Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > filosofia > A crise da narração – Byung-Chul Han
A depender de como você enxerga o fenômeno narrativo, ele poderá estar em crise – como postula o filósofo sul-coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han – ou estará vivendo seu apogeu nesta era da pós-verdade. Afinal, sempre ouvimos que a substituição de fatos por narrativas está destruindo a verdade.
A hipótese do filósofo parte de uma constatação que me lembrou a mesma da qual partiu a linguista Maryanne Wolf para apontar prejuízos modernos ao hábito da leitura: o fato dela estar contaminada pelo fragmentário, algo que esta autora chama de “leituras espasmódicas”. Mas Byung fala em narração no sentido amplo: o de contar. O de contar, este ato mesmo por trás do storytelling, fórmula vale-tudo do marketing e da publicidade e que, justamente por ter se tornado mainstream, aponta para sua disfunção.
Esse livro é rápido de ler. Talvez rápido demais. Fiquei com gostinho de ter lido um texto que foi escrito como aqueles cortes que surgem em longos podcasts, só com as melhores partes – e isso não é um elogio. Esse estilo de escrever, de todo modo, parece ter contaminado os ensaios de filósofos que têm alcançado o grande público, como o Pondé aqui no Brasil: um ensaio curto, em que o poder também vem de sua brevidade, como se longas reflexões pudessem diluir a dopamina que nos empurra uma palavra à frente. De um modo geral, é um livro que não me cativou: acho que há mistura de conceitos (que pode ser um problema da tradução, aliás), acho que o capítulo Comunidades narrativas dá uma forçada de barra nos entrelaçamentos entre neoliberalismo, identitarismo e narração, sem considerar que as comunidades narrativas do passado – que o autor exalta – também se constituíram em sociedades escravocratas, patriarcais, aristocráticas. Então, achei esse capítulo um arremate capenga pra um livro meio apressado. A leitura deste Byung-Chul me lembrou Gilles Lipovestky, de como ele foi espetacular em O Império do Efêmero (1989) e depois, em A Estetização do Mundo (2013), ficou escrevendo como se fossem tweets pra serem repostados.
Abaixo estão as melhores partes.
Espasmos de sentido
“Em meio a um barulhento storytelling, há um vácuo narrativo que se manifesta como um vazio de sentido e como desorientação.” (posição 57)
– A brevidade do storytelling em redes sociais certamente contribuiu pra este vazio, mas eu tendo a achar que a quantidade de sentidos proposta é que traz o vazio.
“As narrações criam uma comunidade. O storytelling, por sua vez, só cria uma community na forma de mercadoria. A community é formada por consumidores. Nenhum storytelling seria capaz de reacender a fogueira em torno da qual as pessoas se reúnem e narram histórias umas às outras.” (posição 81)
– Reacender a fogueira, até reacende, mas pra jogar pessoas lá dentro. Estou pensando na prática do cancelamento.
“Pelo contrário, o storytelling representa um fenômeno patológico do presente.” (posição 108)
– Assim como a espetacularização.
“A crise narrativa da modernidade se deve ao fato de que o mundo está inundado de informações.” (posição 150)
– Arrá! Ób-vi-o.
“A informatização da realidade conduz à atrofia da experiência da presença imediata.” (posição 210)
– Nada parece tão sintomático dessa atrofia quanto o sucesso de algo que se chama mindfullness.
“Um século depois de {Walter} Benjamin, a informação está se desenvolvendo como uma nova forma de ser; na verdade, como uma nova forma de dominação. Em conjunto com o neoliberalismo, está se estabelecendo um regime de informação que não é repressivo, mas sedutor. Ele assume uma forma inteligente [smart]. Ele não opera com mandamentos ou proibições. Não nos impõe o silêncio.
(…)
“A liberdade não é suprimida, mas completamente explorada.” (posição 210)
– Quem diria que a forma mais aperfeiçoada de dominação seria fazer o outro querer ser dominado, não?
“A sociedade está ficando cada vez mais pobre em experiências transmissíveis que correm da boca ao ouvido.” (posição 259)
– Na tradição hindu, a transmissão da boca ao ouvido se chama parampara, dita de “mestre a discípulo”. É uma relação que implica uma certa postura de serviço por parte do discípulo, e isso se tornou 100% mercantilizado. Ninguém mais acha que pode servir em troca de aprendizado – apenas em troca de dinheiro, mesmo.
