Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoras > Paisagem com Dromedário – Carola Saavedra
Se é verdade que mulheres gostam de uma D.R., este livro de Carola Saavedra (1973) deve amealhar apenas leitoras. São 167 páginas em que a escritora conseguiu criar um feito extraordinariamente feminino: uma narradora, Érika, que discute a relação a um. É ainda mais extraordinário se pensarmos que a relação não se dava a dois, mas a três. Érika formava um triângulo amoroso com Alex, um festejado artista plástico, e Karen, uma estudante ingênua de artes.
Fosse esse triângulo um caso de poliamor e o romance seria mais interessante; mas não é – trata-se apenas de um ménage à trois que durou mais tempo do que deveria. Não lia uma narrativa tão egotrip desde Um Romance de Geração, de Sérgio Sant´Anna. Só que o livro de Sérgio tem um experimentalismo que dá certo; o experimentalismo de Carola parece supérfluo: a narrativa de Érika são transcrições de monólogos registrados num gravador. Se ela estivesse escrevendo um diário, o efeito seria o mesmo – ou talvez melhor: é muito difícil “comprar” Érika, a ideia de que esteja gravando, quem ela é, o quanto está refletindo sobre sua vida a partir do momento em que o triângulo é desfeito.
Apesar disso, o romance tem algumas passagens boas. A abertura, aliás, é excepcional, forte, até que Érika começa sua egotrip – aí o tom fica monocórdio, aborrecido e creio que a única coisa que segura a leitura é – além da honestidade intelectual de que falava Wilson Martins – querermos saber se ela voltará ou não para Alex. Mas se o leitor não for curioso, há grandes chances dele abandonar a leitura, como os homens que, quando uma mulher começa a falar, falar, falar, fingem ouvi-la mas, na verdade, estão pensando em outra coisa.
Acho que o livro precisa muito de um leitor com boa vontade para ser fruído – para alguns isso é elogio, para outros nem tanto. Começa pelo título: Érika se refugia numa ilha austral onde há dromedários. Tá, sabemos que não há dromedários em terras austrais. Então, isso nos abre para a possibilidade de um relato non-sense, mas ele não é. Engulimos essa dissonância e concluímos que, ok, é apenas uma metáfora e vamos continuar acompanhando as reflexões de Érika sobre sua triste fútil vida de artista. Daí a narradora abre a possibilidade de que não esteja triste nem nada, que está apenas criando gravações que serão transformadas numa instalação, mas isso tampouco ocorre. Ou seja, o tempo todo coisas são afirmadas e depois desmentidas e a gente fica com a impressão de que não vale a pena tanto esforço por um desmiolada (Érika). Além disso tudo, existe a infeliz escolha da imagem de um gravador antigo para a capa do livro, daqueles que usam fita K7. Você fica com essa imagem na cabeça e lá pelas tantas descobre que Érika carregou um notebook sofisticado para a ilha. Aí não dá, né – a dissonância no livro fica consumada.
Enfim, tem gente que curte esse tipo de livro. Carola é uma autora premiada, publicada pela Companhia das Letras, está na Granta; concluo que devo ler outro livro dela para fazer a prova dos nove.
Até lá, não desminto o prazer dos trechos que transcrevo abaixo. Se a personagem Érika é uma mulher incapaz de amar, sou uma leitora que se esforça por ver o lado positivo até no que lhe parece ruim. Quando Machado de Assis queria dizer as maiores chatices, colocava-as na boca de seus personagens e os ridicularizava – talvez Érika seja uma tentativa semelhante.
Descrições
“O mar, em compensação, parece inesgotável. Assustador. O mar aqui é um mar que ainda não foi domesticado. Nunca lhe foi imposto limite algum. Até mesmo as cores, o cheiro, as algas, tudo nele parece que acaba de surgir. E me vem sempre a sensação de estranhamento quando olho em volta e vejo estradas, casas, pessoas, como em qualquer outro lugar.” (p. 9)
– Eu não disse que a abertura era muito boa? Veja que não existe nenhuma ideia sobrando nesse parágrafo. Veja como é possível se posicionar de frente para o mar e se apaixonar pela sua perenidade e, virando-se de costas para ele, dar de cara com a vida. Infelizmente, a partir da 23a linha da página seguinte, começa a lamúria de Érika.
“Karen ria, envergonhada. Karen sempre ria assim, como se o riso fosse algo obsceno.” (p. 10)
– Essa delícia de descrição de personagem está nas linhas 11 e 12 da página 10.