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Seríamos capazes de olhar para as relações das plantas com seu entorno e usar esta experiência para modificar nossa própria relação com o meio ambiente, desviando-nos da rota de colisão que parece estar no futuro próximo? Esta é a tese de Craig Holdrege na obra Pensamento vivo: as plantas como mestras, que foi publicada pela Bambual Editora em uma parceria com a Escola Schumacher Brasil.
Fundada em 1991 na Inglaterra, pelo indiano Satish Kumar, a Schumacher College tem como missão valorizar a ecologia e a vida sustentável dentro da filosofia proposta pelo economista alemão Ernst Friedrich Schumacher (1911-1977) no livro O grande negócio é ser pequeno: estudos sobre uma economia em que as pessoas são importantes.
Esta pequena introdução já lhe trará uma ideia do que sustenta o estudo que autor do livro, também doutor em educação para a sustentabilidade, Craig Holdreg, propõe: via fenomenologia, via empirismo goethiano e abordagem integrativa, conscientizar as pessoas para o fato de que a natureza é uma só e de que todas as formas de vida estão interconectadas. No site do The Nature Institute, fundado pelo autor, uma frase do poeta e pensador alemão Goethe resume a ideia: “se quisermos alcançar uma compreensão viva da natureza, deveremos nos tornar flexíveis e móveis como a natureza em si é”. Essa compreensão viva é o que Craig chama de pensamento-vivo, em oposição ao pensamento-objeto, que divide o mundo em partes e as estuda isoladamente para dominá-las com ciência e tecnologia por sua vez impregnadas de distanciamento. O pensamento-objeto coisifica o mundo, ao passo que o pensamento-vivo o vivifica.
Mas não se engane: trata-se de um livro de botânica, com descrições botânicas. E com um tipo de descrição botânica diferente daquelas intermináveis e incompreensíveis listagens técnicas da literatura especializada. Pelo contrário, ler uma descrição botânica pelo empirismo vivo de Goethe, tal como elaborado no livro A metamorfose das plantas (já resenhado aqui), torna a botânica algo dinâmico, sedutor – em suma, algo vivo. Eu já acreditava antes que uma educação para as plantas pode despertar nas pessoas o que gosto de chamar de ecologia profunda – o livro de Craig apenas me comprovou que o conhecimento mais elementar de botânica – como descrever uma planta – pode cativar a atenção das pessoas e iniciar este despertar muito antes que elas aprendam sobre o que as plantas são e como criam o mundo em que vivemos.
Abaixo selecionei algumas melhores partes e as comentei.
Como as plantas
“E como seria se, ao modo das plantas, nossas ações nascessem a partir de uma relação sensível ao contexto do mundo que habitamos?” (p. 14)
– Embora eu seja uma entusiasta deste pensamento, não imagino que tenhamos uma relação, nós, humanos, insensível ao contexto. É sensível, apenas que dentro de uma lógica que dificilmente pode ser nomeada de integrativa.
“Seria difícil imaginar um professor melhor do que as plantas para ensinar dinamismo, conectividade, resiliência e integridade.” (p. 22)
– Macroscopicamente, penso que elas sejam os melhores professores. Há anos costumo dizer que as plantas são os seres mais evoluídos do planeta. Até conhecer o que os fungos são capazes de fazer…
“Em geral, podemos dizer que todas as experiência ‘aha’ , nas quais algo de repente se torna claro para nós, são essas flores de nossa vida mental.” (p. 96-97)
– Adorei isso!
“A planta é professora do dinamismo, nos levando a olhar além da rigidez para a transformação.” (p. 110)
– Também acho. Nesta página, Craig aborda o senso do maravilhamento que a experiência com as plantas desperta em seus alunos e de como desperta este senso pode ser um dos eventos mais importantes na mudança de nossa relação com a natureza.
” ‘ Só estou dizendo que existe drama em qualquer arbusto, se você puder enxergar. Quando homens suficientes souberem disso, não precisaremos temer a indiferença ao que acontece com os arbustos, ou com os pássaros, com o solo, ou com as árvores. Então não precisaremos da palavra conservação, pois teremos a coisa em si. – Aldo Leopold.’ “ (p. 147)
– Irei adotar, daqui pra frente, esse “existe um drama em qualquer arbusto”.
