Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoconhecimento > Tudo sobre o amor – Bell Hooks
Vinte e um anos separam a publicação deste livro nos Estados Unidos de sua tradução no Brasil. Talvez por isto ele tenha me dado tanto sono – nossa sensibilidade coletiva mudou. Como eu também o li com a mesma idade que sua autora tinha quando o escreveu, outra razão deve ser a existência de muita projeção pré-menopáusica, minha, na leitura. Este declínio hormonal e nossos cabelos brancos mexem um bocado com a gente.
Indiscutivelmente, a prosa é forte – embora, pro meu gosto, verborrágica; o conteúdo, planfletário – portanto, pro meu temperamento, enfadonho; e a proposta é utópica – consequentemente, pros meus interesses, perto de zero. Obviamente, esta resenha é escrita por uma mulher cis branca heterossexual de classe média urbana no Sul do Brasil. No mundo atual, isto é suficiente pra me desautorizar a qualquer crítica a mulheres negras, ainda que eu seja uma sul-americana de terceiro mundo e, a autora, uma estadunidense de primeiro… Ah, tudo hoje é muito interseccionado. O amor também é. Destrinchá-lo é a intenção de Hooks, porque ela se queixa de nunca terem falado sobre o amor como instrumento de transformação social. Embora eu entenda que o amor romântico seja uma forma pueril de falar de amor, porque ele descamba em um sem número de abusos, acreditar que qualquer coisa tenha potencial de construir uma nova sociedade me parece a coisa mais romântica da face da Terra. Por isto minha preguiça em ler o livro. Se o amor pudesse transformar o mundo, ele teria que ser repartido entre todos; contudo, se existe algo que se fala há milênios sobre o amor é que ele é egoísta. Mas talvez Hooks descobriu uma nova forma de amor, imune às imperfeições da raça humana. Uma pílula, quem sabe, alguma forma poderosa de citocina? Na farmacoterapia eu acredito bem.
Feito este preâmbulo, há passagens muito bem escritas, fluentes, fortes. Esta fluência e força nos fazem avançar rapidamente pelas páginas, mal percebendo a quantidade de palavras que percorremos a cada minuto. Isto é sedutor. Porém, depois de um tempo, a mim me cansou. Pensei muitas vezes, lendo o livro, que através do silêncio o amor poderia ser mais eloquente.
De toda forma, selecionei muitas citações boas de ler, bem como importantes do ponto de vista “do que queremos enquanto sociedade”. Seguem abaixo.
Filia, agape, eros, pathos
“Jovens são cínicos ao amor. No fim das contas, o cinismo é uma grande máscara para um coração decepcionado e traído.” (p. 33)
> Olhe que é mais capaz de adultos serem cínicos do que jovens. Na juventude, recupera-se mais fácil de uma traição, posto que a fila continua andando. Quando ela para de andar, aí é que a porca torce o rabo.
“O cinismo em relação ao amor leva jovens adultos a acreditar que não há amor a ser encontrado e que os relacionamentos são necessários na medida em que satisfazem desejos.” (p. 149)
> Bell, neste trecho, fala sobre o consumismo afetando as relações e como é difícil que elas durem se a lógica for desmanchá-las quando alguém não satisfizer mais nossas necessidades. Paradoxalmente, os casamentos duravam mais quando supriam, de fato, necessidades bem “mercantis”, como criar alianças entre países (casamentos entre reais e rainhas), alianças comerciais (casamentos arranjados na alta sociedade), ganhar independência dos pais (muitas mulheres ainda casam por isto), ascender socialmente (o “status” de ter uma família).
“A afeição é apenas um dos ingredientes do amor. Para amar verdadeiramente, devemos aprender a misturar vários ingredientes – cuidado, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, assim como honestidade e comunicação aberta.” (p. 47)
> Compreender que o amor é uma escolha e não apenas algo instintivo requer anos de vida. Possivelmente, também requer ser ferido de amor.
“A prática do amor exige tempo.” (p. 194)
> Qualquer pessoa lendo esta frase hoje terá a certeza cabal de que nunca irá praticar o amor, pois ninguém mais tem tempo pra nada.
