Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crítica literária > Solidão continental – João Gilberto Noll
Convidado para o projeto Um Escritor na Biblioteca, da Biblioteca Pública do Paraná, João Gilberto Noll declarou ser, hoje, um escritor metafísico. Ele disse: “Escrevo porque vou morrer e eu acho isso uma sacanagem.” (in Cândido, ed. 18, Jan/13, p. 9)
A dor de morrer – e sozinho – percorre Solidão Continental, romance lançado em 2012 por este multipremiado escritor, nascido em 1946 em Porto Alegre. Seu protagonista, um professor de português para estrangeiros, supostamente chamado João, herda do autor esse sofrimento e não só: também a condição expatriada de alguém que deixou a cidade onde nasceu e se aventurou num país diferente.
Envelhecido, o professor perambula pela cidade natal lembrando-se de experiências amorosas da juventude e outras mais recentes. Frequentemente homossexuais, elas lhe ensinaram independência – de modo que o protagonista não criou laços e sempre fez o que quis; mas lhe ensinaram, também, que a ausência de laços suprime a chance que temos, como humanos, de alargarmos nossas próprias fronteiras para além de nossos corpos, confiscando-nos para fora da experiência criativa do amor.
É como um expatriado de si que o narrador entra na história. Ele costura lembranças de modo confuso, que poderia ser à maneira de sonho não fosse confusão a característica da memória idosa. Então não é sonho; é linguagem sonâmbula, urdidura tênue construída por Noll, em que se intercalam fios de lucidez com fios de embriaguez. Solidão Continental é metafísica tecida por mãos de um narrador que nunca tocou o espiritual – uma ausência que tem a força de empurrar para a busca da completude.
Abaixo selecionei algumas passagens marcantes. Reserve duas horas sem interrupções para ler o romance, pois ele merece ser lido num fôlego só, de maneira que a última página venha como o alívio de voltar a respirar.
Um continente frágil
“Se eu soubesse em que cidade estava e se ela era a minha, se eu lembrasse o meu endereço, poderia depositá-lo na minha cama e tratá-lo como a um filho ou a um amante ou a um estranho que tivesse gerado em mim uma compaixão que a proximidade da velhice revelasse. Pois eu era melhor hoje do que fora tempos atrás quando tinha ainda toda a disposição do mundo. Agora, um bocadinho alquebrado, quem sabe não muito longe do fim, eu sabia melhor o quanto valia a fragilidade alheia para que a minha se visse provisoriamente ultrapassada. Se o que doía no outro fosse tratado por mim a minha ferida se esquecia de si e eu me revigorava.” (p. 71)
Um continente inocente
“Mijei em cima do formigueiro. Brinquei como na infância, de Deus. Feito Deus, eu mandava uma hecatombe sobre os seres inferiores, uma brutal intempérie que os castigaria num ato gratuito. Feito Deus quis descartar qualquer misericórdia.Aquelas minúsculas vidas que andavam em sua faina diária jaziam agora exterminadas em meio à espuma da minha urina torpe.” (p. 111)