Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crítica literária > O velho e o mar – Ernest Hemingway
Embora seja um dos romances mais famosos de Hemingway (1899-1961), escrito em Cuba, publicado em 1952 nos EUA, O Velho e o Mar parece não ser uma unanimidade, mesmo tendo ganhado o Pulitzer de 1953. Dois anos depois, o romancista ganhava o Nobel de Literatura, tornando-se o sexto norte-americano laureado de um grupo que inclui William Faulkner e T. S. Eliot. Já consagrado por O Sol Também se Lavanta (1926), Por Quem os Sinos Dobram (1940) e As Neves do Kilimanjaro (1932), que tiveram, juntamente com O Velho e o Mar, versões cinematográficas, Hemingway fez parte da festejada geração de escritores estadunidenses que residiu em Paris no entre guerras. O último livro em que trabalhou narra esse período – Paris É uma Festa (1964) – mas ele não chegou a vê-lo publicado, suicidando-se antes.
Qualquer livro de Hemingway tem mais graça se você estiver pensando que é ele mesmo quem o está narrando. Conhecido por um físico vigoroso e pela predileção por “esportes” brutos, como o pugilismo, a tourada e a própria pesca, sua narrativa é objetiva, contundente, de sensibilidade viril e ancorada em sensações que podem ser verbalizadas. O Velho e o Mar conta a história de Santiago, um pescador idoso na costa cubana do Golfo do México, que se encontra a 84 dias sem conseguir voltar para casa com um único peixe. Viúvo, dorme num casebre fazendo as calças de travesseiro numa cama de jornal e tem como distrações as notícias da Liga de Beisebol dos Estados Unidos e as conversas com o menino Manolin, seu aprendiz que, infelizmente, foi impedido pelos pais de ir para o mar com o velho devido à má sorte deste.
O menino sabe que Santiago é o melhor pescador da região e Santiago, embora muito modesto, é conhecedor de sua própria força e valentia. Seu herói, o lendário jogador de beisebol Joe DiMaggio, é alguém para quem ele gostaria de contar seus feitos, seja quando, ainda jovem, navegava em mares africanos em navios que pescavam tartarugas e podia, da proa, avistar leões em terra, seja quando era conhecido como El Campéon na luta de braços. No 85º dia, querendo arriscar a sorte, ou provar-se, ou apenas, realmente, exercer seu ofício de pescador com um mínimo de êxito, Santiago resolve navegar longe da costa, em mares mais profundos, e seu anzol pesca um grande peixe-espada – na verdade, o maior que ele já tinha visto. Santiago deve vencer o peixe se quiser voltar para a casa com sua auto-estima intacta, ao mesmo tempo que precisa lutar contra o peixe por dois dias em alto-mar. Essa luta é a de um homem que prefere chamar o mar de la mar, no feminino, porque entende que tanto ele, quanto os peixes que pescam, são todos elementos da natureza e cumprem, cada qual, seu destino.
O final da história não é comovente, nem óbvio, nem simplório, nem heroico – é apenas o final possível, como cabe a um homem, que se preze como tal, realizar. Abaixo transcrevo as minhas melhores partes.
PS: Se possível, compre um O Velhor e o Mar ilustrado. O que tive em mãos tinha desenhos lindíssimos de C.F. Tunniclife. Imagino que a maior parte das edições ilustradas contem com o mesmo desenmhista
O velho
“A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim, enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.” (p. 7)
– Tanto quanto o velho se enxerga como um derrotado, o narrador força para que o enxerguemos da mesma forma. Mas é impossível. O menino Manolin julga Santiago o melhor pescador de todos, nós o julgamos uma espécie de heroi também. Em realidade, as tentativas do narrador de enfatizar a miséria do pescador servem apenas para ressaltar suas qualidades morais.
“Tudo que nele existia era velho, como exceção dos olhos, que eram da cor do mar, alegres e indomáveis.” (p. 8)
– É uma imagem que se forma instantaneamente: um pescador curtido de sol, cabelos brancos, maltrapilho, olha-nos com aquelas cores do mar de Cancun. Ao mesmo tempo, pelos olhos conhecemos sua verdadeira natureza. Hemingway deve ter ficado excitadíssimo com as praias cubanas.
Virilidade
“O velho dirigiu-se para a porta e o garoto seguiu-o. Estava estremunhado de sono e o velho passou-lhe o braço pelos ombros.
– Sinto muito – disse.
– Qué va! – respondeu o garoto. – É o que um homem tem de fazer.” (p. 22)
– Era apenas um garoto, mas já tinha que acordar de madrugada para pescar. Em tempos plurigênero, demonstrações inequívocas de sexualidade não-binária têm o efeito de uma ducha gelada no calor.