“O Phono sapiens se rende ao momento (…)” (posição 433)
– Phono sapiens é a involução pra uma nova espécie.
“O Phono sapiens, que acredita estar apenas brincando, na verdade está sendo completamente explorado e controlado. O smartphone, como um playground, acaba se tornando um panóptico digital.“ (posição 459)
– Panóptico é um tipo de prisão na qual um consegue vigiar muitos.
“A qualidade dos dados é melhor quanto menos consciência eles contêm. Esses dados concedem acesso a essas esferas que se isentam de consciência. Eles permitem que as plataformas digitais examinem a pessoa e controlem seu comportamento em um nível pré-reflexivo.” (posição 459)
– Desde há muito as pesquisas de marketing do tipo quali são feitas numa sala com falsos espelhos, como os interrogatórios.
“A crise existencial da modernidade na forma de uma crise da narração é ocasionada pelo desmantelamento da vida e da narração. A crise é: “viver ou narrar”. A vida não parece mais ser narrável.” (posição 542)
– Então, antes, vivia-se na narrativa.
“A histeria em torno da saúde e da otimização só é possível em um mundo nu e vazio de sentido.” (posição 570)
– Como não concordar em gênero, número e grau.
“O mundo que pode ser explicado não pode ser narrado.” (posição 654)
– Parece mesmo, ainda mais porque as explicações retiram os vazios onde os sentidos são capazes de se aninhar.
“Os ‘stories’ nas redes sociais, que na verdade nada mais são do que representações de si mesmo, isolam as pessoas. Ao contrário das narrativas, eles não geram proximidade nem empatia. Em última instância, eles são informações visualmente embelezadas que tornam a desaparecer após um curto período. Eles não narram, mas anunciam. A busca por atenção não cria uma comunidade. Na época do storytelling como storyselling, narração e anúncio são indistinguíveis. Nisso consiste a presente crise da narração.” (posição 1078)
– O Instagram inteiro é um anúncio. Isso não é um defeito. Eu fui pro Instagram seguir os anúncios das marcas quando o Facebok parou de entregá-los. O problema é que no Instagram os anúncios viraram conteúdo e eu só queria ficar folheando catálogos.
Sentidos
“A religião é uma típica narração com um momento interno de verdade. Ela narra a contingência, evitando-a.” (posição 69)
– Continuando recomendando o livro Brand Sense de Martin Lindstrom pra quem quiser entender sobre como o marketing capturou a habilidade das religiões de darem significado ao nada.
“A narração é uma forma de desfecho. Ela constrói uma ordem fechada que cria significado e identidade. Na modernidade tardia, que se caracteriza pela abertura e pela dissolução de fronteiras, as formas de conclusão e de encerramento vão sendo cada vez mais demolidas.” (posição 81)
– Então o storytelling precisa ser um looping pra ser a degeneração da narração.
“Narração e informação são forças opostas. As informações intensificam a experiência da contingência, enquanto a narração a reduz, na medida em que transforma o acaso em necessidade.” (posição 94)
– Acho difícil que narrações criem sentido se se deitarem sobre temas sem importância. Por definição, todo discurso de marketing é sem importância porque tenta nos convencer a comprar algo que não iríamos comprar. (Você pode estar decidido a priori a comprar algo, mas aquela mercadoria em específico, se comprar, isso foi trabalho do marketing). Por isso é que tenho saudade de quando o marketing era apenas informação. Dar sentido ao que é irrelevante é coisa de masoquista.
“A informação é aditiva e cumulativa. Ela não é portadora de sentido, enquanto a narração, por sua vez, transporta o sentido. Originariamente, sentido significa direção. Estamos hoje, portanto, muito bem-informados, mas desorientados.” (posição 94)
– O que corrobora meu sentimento de que o excesso é que desorienta, e não o modo a informação em si. Sentir-se desorientado quando há pouca informação me parece que ocorre apenas quando a informação parece flagrantemente uma mentira.
“Narrações geralmente possuem margens de milagre e de mistério.” (posição 150)
– Que é onde o sentido se aninha.
“A modernidade é animada por uma crença no progresso, pela ênfase na ruptura, na reordenação e no começar de novo, pelo espírito da revolução.” (posição 320)
– Então, quem ainda for moderno está preso ao passado.
