Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > contos > Os amores difíceis – Ítalo Calvino
Ítalo Calvino (1923-85, Cuba/Itália) proporciona boas overdoses de leitura quando se garra pra ler qualquer título dele. Uma prosa longa e aprumada, uma erudição sem pedantismo, a imaginação fértil de um fabulista moderno. Não tem como não gostar. Neste Os Amores Difíceis (1958), publicado no ano seguinte a sua estreia como autor, Calvino traz contos de grande fôlego (ou novelas, como queira), em que narra as desventuras da tríade amor-sexo-paixão, na primeira parte do volume, e a opressão que se abate sobre vidas comezinhas, na segunda.
Pra quem curtiu a leitura de O Visconde Partido ao Meio (1951), O Cavaleiro Inexistente (1959) ou As Cidades Invisíveis (1972), talvez reclame um pouco desses contos mais “realistas”, sem tantas invencionices. Se a pegada de Os Amores… tem a linguagem mais sisuda do As Cidades…, nem por isso deixa de nos fazer rir como nas melhores reviravoltas daquelas duas novelas. Particularmente o conto A formiga-argentina tem seu charme de história absurda, se não fosse tão fácil levá-la pra uma metáfora a regimes totalitários e à censura.
Separei umas citações e trechos gostosos de ler. Espero que sorria. É uma possibilidade neste livro que é todo ele sobre as impossibilidades.
do conto A Aventura de um Soldado
“Tomagra, jovem soldado de infantaria na primeira licença (era Páscoa), encolheu-se no banco com receio de que a senhora, tão fornida e grande, não coubesse ali; e logo se encontrou na aura do perfume dela, um perfume conhecido e talvez vagabundo, mas, pelo longo tempo de uso, já amalgamado aos odores humanos naturais.” (p. 8)
– Duas coisas: amo o adjetivo “fornido” que ouço frequente na fala dos meus parentes mineiros; e, sim, amo que a descrição do perfume tenha sido simplesmente “algo conhecido” porque é só isso que surge na cabeça da gente quando não sabemos falar de um cheiro que conhecemos mas ainda não foi catalogado na cabeça.
“[…] e o tecido aflorou a perna da viúva, e agora, através dessa fazenda e dessa seda, a perna do soldado aderia à dela como um movimento brando e fugidio, como um encontro de tubarões, e com um mover de ondas de suas veias em direção às veias da outra.” (p. 9)
– “encontro de tubarões” é muito bom, fala sério!
“O mindinho deslizou por sobre o joelho dela […] Mas se deu conta de que o risco daquele jogo não compensava, pois o mindinho, por pobreza de polpa e limitação de movimentos […]”
– Sinceramente, “pobreza de polpa” é muito bom!
do conto A Aventura de uma Banhista
“Ou então não, talvez sua vida tivesse sempre consistido naquela da senhora vestida que ela também havia sido em cada um de seus dias, e sua nudez lhe pertencia tão pouco, era um estado irrefletido da natureza que se revelava de quando em quando, causando espanto nos seres humanos, a começar por ela.” (p. 28)
– A gente habita um corpo e no entanto não se apodera dele…
“[…] tinha lábios tão carnudos e músculos tão fundidos com os nervos que ela nunca teria coragem de se entregar em suas mãos […]” (p. 29)
– É assim: um dia, no meio literário brasileiro, você ouve que o adjetivo é inimigo do bom texto e depois lê sobre músculos adverbialmente fundidos a nervos.
do conto A Aventura de um Empregado de Escritório
“Era um barbeiro jovem, pouco loquaz mais por falta de imaginação que por reserva de temperamento; tanto é verdade que, querendo puxar conversa, disse:
– Este ano, hein? O tempo já está bonito, hein? A primavera…” (p. 39)
– Pegue um clichê – alguém ser reservado por falta de imaginação, uma frase que Balzac ou Machado de Assis poderiam ter dito – , e o acentue com outro clichê – o comentário sobre o tempo: e eis um não mais clichê.