“ – E a dor não tem importância para um homem.” (p. 73)
– As mulheres sempre se gabam de suportar melhor a dor que os homens. Não acho que aconteça de fato. Acho que suportar a dor é uma estrutura psíquica que se adquire, independente do sexo. E, finalmente, em se tratando de dor, tem gente com mais talento para suportá-la no físico, enquanto outros a suportam ad eternum na alma. Mas, sim, todos ficamos admirados com aqueles que voluntariamente se expõem à dor. Decorre daí a admiração que direcionamos ao protagonista.
“ – Mas o homem não foi feito para a derrota – disse em voz alta. – Um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado.” (p. 89)
– É um frase de evidências frágeis para o atual estado da humanidade… Me admira muito ela ter sido escrita em 1952. Ah, sim, claro, compreendo agora: Hemingway estava em Cuba, fumando em companhia de Fidel, ambos com bastante barba.
O mar
“Entretanto, o velho pescador pensava sempre no mar no feminino e como se fosse uma coisa que concedesse ou negasse grandes favores; mas se o mar praticasse selvagerias ou crueldades era só porque não podia evitá-lo. ‘A lua afeta o mar tal como afeta as mulheres’.” (p. 25)
– Gosto dessa passagem e me lembrei de uma curiosidade que aprendi no livro A História Secreta de Paris: após 1830, Paris passou a ser comumente descrita em termos mais masculinos, enquanto Balzac seguia a velha tradição de chamar a cidade de ela.
O embate
“Não havia nenhuma parte do anzol que um peixe grande pudesse sentir que não tivesse um aroma agradável ou um sabor delicioso.” (p. 26)
– Uma das conclusões a que chega o pescador é que a única diferença entre ele e o espadarte é que ele pensava. Por pensar, pôde pegar o peixe com uma traição (a isca no anzol).
“ ‘A sua escolha inicial [do peixe-espada] fora se esconder nas água escuras e profundas, para além de todos os laços, armadilhas e traições. A minha escolha fora procurá-lo onde jamais alguém ousara ir.’ Sim, onde jamais alguém ousara ir. E agora estavam ligados um ao outro e assim se encontravam desde o meio-dia. E não havia ninguém para ajudar nem a um nem a outro.” (p. 44)
– “O velho e o peixe” não daria um bom título, além de poder ser confundido com a história de uma refeição. Gosto de pensar que Hemingway escolheu a palavra mar porque se trata da relação de duas criaturas com a sobrevivência no e do mar, sendo que, o tempo todo, o velho afirma que ele e o peixe são irmãos. Bem, somos todos irmãos neste planeta. Gostaria de perguntar aos meus amigos veganos se eles considerariam o livro um libelo especista ou, talvez, o primeiro manifesto proto-abolicionista. O que você acha?
“ – Peixe – falou ele – , não o largo enquanto viver.” (p. 46)
“ – Peixe – disse o velho – , eu gosto muito de você e o respeito muito. Mas vou matá-lo antes do fim do dia.” (p. 47)
“ – Se ainda não está cansado, peixe – disse em voz alta – , você é, na verdade, um peixe muito estranho.” (p. 59)
“ – Peixe! – gritou-lhe o velho. – Peixe, de qualquer modo você tem de morrer. Acha que precisa matar-me também?” (p. 79)
“ – Não devia ter vindo tanto para o largo, peixe – falou o velho. – Nem você nem eu. Desculpe-me, peixe.” (p. 95)
– O pescador dialoga com o espadarte. No início, é apenas um caçador querendo cansar sua presa. Na terceira fala, ele se coloca de igual pra igual – o pescador também se considerava um homem muito estranho. Finalmente, incapaz de dar um fim digno à sua caça, pede-lhe desculpas. Todas essas falas, quando aparecem na narrativa, pontuam momentos de devaneio do velho, em que ele chega a duvidar da validade de sua existência. Mas, então, cumprir o que lhe cabe cumprir sendo pescador a reafirma. É muito impactante.
“ ‘É um peixe enorme e tenho de dominá-lo. Não posso deixar que compreenda a força que possui, nem o que poderia fazer se aumentasse a velocidade.” (p. 55)
– O princípio do abolicionismo animal é que temos tanto direito à vida quanto qualquer outro animal. Entretanto, por termos consciência, podemos escolher não matá-los. Deixando este papo militante de lado, no livro o pescador precisa, a todo custo, ceder à força do animal, até que ache o momento certo de abatê-lo. É um jogo de paciência, tanto para um, quanto para outro.
“ ‘A minha, não importa. A minha, eu posso suportar. Mas a dor dele pode enlouquecê-lo.” (p. 76)
– Em todos os sentidos, acho essa frase genial. Ela resume toda a tensão do jogo entre o velho e o espadarte.
“Então o peixe voltou à vida já com a morte nele (…)” (p. 81)
“O velho sabia que o tubarão estava bem morto, mas o tubarão, ele mesmo, não queria acreditar.” (p. 88)
– Acho que é uma das obsessões do autor: a vida vive na morte.
revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012