Casa Máy > Diário em Off - Posts > crônicas > Melhores Partes 6 – Leitura
Não haveria episódios suficientes pra eu comentar citações sobre leitura, sobre o hábito de ler, sobre o bibliofilismo – amor aos livros. Um dos livros recentes pra entender como a leitura de livros é importante ao cérebro humano é O Cérebro no Mundo Digital, de Maryanne Wolf, já resenhado no meu blog As Melhores Partes. Por isso, abro este episódio por uma citação retirada dele:
“A leitura profunda sempre tem a ver com conexão: conectar aquilo que sabemos com aquilo que lemos, aquilo que lemos com aquilo que sentimos, aquilo que sentimos com aquilo que pensamos, e o modo como pensamos com o modo como vivemos nossas vidas, num mundo conectado.” (Mais aqui.)
Talvez eu precise lembrar que, nos primórdios da world wide web, nada havia muito mais que textos e hiperlinks de textos pra LERMOS. Não se dava like, não se fazia upload de vídeos, fotos eram pesadas demais pra ser carregadas e tornavam um site lento; por isso, nós as usávamos com total parcimônia, mesmo porque precisávamos de um scanner pra tirá-las da sua materialidade revelada no papel fotográfico para a imaterialidade de um arquivo digital.
Ler é criar mundo internos. De forma impressionante, as pessoas não acham mais necessário ter uma dimensão interna em suas vidas, e vão colocando tudo pra fora e revelando tudo que põem pra fora em imagens e mais imagens. O fato de, supostamente, o Google nos responder a tudo de que precisarmos faz com que achemos que não precisemos mais aprender a perguntar – e isso faz com que só aprendamos o que já foi repetidamente perguntado. E perguntar tem muito a ver com conectar conteúdos internos, conteúdos que se formam por meio de uma palavra tão antiga quanto as pessoas que a cultivavam: erudição.
Não estou aqui dizendo que deveríamos voltar a falar latim e grego, ler apenas os clássicos, conhecer apenas a história canônica – não! Mas estou dizendo que há um aspecto da erudição – que é o aspecto de ter um repertório – do qual estamos abrindo mão por deixarmos de ler livros e texto longos, por nos mantermos nesta “leitura espasmódica” da internet da qual Maryanne Wolf fala.
Meus alunos, quando vêm à Casa Máy, impressionam-se com a quantidade de livros que tenho. Sempre preciso explicar que ali há tão poucos face ao tanto que já li. Quando fui pra faculdade, doei minha biblioteca juvenil; quando saí da faculdade, doei minha biblioteca de linguística e história; quando saí do marketing, doei minha biblioteca de marketing e moda; quando vim pro atual escritório da Casa Máy, doei 15 caixas de livros com títulos sobre yoga, vegetarianismo, filosofia hindu, astrologia e muitos e muitos livros de ficção simplesmente porque não tinha espaço pra ficar com eles. Hoje, tenho uma consciência amarga de que livros custam mais que seu preço de capa porque é preciso espaço pra guardá-los e espaço custa dinheiro.
Desfazer-se de um livro sempre é doloroso, porque sabemos que só reteremos dele o que nosso afeto sedimentou na memória. Quando faço esses episódios do Melhores Partes, reviso leituras de 8, 10 anos atrás – e me surpreendo de como não me lembro de quase nada. A pergunta então é se vale a pena ler, já que vamos esquecer do que lemos? A esta pergunta, respondo com outra: vale a pena viver se vamos esquecer de tantas coisas que vivemos?
Veja o que Alberto Manguel diz:
“Os visitantes costumam perguntar se li todos os meus livros; minha resposta costumeira é que com certeza abri cada um deles. O fato é que uma biblioteca, seja qual for seu tamanho, não precisa ser lida por inteiro para ser útil; todo leitor tira proveito de um sábio equilíbrio entre conhecimento e ignorância, lembrança e esquecimento.” (Mais aqui.)
Os livros que não lemos foram os livros que compramos por impulso? Tendo a achar que não. Há livro comprados por impulso que são lidos avidamente e nos transformam. Há livros que são encomendados e, apesar disso, mofam em uma estante, como se o fato de os termos comprado já tivesse suprido a necessidade de entender aquele caminho do conhecimento. Uma das coisas das quais tento me distanciar são dos algoritmos da Amazon. Acho uma tragédia conhecer livros que se parecem com os que já li ou que foram lidos por pessoas que têm o mesmo interesse que eu. Uma dos aspectos mais notáveis de livrarias é topar com obras que jamais nos interessariam, mas que, por um motivo ou outro, capturaram nossa atenção:
“Os livros passam a ser a presença real, e eu, o leitor, é que sou convocado e atraído para um certo volume e uma certa página por meio de rituais cabalísticos de letras entrevistas.” (Mais aqui.)
O que Manguel quer dizer é que os livros nos escolhem. Concordo muito com ele. Um algoritmo não nos escolhe: ele nos captura, nos sequestra. Por isso, me manterei frequentando livrarias por tanto tempo quanto elas existirem. E, se não mais existirem, criarei uma, da mesma forma quando, com 11 anos de idade, tornei os livros do meu quarto uma biblioteca pra amigos, com livro-registro e códigos nas lombadas e tudo o mais.
É um fato de minha biografia que, na segunda série, tornei-me a primeira secretária da biblioteca infantil de minha escola salesiana. A biblioteca fora montada num arquivo sob uma escadaria. As freiras acharam que seria interessante que um aluno pudesse ajudar a irmã-bibliotecária. Não me recordo se houve muitos candidatos, mas gosto de pensar que, tendo ganhado a vaga ou por mérito ou por WO, foi a primeira vez que os livros me escolheram.
Assista ao vídeo do Melhores Partes 6 – Leitura:
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2020
(Se compartilhar ou citar, mencione a fonte. É simpático e eu agradeço.)