012.

 

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