“Quando entendemos o amor como a vontade de nutrir o nosso crescimento espiritual e o de outra pessoa, fica claro que não podemos dizer que amamos se somos nocivos ou abusivos. Amor e abuso não podem coexistir. (…) A grande maioria de nós vem de famílias disfuncionais nas quais fomos ensinados que não éramos bons, nas quais fomos constrangidos, abusados verbal e/ou fisicamente e negligenciados emocionalmente, mesmo quando nos ensinavam a acreditar que éramos amados. Para a maioria das pessoas, é simplesmente ameaçador demais acetar uma definição de amor que não nos permitiria mais identificar o amor em nossas famílias.” (p. 48)
> Muito se romantiza o amor maternal e fraternal e hoje sabemos que as primeiras experiências de violência ocorrem em casa. Não creio que haja uma solução fácil ou teórica pra isto, tanto mais porque parece universal algum tipo de violência doméstica (lembrando que ela pode ser de pais/mães contra filhos/filhas, de filhos/filhas adultos contra pais/mães, de irmãos/irmãs contra irmãos/irmãs ou qualquer arranjo entre parentes que você puder imaginar). Ainda preciso resenhar o livro O corpo guarda as marcas, de Bessel van der Kolk, psiquiatra norte-ameriacano de origem holandesa, pois se trata de leitura imprescindível pra entender o estresse pós-traumático, sobretudo em crianças que sofreram violência. A brutalidade desta experiência molda definitivamente o desenvolvimento delas e não apenas o afetivo, mas o biológico. Nunca será exagero (e, pra me redimir, nem verborrágico) expor a crueldade da violência doméstica e mostrar às pessoas que o amor não pode rimar como abuso.
“Por mais que eu goste das populares reflexões new age a respeito do amor, com frequência me bato com o perigoso narcisismo promovido pela retórica espiritual que dá tanta atenção ao aprimoramento individual, deixando de lado a prática do amor no contexto da comunidade. Embrulhada como um produto, a espiritualidade se torna igual a um programa de exercícios. Embora possa fazer o consumidor se sentir melhor em relação à sua vida, seu poder de melhorar nossa comunhão com nós mesmos e com os outros de maneira consistente é inibido.” (p. 114)
> Jesuis amado, tenho a mesma percepção sobre a retórica de esquerda e de direita! Hahaha Sabe aquele dito, a virtude é silenciosa? Creio piamente nisto.
“Ao avaliar nossas necessidades e então escolher nossos parceiros cuidadosamente, tememos descobrir que não há ninguém para amar. A maioria de nós prefere ter um parceiro em quem falte algo a não ter parceiro algum. Pode-se concluir que talvez estejamos mais interessados em encontrar companhia que em conhecer o amor.” (p. 203)
> Bem-vindo/a ao mundo dos normais. Seres humanos – não há nada de muito grandioso na nossa espécie.
“A essência do amor verdadeiro é o reconhecimento mútuo – dois indivíduos que veem um ao outro como realmente são.” (p. 213)
> Respeito costuma ser mais importante que amor na linha do tempo, inclusive pra se manter uma companhia.
“Contudo, quando nos comprometemos com o amor verdadeiro, estamos comprometidos a sermos mudados, a sermos afetados pela pessoa amada de uma maneira que nos permite ser mais autorrealizados. Esse compromisso com a mudança é uma escolha. Acontece como um acordo mútuo.” (p. 214)
> Certa vez estávamos ouvindo o triste relato de um amigo em comum sobre o fim de seu casamento, como ele acabou traindo a esposa e como ela veio a descobrir e como isto levou a disputadas materiais do divórcio etc. etc. etc. Nosso amigo, festeiro na solterice, manteve o mesmo comportamento na vida casada pois, como ele nos dizia, “eu não iria mudar meu jeito de ser só porque tinha casado”. Por isto que ele não estava mais.
“Servir aos outros é um caminho tão proveitoso para curar o coração quanto qualquer outra prática terapêutica.” (p. 245)
> Não poderia concordar mais e ainda me lembro da definição de karma yoga, o yoga da ação desinteressada.
“Em Are you Somebody? The Accidental Memoir of a Dublin Woman [Você é alguém? Memórias acidentais de uma mulher dublinense], a jornalista irlandesa Nuala O’Faolain escreve sobre a natureza salvadora dos livros, afirmando: ‘Se não houvesse mais nada, ler – obviamente – seria algo pelo qual valeria a pena viver.'” (p. 261)
> Não posso concordar mais. Bibliofilia.
Amor é ato
“Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento.” (p. 55)
> Tenho dificuldade pra me desvencilhar da experiência de que as redes sociais estragaram o convívio social. Se amor é aquilo que fazemos ao outro e não apenas uma declaração, imagine o universo de declarações que hoje são feitas nas redes sem sequer serem endereçadas a uma pessoa de carne e osso.
