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Sede do Mal – Gore Vidal

Postado às 00:00 do dia 18/08/12

Gore Vidal faleceu no dia 31 de julho passado, aos 86 anos, e foi um dos últimos escritores norte-americanos com coragem à polêmica. Era comparado a Ernest Hemingway e Truman Capote, não por critérios estéticos, mas por critérios cronológicos, pois pertenciam à mesma turma de inimizades. Navegando da literatura de ficção aos ensaios, dos roteiros de Hollywood a frustradas tentativas de uma carreira na política, seus livros são marcados por narrativas de conteúdo histórico, visões sobre a política imperialista de seus país e questões sobre o homessexualismo.

Sede do Mal (A Thirsty Evil, no inglês) é a única coletânea de contos do autor, lançada em 1956. Nela, o Gore Vidal de temas políticos e língua afiada dá lugar a conteúdos intimistas em que personagens refletem sobre o vazio de suas vidas e suas motivações nada cor-de-rosas. São sete contos, um mais angustiado que o outro: Três Estratagemas narra o momento em que um jovem prestes a casar se encontra com um aposentado que vive sua homossexualidade com não menos sofrimento comparativamente a quando sua esposa era viva; O Tordo é um episódio da crueldade infantil contra animais; Um Momento Louro Verde trata de um homem que regressa à cidade natal para constatar que nada havia mudado dentro dele, exceto que tinha envelhecido; O Troféu Zenner – o conto mais irritante de toda a coletânea – é o diálogo entre três homens envolvidos num escândalo cujo teor não é revelado no final; Erlinda e sr. Coffin descreve uma tragédia ocorrida com um dos hóspedes de uma velha senhora do Sul dos EUA; Páginas de Um Diário Abandonado são as memórias de um jovem que viajou para Paris para conhecer a boemia e envelhece abandonando seus planos de se casar com uma mulher; e, finalmente, As Damas na Biblioteca conta o momento em que os dois últimos representantes de uma tradicional família da Virgínia veem seus planos morrerem.

O que existe de mais angustiante nos contos é a narrativa velada, em tom de segredo, tentando ocultar verdades incômodas. É uma experiência interessante de leitura. A prosa de Gore Vidal é requintada e eu sempre acho que o requinte torna mais visceral o sofrimento. Além disso, é inquietante que o livro aborde o tema da velhice, em todos os contos, tendo sido escrito quando Gore Vidal tinha apenas 31 anos. Veja, pelas partes que selecionei abaixo, se fica animado a ler o livro todo.

 

do conto Três Estratagemas

* conselhos

“Mas também suponho que se um deles tivesse juízo suficiente para vir tomar lições comigo seria também suficientemente esperto para cuidar de sua vida sem conselhos.” (p. 26)

– Esse é um bom exemplo das frases que Gore Vidal constrói, sempre tortuosas, como os pensamentos que se desenvolvem na cabeça de seus personagens.

“A princípio, não se deve falar demais, pois a conversa revela muito sobre uma pessoa e, a não ser que se seja simples, pouco habilidoso e se pareça ser menino demais, o melhor é não falar nada, manter-se em silêncio e sorrir, enigmático, esperando pelo momento ideal de assumir o personagem do sonho do outro. É preciso muita experiência e intuição para fazer isto, pois, para obter sucesso, deve-se possuir um poder divinatório nato, uma habilidade de identificar o outro corretamente sem comprometimento; não é uma tarefa fácil.” (p. 26)

– Não parece fácil e soa terrível.

“Então acendi as velas na mesa e apaguei a luz mais alta. Quando a gente envelhece, fica um pouco como uma mulher vaidosa: com uma mórbida consciência da iluminação, do choque das cores, das sombras e dos ângulos indesejáveis. Uma grande atriz certa vez me disse que a melhor luz para uma mulher velha era a direta, que não fazia sombras.” (p. 39)

– A consciência da velhice, nos contos do livro, se dá, invariavelmente, pela constatação da beleza de um jovem.

 

 

do conto O Tordo

* tendências inatas

“Aos 9 anos, eu era muito mais durão do que hoje.” (p. 45)

– A história é narrada em flashback e essa frase abre o conto, mas fui relê-la umas três vezes até aceitar que, de fato, se tratava de uma história sobre uma criança cruel. É muito difícil a gente engolir liso um retrato imoral da infância.