“A memória humana faz escolhas. Nesse aspecto, ela se diferencia de um banco de dados. Nossa memória é narrativa, enquanto o armazenamento digital é aditivo e cumulativo. A narração se baseia na seleção e na vinculação de acontecimentos. Ela é seletiva.” (posição 446)
– Acho que foi no documentário What´s next: the future with Bill Gates que ouvi uma ideia interessante: a de que a Inteligência Artificial não é uma inteligência melhor que a humana, mas diferente e que o futuro é onde co-existirão tipos de inteligências. Me pareceu sensato também, porque já convivemos com tipos diferentes de inteligência, como a de animais, plantas, microrganismos.
“As plataformas digitais, ao contrário, estão interessadas em um registro completo da vida.” (posição 446)
– O curioso é pensar que esse registro é editado.
“A narração de histórias cura, na medida em que proporciona um profundo relaxamento e cria um senso de confiança básica. A voz plena e amável da mãe acalma a criança, acaricia sua alma, fortalece o vínculo e lhe dá apoio. Além disso, as narrativas das histórias infantis falam de um mundo intacto. Elas transformam o mundo em um lar familiar. Além disso, um de seus modelos básicos é a superação feliz de uma crise. Dessa forma, elas ajudam a criança a superar sua doença enquanto crise.” (posição 1009)
– E não é a mãe hippie da escolinha Waldorf que tá dizendo.
Gestos
“O ato de digitar ou deslizar não é um gesto narrativo.” (posição 108)
– Sequer é elegante.
“O tédio é ‘o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência(…)’.” (posição 177)
– A frase entre aspas simples é de Walter Benjamin.
“Narrar e escutar atentamente histórias se condicionam mutuamente.” (posição 195)
– Não vejo como não ser assim. Então, se a narração já não estivesse morta pelo excesso de informação, estaria morta pela dificuldade de atenção que esse excesso provocou.
“Quem escuta atentamente, esquece de si mesmo e se afunda naquilo que escuta (…)” (posição 195)
– Quem lê, idem.
“Facticidade e narratividade são mutuamente excludentes.” (posição 679)
– E essa afirmação se torna correta mesmo no conceito atual que damos a narrativas.
“A compulsão pela atualização desestabiliza a vida.” (posição 336)
– Não só a vida: nem o celular dá conta.
“A crise de hoje não é mais viver ou narrar, mas viver ou postar. Similarmente, a obsessão por selfies não pode ser atribuída ao narcisismo. É muito mais o vazio interior que leva à obsessão por selfies.” (posição 584)
– Cinicamente, a gente poderia dizer que a câmera frontal é que nos tornou obcecados por selfies, mas a realidade é que a gente já virava a câmera pra tirar foto da gente mesmo, torcendo para acertar o enquadramento. Sempre achei que o meio é a mensagem, mas tem horas que a mensagem cria o meio.
“A época pós-narrativa é uma época sem interioridade. A informação vira tudo do avesso. Em vez da interioridade de um narrador, temos a vigilância de um caçador de informações.” (posição 627)
– Eu não sei se há uma contradição aqui, porque Byung já disse que o romance matou a narração que romance é o interior do romancista…
“Gershom Scholem conclui seu livro sobre o misticismo judaico com uma história hassídica:
‘Quando Baal Shem Tov tinha algo difícil para fazer, alguma obra para o benefício das criaturas, ele ia para um determinado lugar na floresta, acendia um fogo e, absorto em meditação, orava. – E tudo o que ele empreendia acontecia tal como ele havia planejado. Uma geração mais tarde, quando Maguid de Mezeritch se deparou com um grande empreendimento, ele foi até aquele local no bosque e disse: “não sabemos mais acender o fogo, mas podemos fazer as orações”. – E depois de fazê-las, tudo correu de acordo com seu plano. Outra geração mais tarde, o rabino Moshe Leib de Sassov estava para realizar um grande feito. Lá, ele disse: “não sabemos mais acender o fogo, nem conhecemos as meditações secretas que animam as orações. Mas conhecemos o lugar na floresta ao qual tudo isso pertence, e isso deve ser o suficiente”. – E, de fato, foi o suficiente. Quando, novamente uma geração mais tarde, o rabino Israel de Ruzhin se comprometeu a realizar uma grande obra, ele se sentou em uma cadeira em casa e disse: “não sabemos mais fazer o fogo, não podemos mais fazer as orações prescritas, não conhecemos mais o lugar na floresta, mas podemos ainda narrar a história de tudo isso”. – E a história, por si só, teve o mesmo efeito alcançado pelos outros três.’ “ (posição 753)
– Mesmo que imperfeita, a memória resgata.
