Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crítica literária > A Pele de Onagro – Honoré de Balzac
Sessenta anos separam o lançamento de A Pele de Onagro (1831) de O Retrato de Dorian Gray (1891), mas ambos foram escritos quando seus autores navegavam pela casa dos 30 anos de idade. Se no século XXI as pessoas já ficam desesperadas se não obtiverem sucesso até os 40 anos, imagine no século XIX, quando a expectativa de vida era bem menor. Talvez por isso, Balzac (1799-1850, França) – o autor do primeiro romance – e Oscar Wilde (1854-1900, Irlanda) – autor do segundo – , devam ter ficado excitados com a possibilidade de um objeto mágico conferir poder e juventude. É o que fazem o pedaço de pele de um asno e um retrato: estendem as possibilidades da vida, mas a um alto preço.
Sempre considerei as duas histórias juntas, embora recaiam muito mais críticas favoráveis sobre o livro de Wilde. As pessoas têm uma má vontade incrível com Balzac, não entendo por quê. A Pele de Onagro é formidável, um romance que fala das obsessões do escritor: sucesso na carreira literária, fortuna e o amor de uma dama da nobreza à custa da inocência. Na história, encontramos Raphael de Valentin prestes a se suicidar: não tem nenhum tostão para alimentar o amor de uma mulher da sociedade, Fédora. Então Raphael é socorrido pelo dono de um antiquário, que lhe dá o pedaço da pele de um asno com a promessa de que ela atenderá cada desejo seu, mas ao preço de encurtar de tamanho e a duração da vida de quem a possuir. Evidentemente, as coisas se desenrolam pro pior: Raphael fica rico; um amigo interesseiro, Rastignac, trata de se aproveitar da situação; e Raphael encontra o amor, mas apenas quando já é tarde.
Parece um enredo banal; entretanto, as descrições do caráter das pessoas e das circunstâncias corruptíveis da vida são o que há de melhor na literatura, ainda que Flaubert tenha dito, a respeito de Balzac, que “homem ele teria sido se soubesse escrever”. Não macaqueie Flaubert – que era um gênio, ok – ; vá tirar a prova por si mesmo. Confira alguns trechos que selecionei como aperitivo e depois leia o livro todo.
Paris
“[Paris], à semelhança de uma mulher bonita, é sujeita a inexplicáveis caprichos de beleza e feiúra.” (p. 20)
– No interessante livro A História Secreta de Paris, Andrew Hussey conta como uma geração inteira de românticos deixou de chamar Paris pelo feminino e passou a chamá-la no masculino. Paris passou a ser chamada de “ele” quando a burguesia finalmente ascendeu. Com Napoleão I, a mudança já estava consolidada. Balzac é das antigas, suspirava pela restauração da monarquia, por isso sempre chamou Paris de “ela.
Ambição
“Dois verbos exprimem todas as formas que assumem essas duas causas da morte: QUERER e PODER. Entre esses dois termos da ação humana, existe uma outra fórmula da qual se apoderam os sábios, e eu lhe devo a ventura e a longevidade. Querer nos queima e poder nos destrói: mas SABER deixa nossa frágil organização em permanente estado de calma.” (p. 39)
– Balzac-budista.
“SE ME POSSUÍRES, POSSUÍRAS TUDO. MAS
TUA VIDA ME PERTENCERÁ. DEUS QUIS
ASSIM. DESEJA, E TEUS DESEJOS
SERÃO CUMPRIDOS. MAS REGULA
TUAS ASPIRAÇÕES NA VIDA.
ELA ESTÁ AQUI. A CADA
DESEJO DIMINUIREI
COMO TEUS DIAS.
QUERES-ME. TOMA.
DEUS TE HÁ DE
ACOLHER. ASSIM
SEJA.” (P. 38)
– Acima está a inscrição na pele de onagro que Raphael ganha do antiquarista. É um funil porque Deus assim quis.