“Quando dedicamos nossa atenção às plantas, a partir dessa orientação da mente, elas nos revelam a vida-como-transformação” (p. 182)
– Nossa mente orientada a planta.
“As plantas são professoras extraordinárias.” (p. 206)
Metamorfose das plantas
“As sementes são, pelo menos de um ponto de vista externo, o estágio mais compacto, sólido, autocontido e parecido com um objeto na vida de uma planta.” (p. 50)
“A vida da planta só pode se desdobrar quando ela abre mão de ser um objeto, quando cresce e se conecta com o mundo de tal maneira que ele sustenta seu desenvolvimento dali para frente. Ela não pode ser uma planta – o que significa ser em constante devir – a não ser que abra mão de seu isolamento e se sustente por meio do mundo.” (p. 50)
– Imagine a dificuldade de definir que este ser só é planta depois que brota, mas ainda não no estágio semente.
“Crescer e morrer, em uma planta, andam juntos (…).” (p. 85)
– Esse processo “crescer e morrer” é mais visível em uma planta, quando folhas novas brotam ao passo que velhas morrem, por exemplo. Mas em animais, microscopicamente, ele também ocorre: há células morrendo enquanto outras estão nascendo.
“Por força do hábito, pode ser que pensemos nas plantas como uma ‘coisa’, como um objeto no mundo, como um substantivo, mas, com essas observações, começamos a ver as plantas como um processo.” (p. 88)
– Pensar nas plantas como um processo e não como um objeto me parece ter a mesma capacidade de dar curto-circuito em nossas convicções que pensá-las como uma colônia de indivíduos que em vez de um único. Conhecer que uma mesma planta pode abrigar diferentes DNAs, por exemplo, é pra bugar o cérebro. A esse respeito, leia a resenha que fiz do livro Éloge de la plante, de Francis Hallé.
“Quando observamos o desenvolvimento da planta, estamos sempre olhando para fotos de um processo contínuo. Essa continuidade não nos é dada como um fenômeno que nossos sentidos podem perceber. Ao contrário, temos acesso a ele por meio de nossa atividade de conectar um estágio ao próximo.” (p. 89)
– Aquele mesmo cérebro que generaliza e resume, também preenche as lacunas de sua percepção 😉
“A planta é um ser rítmico. Ela desenvolve folha após folha, e alterna entre expansão e contração em seu desenvolvimento. No pensamos vivo adquirimos consciência de como um processo rítmico de investigação melhora o aprendizado. Quando observamos cuidadosamente os fenômenos, nos expandimos até ele, vivemos com ele, e deixamos que se tornem parte de nós. Então nos retiramos, e trabalhamos com o que tivermos absorvido. Isso os prepara para sair em encontro do fenômeno novamente.” (p. 182)
Coisificando o mundo
“Se você vê a natureza como um objeto, então a natureza se torna um recurso no que diz respeito à manipulação e à tecnologia. Ela não tem um ‘dentro’ que precisa ser levado em consideração.” (p. 32)
– No atual estado, acho utópico olharmos para a natureza como tendo um dentro. E falo de minha própria experiência, admitindo que, embora me preocupe e me ocupe com sustentabilidade, tomando pequenas ações dentro e fora de casa, não gostaria de abdicar da modernidade e do que a ciência e a tecnologia nos trouxeram. Que algo precise ser feito não há nenhuma sombra de dúvida – se o quanto que faremos será suficiente, nisso residem minhas dúvidas. A fator da equação que complica tudo é que tirar as pessoas da pobreza implica em crescimento econômico e aumento do consumo. E o desejo das pessoas não é permanecer pobres. Realmente não sei se há solução.
“Uma definição é um caso especial de apego a uma ideia ou opinião que formamos.” (p. 92)
– Não dê mais munição aos pós-modernistas, por favor. Ninguém aguenta mais tanta desconstrução.
“A teoria da evolução de Darwin é um exemplo de uma teoria poderosa e amplamente reconhecida. Ela estimulou uma quantidade enorme de pesquisas. Ao mesmo tempo, com certeza limitou o escopo da investigação científica por meio de sua dominância no meio científico. Quando os cientistas procuram aplicar uma teoria para todo fenômeno, ela se torna mais e mais geral e abstrata.” (p. 144-145)
– Bom, essa ideia valeria a pena discutir. Mas, pelo amor, que ela não caia nas redes sociais, que é outro lugar capaz de limitar o escopo de qualquer discussão.