“O desaparecimento do olhar anda de mãos dadas com a crescente narcisização da percepção. O narcisismo elimina o olhar, ou seja, o outro, em favor da imagem imaginária do espelho. O smartphone acelera a expulsão do outro.” (posição 878)
– Quando leio Balzac ou outros grande romancista do século XIX, sempre me impressiona a capacidade dos personagens de perceberem o outro – que nada mais é que a capacidade do romancista perceber as pessoas. Os livros, hoje, têm pouca percepção porque raramente são sobre os outros, mas sempre sobre si.
“Em vez disso, o consumo de séries é caracterizado pelo bindge-watching e pelo maratonar séries. O espectador é engordado como gado consumidor.” (posição 878)
– Nunca mais vamos conseguir maratonar sem esse acréscimo de culpa, de estarmos no pasto de engorda. (Obs.: bindge-watching é traduzido como maratonar séries: assistir compulsivamente.)
“Toda doença revela um bloqueio interno que pode ser removido por meio do ritmo da narração.” (posição 1009)
– Essa é a hipótese da terapia pela fala.
” [Walter] Benjamin ressalta que a narrativa que a pessoa doente faz ao médico no início do tratamento já dá início ao processo de cura.
“Freud também entende a dor como um sintoma que indica um bloqueio na história de uma pessoa. A pessoa é incapaz de continuar sua história. Os transtornos psíquicos são expressões de uma narrativa bloqueada. A cura consiste em liberar o paciente desse bloqueio narrativo, em verbalizar o não-narrável. O paciente é curado no momento em que ele se narra mais livremente.” (posição 1021)
“Elas [as preocupações] se liquefazem no fluxo narrativo em vez de endurecerem em um bloqueio mental.” (posição 1036)
“Também os médicos já quase não narram mais. Eles não têm tempo nem paciência para escutar. A lógica da eficiência não é compatível com o espírito da narração.” (posição 1036)
– Li no jornal que um dos cursos mais procurados como 2ª graduação é Psicologia. Não fiquei exatamente surpresa, mas curiosa de aventar as razões: todas as áreas hoje ressaltam a importância de saber lidar com gente; a clínica permite que se tenha um trabalho flexível, que se torna importante depois dos 30-35 anos quando se tem filhos; o povo doente, em algum momento, descobre que se não consertar a cabeça não conserta o corpo; a prevalência dos diagnósticos em saúde mental. Se o campo da psicologia for o campo da saúde onde se narra, explica-se o aumento da procura usando a hipótese do Byung. Comentando agora a última citação acima, se a lógica da eficiência não é compatível com o espírito da narração, significaria que a narração não é eficiente? Bom, é claro que o autor usa eficiência no sentido de produtividade, então fica a dúvida se foi a tradução ou se ele queria realmente ter usado essa palavra. Mas como eficiência é carregado de sentido na medicina, é uma escolha que dá margem a interpretações.
Enumerar
“O Big Data, na verdade, não explica nada. Apenas revela correlações entre as coisas. Mas as correlações são a forma mais primitiva de conhecimento. Nada é compreendido nas correlações. O Big Data não é capaz de explicar por que as coisas se comportam da maneira como se comportam. Não são estabelecidas conexões causais nem conceituais. O ‘por que’ é completamente substituído pelo ‘isto-é-assim’ incompreensível.” (posição 916)
– Ainda assim, correlações são capazes de fazer estragos (estou pensando na Cambridge Analytica).
“Em seu ensaio The end of theory [o fim da teoria], Chris Anderson, editor-chefe da Wired, afirma que quantidades inimagináveis de dados tornariam as teorias completamente obsoletas (…)” (posição 916)
– Isso é pra ficar com medo, porque Anderson acertou sobre a cauda longa…
“A inteligência artificial funciona muito bem sem o conceito. Inteligência não é espírito.” (posiçao 928)
– Adoraria saber se Byung crê que inteligência pode ser uma propriedade emergente do cérebro humano porque, sendo, a IA poderá vir a ser inteligente.
“No instante em que a filosofia reivindica ser uma ciência, ser uma ciência exata, seu declínio começa. A filosofia como ciência renega seu caráter narrativo originário. Ela se priva de sua linguagem. Emudece.” (posição 982)
– Por favor, leia Por que a psicanálise?, de Elisabeth Roudinesco, já resenhado aqui e assista no You Tube a palestra do psicanalista Joel Birman intitulada Mal-estar na pós-modernidade (clique aqui).
