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Caderno de um ausente – João Anzanello Carrascoza

Postado às 02:42 do dia 11/06/14

Definitivamente uma voz nova no Carrascoza. A história, poderia dizer, foi iniciada no conto O primeiro dia do último inverno (2014), em que o autor fala das férias de um homem bem mais velho com a mulher bem mais nova. Em Caderno de um ausente, revemos o casal, agora com nomes e uma bebezinha de colo: ela é Beatriz, o pai é João, a mãe é Juliana. Então o pai, valendo-se da lógica da matemática, abre o livro explicando à filha recém-nascida que ela viverá muito mais sem ele que com ele. A narrativa ganha tom de carta-testamento, escrita durante o primeiro ano de vida dela, contando-lhe como foi seu parto, de risco, e como foi a recuperação da mãe. O espectro da morte está em todo o livro, embora ele celebre um nascimento. Certo da própria ausência no futuro da filha, o pai trata de colocá-la dentro de uma história – a dele e de seus ancestrais. Enquanto o pai insere a menina numa história, para a preparar pra vida, o autor retira da história a vida, para a qual nunca se está preparado.

Não estar preparado para o que a vida traz é mote constante na obra de João. Já falei neste blog de como ele usa os pressentimentos para marcar o rumo de seus textos, quando o personagem pressente que algo mudará. O leitor, ao reconhecer essas marcações, identifica-se e sofre por antecipação. Neste segundo romance, por outro lado, as marcações estão apagadas. Não se sabe se as coisas mudarão. Melhor dizendo: não é que as marcações estejam apagadas, é que elas estão ofuscadas pela certeza absoluta de que o tempo de vida comum entre pai e filha será curto. De Carrascoza dizem que ele escreve sobre o silêncio, mas neste livro ele escreve sobre a cegueira: a força do óbvio obliterando o imprevisível.

Estilisticamente, as melhores qualidade do verso do autor estão no livro: a ourivessaria de palavras, a reflexão poética, a dicção em fôlegos, as metáforas elegantes, a lírica sincera, as preposições ressignificantes, a pontuação transparente. Também está lá a marca da editora Cosac Naify: livro em formato não-padrão, folhas coloridas, grafismos em vez de palavras. Do romance Aos 7 e aos 40 (2013) para este, o leitor reconhecerá o que tem em mãos. Mas se surpreenderá com a falta de controle, não o controle do texto – imagina, João é mestre em controlar cada caractere digitado – , mas o controle do assombro. Em Caderno de um ausente, não é ir e vir – o devir – que surpreende, mas o ficar.

 

Abaixo selecionei algumas passagens que me tocaram na leitura. Espero que goste. Eu acho que o livro vai ganhar prêmio ano que vem. Nós temos o Tezza e seu O Filho Eterno. Apesar de ser o livro sensacional que é, criou uma lacuna, a da maternidade. Afinal, fora a menção à mãe na primeira cena no hospital, trata-se da relação entre o pai e o filho. Agora temos João e sua filha. Faltava esta história ser contada. E se a maternidade tinha tudo para ser novamente lacuna, não foi. De certa maneira, Felipe dá vida apenas a um pai; Beatriz mantém viva uma família. Vai ganhar prêmio.

 

 

“Eu ia te ensinar como desviar das trilhas tortas que vão se colar na sola de tuas sandálias […]” (p. 32)

– É de uma delicadeza tão comovente ele usar a palavra sandálias. É um pai atento ao fato de ter um filha, não filho, filha.

“[…] a tua mãe, veja ela aqui, não na foto em si – tirada há dois anos, na qual estou sozinho, na formatura de uns alunos – , mas em mim, veja, ela já estava nos meus olhos […]” (p. 45)

– Putz grila! Se você não tiver nada pra dar pra sua namorada no dia 12, dê essa frase. Aliás, esquece: não procure presente nenhum: dê-lhe apenas esssa frase.

“[…] ela te mostrará os parentes do outro lado, com mais vagar e ternura, te apontando aqueles que fizeram cortes na terra e aqueles que se machucaram de cidades […]” (p. 46)

– “se machucaram de cidades”… não me aguento com essas lindezas que João cria quando manipula preposições.

“[…] não há caminhos que o mal não conheça, é o alvo que se compadece da bala perdida e conserta sua rota, atraindo-a para o próprio coração […] (p. 55)

– Sabe dor? Dói, né?

“[…] e já que aqui estamos, quem sabe possamos aprender com as aves a conter no corpo o horizonte […]” (p. 51)

“[…] acriançaremos novamente […]” (p. 49)

“[…] vou me repovoar de perdão […]” (p. 52)

“[…] não há como te esterilizar do passado […]” (p. 53)

“[…] porque a  memória (o passado) só se revigora se a formulamos de novo (no presente), retocando a luz de sua trama com o grafite das trevas […]” (p. 53)

“[…] porque a vida é oceano e a memória, lago […]” (p. 71)

“[…] não há como secar em nós o licor da história familiar […]” (p. 91)

– Não tenho comentários pra essas frases. É ouvir e fruir, ouvir e fruir.