do conto As Aventuras de um Fotógrafo
“Entre os dois fenômenos ocorria também um vínculo indubitável, na medida em que muitas vezes a paixão pela objetiva nasce de modo natural e quase fisiológico como efeito secundário da paternidade. Um dos primeiros instintos dos pais, depois de pôr um filho no mundo, é o de fotografá-lo; e dada a rapidez do crescimento torna-se necssário fotografá-lo com frequência, pois nada é mais transitório e irrecordável do que uma criança de seis meses, rapidamente apagada e substituída pela de oito meses, e, depois, pela de um ano; e toda a perfeição que aos olhos dos pais um filho de três anos pode ter atingido não é suficiente para impedir que suceda a ela, destruindo-a, a nova perfeição dos quatro, só restando o álbum fotográfico como lugar onde todas essas perfeições fugazes se salvam e se justapõem, cada uma aspirando a um absoluto próprio incomparável.” (p. 46)
– Verdade no século passado, óbvio ululante nos anos 2000. Li pesquisa que mostrava que um ser humano já tem sua foto postada no facebook mesmo antes de nascer, aqueles pais que pegam o CD do ultrassom e postam um instante na timeline.
“ ‘Ah, que bonito, tinha é que tirar uma foto!’, e já está no terreno de quem pensa que tudo o que não é fotografado é perdido, que é como se não tivesse existido, e que então para viver de verdade é preciso fotografar o mais que se possa, e para fotografar o mais que se possa é preciso: ou viver de um modo o mais fotografável possível, ou então considerar fotografáveis todos os momentos da própria vida. O primeiro caminho leva à estupidez, o segundo, à loucura.” (p. 48)
– Calvino previu o Instagram. Cabe a nós entender que ficamos estúpidos e loucos.
“E a vida que você vive para fotografar já é desde o princípio comemoração de si mesma. Achar que o instantâneo é mais verdadeiro que o retrato posado é um preconceito…” (p. 49)
– #selfie
“A fotografia só tem sentido se esgotar todas as imagens possíveis.” (p. 55)
– Também a literatura com relação às palavras.
do conto A Aventura de um Viajante
“Federico V. escolheu um compartimento vazio, não em cima das rodas, mas tampouco muito para dentro do vagão, sabendo que geralmente quem sobe com pressa no trem tende a deixar de lado os primeiros compartimentos. A defesa do espaço necessário para viajar deitado é feita de truques psicológicos mínimos; Federico conhecia e utilizava todos.” (p. 59)
– Mesma coisa quando se quer ir sentado no ônibus, mais difícil quando se quer ir deitado num voo pra Miami.
“O trem mastigava sua estrada invisível.” (p. 66)
– Exemplo de curadoria de palavras: mastigava.
“O suor havia despertado em seu corpo um serpentear de pruridos.” (p. 67)
– Até a gente fica com coceira só de ler.
do conto A Aventura de um Leitor
“A estrada litorânea passava lá em cima, no cabo; embaixo, inclinava-se o mar, esparramado por todos os lados, até o horizonte alto e enevoado. Também o sol em toda a parte, como se o céu e o mar fossem duas lentes que o aumentavam. Lá embaixo, contra os recortes irregulares dos penhascos do promontório, á água batia calma, sem espuma.” (p. 73)
– Esta é a abertura do conto que penso ser o mais delicioso do livro. O tema, a irrestível atração do leitor pelo livro, transpirando sensualidade no jeito que Calvino narrou.
“No entanto, era bom ficar ali, continuando a ler, e de quando em quando levantar os olhos. Mas, não podendo adiar mais, Amedeo fez uma coisa que nunca fazia: saltou quase meia página, até o final do capítulo, que leu, ao contrário, com muita atenção, e depois se ergueu.” (p. 82)
– Que dooor, saltar meia página?! Oh, doeu nimim que também não faço isso de jeito maneira.
“Banhar-se a dois era ligeiramente mais aborrecido que sozinho […]” (p. 83)
– Não ache estranho: realmente tem gente que acha chato ir à praia.
do conto A Aventura de um Míope
“Mas o mundo mais novo que os óculos abriam para ele era o da noite. A cidade noturna, já envolta em nuvens informes de escuridão e de clarões coloridos, agora revelava divisões nítidas, relevos, perspectivas; as luzes tinham contornos precisos, os escritos em néon antes imersos num halo indistinto agora escandiam letra por letra.” (p. 90)
– Tô me lembrando aqui de uma amiga minha, míope como eu, que nos leu, emocionada, o trecho em que Miguilim veste o par de óculos pela primeira vez.
do conto A Aventura de um Esposo e Uma Esposa
“Frequentemente os dois ruídos, o toque do despertador e o passo dele entrando, se sobrepunham na mente de Elide, alcançando-a no fundo do sono, o sono compacto da manhãzinha que ela ainda tentava espremer por alguns segundos com o rosto enfiado no travesseiro.” (p. 106)
– Esse sono compacto da manhãzinha não é mesmo o melhor de todos?