Narrar
“A informação é o meio do repórter, que vasculha o mundo em busca de novidades. O narrador é sua contrafigura. O narrador não informa nem explica. A arte de narrar exige que as informações sejam retidas: ‘metade da arte narrativa está em evitar explicações’. As informações retidas, isto é, as explicações evitadas, aumentam a tensão narrativa.” (posição 134)
– Este livro coloca palavras no itálico o tempo todo (como as citações estão em itálico aqui, coloco-as em redondo). Nunca gostei muito de poesia concreta. Nem da prosa.
“A aura é narrativa porque está impregnada de distância.” (posição 134)
– Quem tem catarata narra fácil, então.
“Explicação e narração são mutuamente excludentes (…)” (posição 150)
– Isso é interessante.
“Enquanto a narração é formadora de uma comunidade, a gênese do romance está no indivíduo em sua solidão e isolamento. Ao contrário do romance, que psicologiza e realiza interpretações, a narração procede de maneira descritiva: ‘o extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor’.” (posição 177)
– O romance moderno, diga-se.
“O narrador é alguém que, segundo [Walter] Benjamin, ‘sabe dar conselhos’. O conselho não promete uma solução para o problema. Ele é muito mais uma sugestão de como continuar uma história.“ (posição 259)
– Adorei essa definição, principalmente porque ela tira o peso da responsabilidade.
“Em contraste com a modernidade e com suas narrativas do futuro e do progresso, com seu anseio por uma forma de vida diferente, a modernidade tardia não tem mais o páthos revolucionário de uma nova ordem ou de um começar de novo. Falta-lhe qualquer espírito de ruptura.” (posição 336)
– Podemos então dizer que a modernidade tardia está apenas continuando uma história? (Tá, eu tô sendo chata.)
“A felicidade não é um acontecimento pontual. Ela tem uma longa cauda que se estende até o passado. Ela se alimenta de tudo o que foi vivido. A forma de sua aparição não é o brilho, mas o pós-brilho.” (posição 375)
– Acho melancólica a imagem do pós-brilho, mas concordo que na felicidade não cabe excitação.
“A recordação não é uma repetição mecânica do que foi vivenciado, mas uma narração que deve ser novamente narrada várias vezes. As recordações são necessariamente falhas. Elas pressupõem proximidade e distância. Se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação desaparece. Uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro. Quem quiser narrar ou recordar, precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa.”(posição 486)
– Uma edição intencional não produz o mesmo efeito, então, que a edição da memória é capaz de produzir.
“Somente a narração de histórias eleva a vida para além de sua pura facticidade, para além de sua nudez. A narração consiste em dar ao tempo um curso significativo, um começo e um fim. Sem narração, a vida é meramente aditiva (…)” (posição 527)
– Precisamos voltar às escolas Waldorf.
“Narrar exige ócio. Em uma comunicação acelerada, não temos tempo nem paciência para narrar. Apenas informações são trocadas.” (posição 616)
– Olhe que vou dizer que tempo até teríamos… mas paciência…
“Narrar é um jogo de luz e sombra, do visível e invisível, da proximidade e distância.” (posição 737)
– Por isso que nenhum dicionário é capaz de narrar nada.
“Em Sigmund Freud é possível ver com clareza que teoria é narração. Sua psicanálise é uma narração que oferece um modelo explicativo para nosso aparato psíquico.” (posição 928)
– E por isso irrita tanto a moçadinha porque, afinal, como uma narração pode ser tão ou mais influente que a ciência, não é mesmo?
“A cura supostamente ocorre quando os pacientes concordam com a narrativa que lhes é oferecida.” (posição 928)
– Parece que sim. Mas o que a Psicologia Cognitiva oferece é a possibilidade de mudar os circuitos para que não se gastem tantas tentativas buscando a narrativa que fará sentido.
“Não temos mais coragem para a filosofia, coragem para a teoria, isto é, coragem para a narração. Devemos estar cientes de que o pensamento é, em última análise, ele próprio uma narrativa, que ele procede em etapas narrativas.” (posição 982)
– Ou seja, perdemos a coragem de pensar…
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2025
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Tradução de Daniel Guilhermino. E-book. Petrópolis: Editora Vozes, 2023.