“Quando ouvimos os pensamentos, sentimentos e as crenças de outras pessoas, é mais difícil projetar nelas nossas percepções sobre quem são.” (p. 91)
> Esta frase não poderia ser escrita hoje, porque as redes sociais, onde as pessoas despejam seus pensamentos, sentimentos e crenças, fazem-nos projetar todos os nossos fantasmas nelas. A única forma de validar esta frase, agora, seria entender que os pensamentos, sentimentos e crenças expostos nas redes são superficiais e não refletem de fato o que as pessoas pensam, sentem ou creem.
“Quando estamos comprometidos em fazer o trabalho do amor, nós escutamos até quando nos dói.” (p. 190)
> Meh, até pode ser, embora eu tenha minhas dúvidas.
“Quando homens e mulheres punem uns aos outros por dizer a verdade, reforçamos a ideia de que o melhor é mentir. Para sermos amorosos, precisamos estar dispostos a ouvir as verdades uns dos outros e, o mais importante, reafirmar o valor de dizer a verdade. As mentiras podem fazer as pessoas se sentirem melhor, mas não nos ajudam a conhecer o amor.” (p. 91)
> 300.000 anos desde o surgimento de nossa espécie e ainda não superamos a mentira. Eu acho isto muito curioso. Claro que há uma boa explicação evolucionista pra isto, que uma mentira nos poria em perigo na época em que éramos caçadores-coletores e blá-blá-blá. Mas depois de tanto Freud? Acho realmente curioso. De toda forma, o que eu queria chamar atenção é que deveria existir uma divisão entre a verdade que não deve ser falada da verdade que não deve ser sentida. O movimento woke e seu antecessor, o politicamente correto, querem silenciar o sentimento. Eu defendo que haja espaços adequados para o sentimento gritar, nem que seja no sigilo da relação médico-paciente e advogado-cliente – mas deve haver. Há certas verdades do seu sentimento que é melhor você nunca dizer em voz alta – mas proibir que ela exista dentro de você é alimentar uma besta histérica que, dia mais dia menos, vomitará tudo que tentou soterrar em si.
“Uma das razões pelas quais as mulheres tradicionalmente fofocam mais que os homens é o fato de a fofoca ser uma interação social na qual elas encontram conforto para dizer o que realmente pensam e sentem. Com frequência, em vez de afirmar o que pensam no momento apropriado, as mulheres dizem o que consideram que vai agradar o interlocutor. Depois, elas fofocam, expressando então seus pensamentos verdadeiro.” (p. 99)
> Sempre fui muito consciente destas diferenças entre nós e os homens, sobretudo pela facilidade com quem os homens de minhas antepassadas as traíam e pela facilidade com que a gente cozinhava e arrumava toda a cozinha em um almoço de família. Entretanto, não compro toda a ideia de que fofocamos porque a sociedade patriarcal não nos deixa falar o que pensamos. Não compro porque isto ignora que relações de classe, como a existente entre um chefe e seu empregado, também impõem que este não fale tudo o que pensa. Além disto, homens também fofocam, então não é exclusividade feminina. Ainda assim, temos a percepção de que fofoca é algo que mulher faz, de que homens não ficam criando intriguinhas nem mi-mi-mi, não é assim? Bom, como todos temos instâncias em que não agimos como gostaríamos, teremos que supor que homens estão dando um jeito de lidar com suas frustrações também. Qual seria este comportamento pouco lisonjeiro, semelhante à fofoca, a que os homens se dedicam pra dizer o que realmente pensam e sentem? Ah, ok, “eles não dizem”.
“‘Uma visão articula um futuro que alguém deseja intensamente, e faz isso com tanta clareza e de forma tão convincente que evoca a energia, a concordância, a simpatia, a vontade política, a criatividade, os recursos ou o que mais for necessário para transformar essa visão em realidade.’“ (p. 141 – esta definição é de Donella Meadows, de seu livro Chicken little, Cassandra and te real wolf: so many ways to think about the future, citada no original)
> Embora o business enalteça o líder visionário, é quase certo de que, na política, este líder seja um populista. Então, lembre que visão é uma coisa, líder visionário é outra. Quase sempre aquela decorre deste, mas não necessariamente. O zeitgeist é uma espécie de visão coletiva, que define o rumos de uma época, no qual a autoria está descentralizada.