“Lembro-me que, quando tinha 10 anos, falava quase apenas usando sonoros clichês, e começara a demonstrar um alarmante talento para a poesia moral.” (p. 48)

– As vocações que surgem cedo na vida sempre são fonte de angústia na vida adulta, sobretudo quando não resolvidas.

“Porque sempre tem-se de fazer alguma coisa em relação a tudo que se encontra em nosso caminho.” (p. 50)

– É o que se chama de fatalidade.

 

 

do conto Um Momento de Louro Verde

* incômodos

“Andei devagar pela sala. Era como um baile, e desejei, por simples aparência, ter uma parceira. Há alguma coisa de profundamente negativo em ficar de pé sozinho na periferia de um grupo em que todos chegaram, como animais numa arca de Noé, aos pares.” (p. 56)

– É uma crítica forte à concepção heterossexual de mundo.

“Então eu fiz as perguntas tradicionais sobre a escola: adultos e crianças sempre se encontram como estranhos, com um limitado vocabulário comum e mútua desconfiança. Eu teria gostado de conversar com ele como um igual, pensei: meus olhos apenas no verde, não na prata nem na pele morena.” (p. 62)

– Existe na prosa moderna de até meados dos anos 60 uma coisa dura em relação à infância que não encontramos tanto no que se escreveu depois. É muito incômodo pra gente, que nasceu a partir dos anos 70, verificar que tivemos uma infância onde fomos poupados, porque a verdade é que nossos pais não tiveram. Acho isso muito duro de constatar.

 

 

do conto Erlinda e o sr. Coffin

* preconceitos

“Deliberei se devia ou não entrar nos negócios, abrir um refinado restaurante, buscar uma posição em alguma casa de comércio estabelecida. Não fiquei muito tempo na dúvida, porém, sobre o curso a seguir. Pois, não desejando viver em nenhum outro lugar que não minha própria casa, decidi com certo sucesso, financeiramente pelo menos, reorganizá-la para que proporcionasse uma renda por meio do deselegante mas necessário expediente de abrigar hóspedes pagantes.” (p. 89)

– Tenho lido uma enxurrada de livros onde o “expediente de abrigar hóspedes pagantes” tem resolvido a insolvência de personagens: Tia Julia e o Escrevinhador de Vargas Llosa; Pra Que Ter Razão Se eu Posso Ser Feliz?, de Isabel Losada; Os Estrangeiros do Trem N, de Sergio Vilas-Boas, como exemplos. Deve ser sinal de alguma coisa, senão, com certeza, de que a pessoa tem sorte de poder viver da renda de hóspedes!

“Ensinei-lhe trechos da Bíblia que ela não estudara antes (deduzo que o sr. Coffin é um livre-pensador) (…)” (p. 97)

– Nunca li modo mais elegante de denunciar um preconceito religioso, chamando um pai que não ensina a Bíblia a sua filha de um livre-pensador.

 

 

do conto Páginas de um Diário Abandonado

* arrependimentos

“Às vezes gostaria de ter escolhido um tema menor para o doutorado, não que não goste da época, mas é deprimente ter de aprender alemão para ler um monte de livros (…)” (p. 109)

– As pessoas vivem fazendo escolhas porque se deslumbram com suas possibilidades, mal percebendo o quinhão que vem junto de adversidades.

“Fazer sexo com ela é o mais chato passatempo em que posso pensar. Fui para o meu quarto e li Tácito em latim, para praticar.” (p. 119)

– Coitada da mulher. É possível rejeição maior que ser trocada por um livro em latim?!

 

 

do conto As Damas na Biblioteca

* os que se salvaram

“Ela morava em Baltimore e ele em Nova York. Nenhum dos dois se casara, um claro indício de que a natureza abandonara mais uma experiência de eugenia.” (p. 133)

– Putz! E seria pra ficarmos felizes ou decepcionados?

“Deu uma risada gostosa; era loura, de um tom acinzentado, desarrumada e tão velha, ele lembrava, quanto o esplêndido século deles, mas ao contrário do século não tinha nenhuma cicatriz.” (p. 136)

– Não se separam, nestes contos de Sede do Mal, o que é crítica social daquilo que é reflexão sobre a vida particular.

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

 

VIDAL, Gore. Sede do mal. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

 

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