Descoisificando o mundo
“Primeiro, nosso pensamento precisa se tornar mais participativo, em vez de distanciador e objetivador. Podemos nos tornar conscientes de reificar e de nos apaixonar por nossas abstrações a custo de nossa atenção à realidade em que vivemos.
(…)
“Em segundo lugar, precisamos nos tornar mais concretos e menos abstratos no nosso pensamento. O pensamento-objeto cria generalizações e resumos a partir de eventos particulares.
(…)
“Em terceiro lugar, precisamos começar, com todo nosso empenho, a centrar nosso pensamento no organismo vivo e nos processos vivos, em vez a ideia de interagir com entidades semelhantes a objetos.” (p. 45)
– Caso você tenha lido o bestseller Rápido e devagar, também resenhado aqui, entenderá que nossa capacidade de generalizar e resumir serve a finalidades evolutivas. Esta incrível capacidade que nosso cérebro tem de reduzir as informações tanto no meio externo quanto interno serve à nossa sobrevivência, mas também ao nosso bem-estar. Como leio, o pensamento-vivo é contraintuitivo, ainda que seja totalmente possível. Na verdade, ele opera, apenas não opera sempre em nossas decisões. Nossas abstrações efetivamente são apaixonantes, mas reside no poder da imaginação, eu desconfio, o poder do pensamento-vivo, para estendermos os processos vivos para além de onde não podemos mais enxergar. A concretude não enxerga consequências além se não usar de abstrações. Seria proveitoso inserir esta reflexão no que Craig propõe. Talvez o problema da mudança do pensamento-objeto para o pensamento-vivo não seja tanto o apaixonamento pelas abstrações de que somos capazes, mas por nossa própria capacidade.
” ‘Me parece que nenhum dia é totalmente profano se damos atenção a algum objeto natural. A queda dos flocos de neve no ar tranquilo, preservando cada cristal em sua forma perfeita; o sopro da neve caindo sobre um largo corpo de água, ou sobre as planícies, o campo de centeio que ondula, ou os acres de houstonia, cujos inúmeros floretes empalidecem e ondulam para vermos; os reflexos das árvores e flores em lagos espelhados; o vento sul musical e cheiroso, que converte todas as árvores em harpas; o crepitar e o derramar das cicutas em chamas; ou dos feixes de lenha, que trazem glória às paredes e faces na sala de estar – essas são a música e cenas da mais antiga religião. – Ralph Waldo Emerson, em seu ensaio Nature (1900, p. 312).’ “ (p. 55)
– A esta linguista não escapará a ironia de Waldo ter usado a palavra objeto e o autor Craig ter citado o trecho como exemplo de pensamento-vivo…
“Cada percepção de uma coisa ou situação tem esses dois aspectos – foco e receptividade. Sem eles, não haveria percepção. Ao fazer esses exercícios nas duas direções, estamos refinando nossa capacidade de perceber o mundo ao nosso redor. Dessa maneira, podemos entrar em um modo sensorial, estando com as coisas em si. Os dois tipos de exercício, na verdade, se reforçam mutuamente.” (p. 67)
– Dos livros que já li sobre observação goethiana, este foi o que a tornou mais palpável. Ao ler os exercícios que Craig conduz nos workshop de seu instituto e as descrições botânicas “narradas”, dá pra entender do que se trata.
“Na percepção saímos para o mundo e convidamos as coisas a entrarem em nós; na imaginação sensorial exata [de Goethe], nós recriamos e animamos, dentro de nós, o que encontramos na experiência. Assim, nos conectamos profundamente com o mundo que encontramos na experiência sensorial.” (p. 69)
– Nesta altura pode se delinear uma diferença entre abstração e imaginação: aquela é uma masturbação mental. A linha entre ambas, contudo, pode ser tênue.
“Aqui é importante essa oscilação entre observação e pensamento, para que uma atividade fertilize a outra: se ficarmos só imersos na observação, tendemos a nos perder nos detalhes, enquanto, se ficamos somente no modo reflexivo, nos perdemos em generalidades. A maneira de lidar com esses perigos não é achar um ‘caminho do meio’, que tem um pouco de cada (um meio fraco), mas, ao contrário, se mover energeticamente entre um pólo e outro. Isso é, no reino da investigação, como uma respiração.” (p. 198-19)
– Meu lado rebelde gosta de pensar que o caminho do meio é insosso. Mas não tenho tendências à bipolaridade.