“ ‘A ganância sempre dá um jeito de cortar os laços da compaixão.’” (p. 154 – esta frase é de Richard Foster, de seu livro Freedom of simplicity: finding harmony in a complex worldi, citada no original)
“Viver com simplicidade é a principal forma de resistir à ganância diariamente.” (p. 158)
> Não é á toa que o voto de pobreza sempre esteve no cerno de muitas ordens monásticas, em diferentes religiões. Evidentemente que uma ganância material pode ser substituída por uma ganância espiritual, mas isto é outra conversa.
“Para manter e satisfazer a ganância, é preciso apoiar a dominação. E um mundo de dominação sempre é um mundo sem amor.” (p. 157)
> Não compro isto. Primeiro, porque sequer conseguiríamos explicar o Homo sapiens sem lançar mão da ideia de dominação; segundo, porque ela é maniqueísta, condicionando a capacidade humana de amar a circunstâncias que podem sequer afetar diretamente uma pessoa ou, o inverso, que a afetam diretamente. Se Bell Hooks disser que não há amor em um mundo de dominação, o que ela poderá dizer sobre o amor que representam Luther King, Mandela, Dalai Lama, Malala? Uma visão de mundo, isto sim pode fazer a pessoa não encontrar o amor.
“Sobreviver e triunfar diante de famílias disfuncionais por vezes depende da presença do que a psicanalista Alice Miller chama de ‘testemunhas iluminadas’. Praticamente todo adulto que experimentou sofrimento desnecessário na infância tem uma história para contar de alguém cuja bondade, ternura e preocupação restauraram seu senso de esperança. Isso só pôde acontecer porque essas famílias existiam como parte de comunidades maiores.” (p. 163-64)
> Ué, então pode haver ilhas de amor em um mundo de dominação? Bom, indo pro lado bonito da história, sim, quando uma comunidade de fato existe, ela funciona como uma família cujos filhos convivem com avós: um contraponto ao rigor dos pais. Isto me parece saudável. Mas, no caso de famílias disfuncionais, é o que pode decidir o futuro de uma criança. As escolas são locais privilegiados pra “testemunhas iluminadas”. Mas se a sua gestão fosse mais descentralizada, ficando a cargo das comunidades a que servem, haveria ainda maior oportunidade delas cumprirem este papel.
“Embora o perdão seja essencial para o crescimento espiritual, ele não faz com que tudo fique bem ou maravilhoso imediatamente.” (p. 171)
> Esta passagem pode ser resumida no excelente título deste livro de ensinamentos budistas: Depois do êxtase, lave a roupa suja (já resenhado aqui, de Jack Kornfield).
“Abrir mão de alguma coisa é uma maneira de sustentar um compromisso com o bem-estar coletivo. Nossa disposição de fazer sacrifícios reflete nossa consciência da interdependência.” (…) Doar mutuamente fortalece a comunidade.” (p. 174)
> Isto é uma opinião bastante pé no chão. Penso que, no meio deste livro, a força dela se perca um pouco, ainda mais em um contexto social de “reparações históricas”. É muito difícil fazer sacrifícios, a pobres e a ricos, a brancos e pretos, a europeus ocidentais e a latino-americanos, a homens e a mulheres, a uma pessoa cis e a uma pessoa trans. Além disto, o que é sacrifício pra uma pessoa, não o é pra outra. Quando uma parcela desfavorecida da sociedade acumula tantos sacrifícios, a outra parece viver apenas de privilégios – embora a realidade seja mais nuançada que isto. É relativamente fácil distribuirmos sacrifícios e privilégios quando politizamos a vida, mas fica terrivelmente difícil quanto a política sai do tabuleiro, como nas relações pessoais, por exemplo. Talvez, por isto, estejamos politizando cada aspecto de nossas vidas: pra nos esquivarmos da complexidade dos relacionamentos pessoais.
“Numa família funcional se aprende autoestima e há um equilíbrio entre autonomia e dependência.” (p. 240)
> Como é difícil achar este equilíbrio.
O contrário de medo é amor
“[Tomas] Merton argumenta: ‘Se nos tornarmos obcecados com a ideia da morte escondida, esperando por nós numa emboscada, não estamos tornando a morte mais real, mas a vida menos real. Nossa vida é dividida contra si mesma. Ela se torna um cabo de guerra entre o amor e o medo de si mesma. Então a morte opera no centro da vida, não em seu fim, mas como medo da vida.’“ (p. 225-226)
> Como é aquela citação estoica ou epicurista, não lembro? “Onde a morte está, eu não estou; onde eu estou, a morte não está”.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2023
HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2021. 272 p.