“[…] ela é quem inaugura a manhã em meus ouvidos, a voz que tu escutas desde embrião […]” (p. 81)

“[…] a tua mãe que se enrola num desbotado roupão pela manhã, os olhos gordos de sono, os cabelos trançados pelo travesseiro […]” (p. 86)

– Que lindooo: não é embaraçado, é trançado. Não é a primeira voz que ele ouve, mas a que inaugura a manhã.

“[…] porque só escrevemos sobre aquilo que se encravou em nossa memória […]” (p. 94)

“[…] era uma vez uma princesa, era uma vez uma bruxa, era uma vez um gato, assim eu gostaria de começar, mas eu só sei mexer com a tinta fresca da verdade […]” (p. 56)

– Já li/ouvi mais de uma vez João comentar que só sabe contar as histórias que estão dentro dele (quando criticam-no que ele só fala das mesmas coisas).

“[…] então, eu te miro em silêncio, apenas um pai que chega do trabalho e assiste na obscuridade de um quarto o sono de sua filha, que captura a vida sendo gasta de forma desigual – rápida pra mim, vagarosa pra ti […]” (p. 59)

– A gente planeja tanto pra ter filho, então vem os filhos e desplanejam tudo.

“[eis nós dois, ao teu redor, nem te vigiando, nem te velando, apenas te vendo viver, como nós mesmos o fazemos; eis os braços, únicos, que podem te acolher e recolher sem nenhuma exigência em troca, eis o teu pai e a tua mãe, Bia, um de cada lado do teu berço, em torno do qual não há reis magos com prendas […]” (p. 60)

– João já tinha visitado o tema da manjedoura em outro momento.

“[…] é pra enrubescer a nossa face que o sangue corre, Bia, o presente, valoroso, só vem à tona, se temos coragem de mergulhar na ninharia do instante.” (p. 61)

– Isso é bem aquela coisa do poder do agora, é bem budista.

“[…] porque a equação é simples, Bia, vida menos poesia igual vazio, pássaro menos canto igual angústia, você menos eu igual futuro.” (p. 71)

– Em Aos 7 e aos 40 tem uma cena de um pássaro que se recusa cantar que fica ecoando aqui.

“[…] a pele não é profundidade mas extensão, a pele não é como o mar, sem margem, os lados indefinidos – o mar é mais mar onde só alcançam os escafandristas, quanto mais dentro dele mais o mar é o que é[…]” (p. 76)

– Acho tudo perfeito nessa frase, o jeito que começa, o jeito que termina e até o escafandristas.

“e, se um homem pode dormir salgado de mar e pela manhã se descobrir guardador de rebanho, e se um outro acordou inseto na mente de um escritor, e se dos dedos de uma pintora floresceu um abaporu, e se numa tela móvel irromperam formigas e um cão andaluz, e se campos e ramos e rosas pariram territórios imaginários, tu pode amanhecer tristeza, entardecer esperança e anoitecer sol […]” (p. 79)

“[…] as palavras que, nem toda vez, senão em horas raras, têm o poder de dar a janeiro o que é de agosto […]” (p. 98-99)

– Aquela coisa da arte libertar a vida.

“[…] e eu já lembro de uma noite em que te contorcias sem parar e te esgoelavas, como se um cobra serpenteasse dentro de tua barriga, e eu e tua mãe corremos pra minimizar a tua briga contigo mesma, porque não era mal nenhum que queimava as tuas entranhas, era apenas o ar da vida que em ti se debatia […]” (p. 96)

– Eu poderia falar tantas coisas desse livro, mas o espaço exige um recorte específico. Entretanto, quero só citar que uma das qualidades dessa narrativa é tirar o recém-nascido do espetacular, trazê-lo pro natural, que é crescer, padecer, viver. Jo Rowling, numa das declarações sobre porque não poupava seus leitores crianças das cenas violentas e das mortes, disse que se trata de crianças, e não de adultos amedrontados. As crianças têm tanta capacidade de sentir quanto adultos, apenas não sabem descrever. Se descrevermos pra elas, será mais fácil. Foi mais ou menos algo assim que ela disse.

“[…] o silêncio é a nossa língua mãe, mas nós desaprendemos a sua linguagem […]” (p. 110)

“[…] se eu pudesse, eu te ensinava todo o abecedário do silêncio antes da fala […]” (p. 111)

“[…] é no silêncio que um corpo clama pelo outro; só a máxima quietude em nós e na natureza nos permite decifrar o texto que está sendo escrito, Bia […]” (p. 112)

“[…] porque nasceu dele, do útero do silêncio vem o murmúrio, o gemido, o grito, o urro, todos os outros dialetos e até a babel das páginas em branco.” (p. 113)

“[…] é no silêncio que eu te inicio […], Bia, que eu te inicio em mim […]” (p. 114)

 

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro © 2014

 

CARRASCOZA, João Anzanello. Caderno de um ausente. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

 

 

Outros livros do autor resenhados aqui:

Dias Raros

Amores Mínimos

Aquela Água Toda

Aos 7 e aos 40

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