“Essa atitude viva da mente – uma que pode ser aprendida ao estudarmos o desenvolvimento das plantas – nos permite ver uma ideia como a expressão de um processo. Como tal, a ideia é importante e essencial, mas em seu tempo, e precisaríamos, como pensadores-como-plantas, deixar uma ideia para trás à medida que nossas vidas se desenvolvem mais além. Nessa atitude de mente, podemos nos apegar aos nossos conceitos de maneira menos definitiva, porque vemos nossa vida intelectual como em processo e transformação.” (p. 93)
– Imagine que doido vivermos em um mundo no qual precisamos encontrar uma justificativa ética para podermos mudar de ideia. Mas brinco. O livro aborda o “empirismo delicado”, um método (fenomenológico) pra nos livrarmos de “julgamentos enraizados” e” superar a inércia da mente”.
“A compreensão de quão profunda é nossa participação no mundo é, ao mesmo tempo, de liberdade e de humildade. Nos tornamos conscientes de que não somos alienígenas neste planeta, apesar de que, na maioria do tempo, pensamos e agimos como se fôssemos.” (p. 133)
– O plot twist seria descobrir que de fato nossos ancestrais eram alienígenas (como alguns acham). Hahaha!
“O saber holístico cria a base para uma relação moral com o mundo (…).
(…)
“A história de um organismo sempre nos leva para além dele mesmo em direção a uma rede de relações com outros organismos e elementos do ambiente. Não existe isolamento no mundo vivo.” (p. 177)
– Sempre que me perguntam o que ocorre na aromaterapia que as pessoas se transformam, respondo: consciência ecológica. Contudo, desconfio que haja um limite cognitivo para essa relação moral – e esse limite é bastante geográfico: vai até onde nos locomovemos em nossas interações sociais. Ninguém é capaz de estabelecer holismo com algo muito grande. Trata-se de um paradoxo. Você se aborrecerá tremendamente com a poda de árvores na vizinhança, poderá se chatear com a derrubada da Amazônia, mas é somente na árvore do outro lado da rua que se amarrará pra impedir sua destruição.
“Isso tudo faz parte da revolução silenciosa que as plantas estimulam em nós. É uma revolução porque tudo muda quando a visão-objeto-do-mundo se desfaz e uma visão-orgânica emerge.” (p. 184)
“Nos ajuda a perceber que somos seres entre outros seres companheiros.” (p. 184)
– Amargamente constato que é mais fácil vermos companheiros em plantas e animais que em outros seres humanos. Pessoas boas, diante desta constatação, podem optar pelo isolamento e reclusão, a fim de preservar a simpatia que construíram sobre o gênero humano.
“A contemplação dos fenômenos naturais nos nutre e cria um vínculo entre nós e as outras presenças genuínas no mundo.” (p. 188)
– De onde a importância de abrigar, em cidades, espaços onde o fenômeno natural ainda possa ser observado. Que espaço mais versátil não seria este senão o local onde cresce uma árvore esplendorosa? Sigo com Francis Hallé, que disse que a coisa mais inteligente que podemos fazer é plantar árvores em todos os cantos numa cidade.
Narrar
“Depois percebi que as histórias na cultura humana se assemelham, em muitos aspectos, aos organismos no mundo natural. Cada história carrega um mundo próprio dinâmico e memorável. Existe um fluxo de desenvolvimento na história, os personagens expressam diferentes qualidades, passam por desafios e vivenciam a resolução. As história são, como os organismos vivos, sempre mais grandiosas, mais profundas e ricas do que uma interpretação única delas. Assim, elas permitem que uma grande variedade de almas individuais e com configuração e trajetórias diferentes se apropriem delas e encontrem significado. As histórias são presenças genuínas.” (p. 191)
– Não poderia apreciar mais esta citação. No momento, estou lendo o livro sobre narrativas do Byung-Chul Han. Depois o traga pra cá.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024
HOLDREGE, Craig. Pensamento vivo: as plantas como mestras. Tradução: Fernanda Rocha Vidal. 1a. ed. Rio de Janeiro: Bambual Editora, 2023; 224 p.