“Pois, afinal de contas, a liberdade dá à luz a anarquia, a anarquia conduz ao despostismo, e o despotismo leva à liberdade. Milhões de criaturas pereceram sem ter podido fazer triunfar nenhum desses sistemas. Não é mesmo o círculo vicioso no qual há de girar sempre o mundo moral? Quando o homem julga haver aperfeiçoado, não faz mais que deslocar as coisas.” (p. 56)
– Parafraseio o trecho: “A direita dá à luz a esquerda, a esquerda conduz à decepção, e a decepção leva à direita.”
“O despotismo faz ilegalmente grandes coisas, a liberdade nem sequer se dá o trabalho de fazer legalmente as mais insignificantes.” (p. 59)
– Balzac é reacionário, mas constata cada coisa, hein?!
“Não duvidei nem um momento de minha boa saúde. Aliás, o pobre só deve deitar-se para morrer.” (p. 94)
– A frase me rendeu a risada mais policitamente incorreta de todo o romance. Cruz credo! Trabalhe-se, trabalhe-se de sol a fio.
“Os ricos não querem espantar-se de coisa alguma, precisam reconhecer ao primeiro olhar de uma obra o defeito que os dispensará da admiração, sentimento vulgar.” (p. 194)
– Quando eu era menina, ouvia muito a expressão “épater le bourgois”. Acho que hoje caiu em desuso.
Pecados
“ (…) pois o mal talvez seja apenas um violento prazer. Quem poderia determinar o ponto em que a volúpia se torna um mal e aquele em que o mal é ainda volúpia?” (p. 41)
– É uma perspectiva interessante, pelo menos bem melhor que a negação de todo o prazer.
“Quando o despotismo está nas leis, a liberdade se acha nos costumes, e vice-versa.”(p. 57)
– Achamos muito interessante ouvir esse tipo de reflexão na boca de um Umberto Eco, mas Balzac já a tinha feito dois séculos antes.
“Talvez não odiemos a severidade, quando ela se justifica por um grande caráter, costumes puros, e é habilmente entremeada de bondade.” (p. 80)
– Com certeza não é a descrição do pai de Eugênia Grandet.
“Além do mais, eu não sabia falar calando-me, nem calar falando.” (p. 89)
– Claro, são habilidades incompatíveis: a primeira é de caráter diplomático; a segunda é truculenta. Tinha que nascer o século XXI no Brasil para elas coexistirem numa mesma classe de políticos.
“Nunca nos falta dinheiro para os novos caprichos, só discutimos os preços das coisas úteis ou necessárias.” (p. 107)
– Como não amar esse escritor que previu a tendência de marketing da autoindulgência?
“Um homem sem paixão e sem dinheiro conserva o domínio de sua pessoa; mas um desgraçado que ama já não se pertence mais e nem pode matar-se.” (p. 126)
– Uma vez vi o cartaz de um curso: “Restrição calórica – a única dieta comprovada da longevidade”.
“Um homem não é inteiramente miserável quando é supersticioso. Uma superstição é muitas vezes uma esperança.” (p. 141)
– Frase genial. Guarde-a, ela lhe trará sorte quando for citada.
Ah, as mulheres.
“As mulheres estão habituadas, não sei devido a qual inclinação de espírito, a ver num homem de talento exclusivamente os seus defeitos, e num tolo apenas as suas qualidades; têm muita simpatia pelas qualidades do tolo, que são uma lisonja permanente a seus próprios defeitos, ao passo que o homem superior não lhes oferece prazeres suficientes para compensar suas imperfeições.” (p. 91-92)
– Hahaha, gentem! Balzac era muito fino. Nunca tinha visto alguém explicar de maneira tão gentil o desejo feminino por Ricardões.
“Os padres, os magistrados e as mulheres nunca se despojam inteiramente de suas roupas.” (p. 119)
– É a armadura que lhes cabe.
revisto por Mayra Corrêa e Castro (C) 2012
BALZAC, Honoré de. A pele de onagro. Trad. Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.