do conto A Aventura de um Poeta
“De fato, todo silêncio consiste na rede de rumores miúdos que o envolve […]” (p. 110)
– Por isso que ficamos atordoados quando um carro risca o surdo de motores com estridentes alto-falantes.
do conto A Aventura de um Esquiador
“Naquele ponto o percurso do teleférico ladeava uma espécie de pequeno vale, onde um caminho batido avançava entre dunas altas de neve e ralos abetos com franjas de renda de gelo.” (p. 118)
– Adorei a descrição dos abetos, não poderia ser melhor.
“O sol, entretanto, em vez de ganhar mais força aproximando-se do meio-dia, ia se gelando todo até que sumiu, como que bebido por um papel absorvente.” (p. 121)
– Aprendeu com Curitiba.
do conto A Nuvem de Smog
“Para alguém que acaba de desembarcar do trem, é assim, a cidade toda é uma estação: roda-se roda-se e mais uma vez se está em ruas cada vez mais sórdidas, entre garagens, escritórios de despachantes, cafés com balcão de zinco, caminhões que disparam jatos fedorentos na cara da gente, e o tempo todo se muda a mala de mão, as mãos ficam inchadas, sujas, a roupa grudada no corpo, o nervoso, e tudo o que se vê é nervoso, estilhaçado.” (p. 169)
– No Brasil não há trens; mas desembarcar na rodoviária rende emoções semelhantes.
“Só me preocupei em lhe dizer que precisava de uma estante: ia chegar um caixote de livros, aquele pouco de biblioteca que conseguira manter reunido em minha vida desorganizada.” (p. 170)
– Ah, os livros, a parte mais barra pesada de uma mudança. Complicado levá-los, complicado abandoná-los.
“Não que eu acredite em sinais, mas para quem é nervoso, em lugares novos, cada coisa que vê é sempre um sinal.” (p. 171)
– Depois da quântica de O Segredo, tudo virou sincronicidades. Agora já não é mais feio acreditar neles, fique tranquilo.
“Saía de lá decidido a lhe armar uma cena, com gestos e caretas; e a enconttrava na cozinha, e essa cozinha era ainda mais maltratada que o meu quarto: o encerado da mesa gasto e manchado, xícaras sujas em cima do aparador, os ladrilhos desconjuntados e enegrecidos. E eu ficava sem voz, porque entendia que a cozinha era o único lugar da casa inteira onde aquela mulher realmente vivia, e o resto, as salas enfeitadas e continuamente varridas e enceradas eram uma espécie de obra de arte na qual ela derramava todos os seus sonhos de beleza, e para cultivar a perfeição daquelas salas se condenava a não viver nelas, a nunca entrar nelas como dona de casa mas só como faxineira, e a passar o resto do dia no meio da gordura e da poeira.” (p. 180)
– Pungente.
“Já se sabe o que acontece com um escrito; começa-se por mudar uma vírgula, e é necessário mudar uma palavra, depois a construção de uma frase, e depois vai tudo pelos ares.” (p. 185)
– Oxi que é assim mesmo – o que torna mais assombroso que escritores corrigissem seu texto antes do Word.
“Havia o inconveniente das migalhas. Frequentemente me cabia sentar a uma mesa de onde o freguês tinha acabado de sair e estava cheia de migalhas; por isso, evitava olhar para a mesa até que a garçonete viesse tirar pratos e copos sujos, recolher todos os restos da toalha e trocar o pano de cima. Às vezes esse trabalho era feito às pressas, e entre o pano de cima e a toalha ficavam migalhas de pão, e me dava tristeza.” (p. 192)
– Que cena! E é um sentimento bem Emma Bovary, diga-se de passagem.
“- E pra que serve a cidade senão para se sair dela no sábado e no domingo? […]” (p. 201)
– De fato; pra que serve a vida senão pra dela sairmos?
“A história da sua vida – que convivendo com ele comecei a reconstruir ano a ano – era a história de seus meios de transporte: primeiro uma bicicleta a motor, depois uma vespa, depois uma moto, agora uma caminhonete, e os anos seguintes já estavam marcados pelas previsões de automóveis cada vez mais cômodos e velozes.” (p. 202)
– Parece propaganda do governo pra mostrar como o Brasil evoluiu. Parâmetro (e ambição) besta.
revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2014