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O perfume, a história de um assassino – Patrick Süskind

Postado às 19:51 do dia 18/06/14

Patrick Süskind ficou famoso instantaneamente por conta deste livro, que só no Goodreads possui 263 edições cadastradas até o momento. Alemão, nascido em 1949, escreveu contos, roteiros pra TV, romances e ensaios. Hoje vive recluso em Munique, tipo um Raduan Nassar que, depois de escrever algo espantoso e genial, some. Lançado em 1985 e transformado em filme em 2006, O perfume já foi traduzido em mais de 40 línguas e vendeu 15 milhões de cópias. Também inspirou a música Scentless Apprentice, do Nirvana. Mas da música você pode prescindir; do livro, nananinanão.

Minha edição do livro. Foto: Mayra Corrêa e Castro

Breve resumo da história: Jean-Baptiste Grenouille é o quinto filho de uma peixeira que intentava jogá-lo no lixo como havia feito com os outros quatro recém-nascidos que tivera. Nasceu no lugar mais fedorento da Paris no século XVIII. Ele sobrevive, embora sua mãe morra. Logo é levado a uma Igreja, onde um padre arruma pra que ele seja amamentado. Ninguém quer amamentá-lo, pois é muito faminto, e perturba o sono de outras crianças. A última ama-de-leite o devolve e tem apenas uma alegação: ele não tem cheiro. Grenouille então é deixado na casa de uma viúva que cuida de outros órfãos, e começa mostrar suas habilidades extraordinárias pra sentir cheiros, inclusive pra saber onde a viúva guardava dinheiro. Quando a doação da Igreja cessa, a viúva resolve negociá-lo com um curtume, onde ele passa a viver como aprendiz em condições desumanas. Era pouco mais que um rapazinho. No curtume, contrai uma grave doença, mas sobrevive. Nesta altura, já conhecendo todos os cheiros de Paris de cor, se bem que todos pútridos, Grenouille tem uma epifania ao sentir o aroma de uma jovem virgem ruiva. Ele a mata e decide ser perfumista pra criar o melhor perfume do mundo já que tem o melhor nariz do mundo. O destino o leva à porta de um perfumista falido, que o emprega após constatar, com absoluto assombro, que Grenouille cria o contra-tipo do perfume mais famoso da época apenas virando frascos de matéria-prima num garrafão de mistura. Grenouille torna o perfumista rico e aprende tudo que há para saber sobre destilação, apesar da destilação não permitir que ele capture o cheiro de coisas inanimadas. Isso o adoece, ele fica entre a vida e a morte mas, sabendo de seu patrão que em Grasse usam a enfloragem para capturar o cheiro de flores delicadas, ele sobrevive. E parte pra Grasse. Antes, porém, vive uns 7 anos dentro de uma caverna, onde constata que não tem cheiro nenhum. É um ser humano que fareja qualquer molécula, mas não tem cheiro nenhum. Em Grasse, emprega-se como aprendiz numa oficina de enfloragem e lá domina toda a técnica, até que volta a sentir a epifania que o arrebatou anos atrás: o cheiro de um jovem virgem ruiva. É quanto basta pra ele organizar o método que o faria recriar o melhor perfume que já sentira no mundo. Pronto, mais não falo, senão é spoiler.

A questão toda do livro é o quanto, levando nosso olfato ao extremo, podemos deixar de ser fundamentalmente animais. E como, pressupondo que somos fundamentalmente animais, reagiríamos diante do mais sutilizado dos perfumes, o perfume do amor.

A força do livro está nas descrições, que são de levantar a vovozinha da cadeira. O estilo lembra um Balzac, só que um Balzac dark meio misturado com Marquês de Sade. O livro é brilhante se bem que me frustrou terrivelmente que Patrick não tenha narrado o impacto do cheiro do mar na viagem que Grenouille faz de Le Grau-du-Roi a Marseille. Mas depois que Grenouille sai da caverna, o livro dá uma derrapada ligeira, se perdendo lá nos menadros cientificistas do século XVIII, ganhando um tom levemente patético. Volta a ficar bom quando Grenouille chega em Grasse, sente o cheiro da menininha ruiva, e depois corre muito rápido pro desfecho, talvez porque o autor já estivesse, ele mesmo, sufocado.

É um livro over, quase lado B, meio trash. Não fosse tão bem escrito, ficaria relegado às esquisitices que podem sair da mente de um escritor. Mas estávamos em 1985 e uma guerra nuclear sempre pairava no ar. Que pudéssemos criar um perfume que imediatamente espalhasse o amor no ar era uma quimera. Patrick apenas imaginou o que poderia ocorrer se ele, de fato, fosse inventado.

Curta as melhores partes que pincei procê.

 

 

Porque se volatiliza

“ […] mas porque seu gênio e a sua única ambição se concentravam numa área que não deixa rastros na História: o fugaz reino dos perfumes.” (p. 9)

– É verdade. Perfumistas são muitos desapegados. Nem sonhos são tão evanescentes.

“[…] numa fórmula mágica, estava contido tudo o que constitui um grande aroma, um perfume: suavidade, força, permanência, multiplicidade e uma assustadora beleza irresistível.” (p. 53)

– Quando você for a uma loja e cheirar um perfume, saiba: se, ao inspirá-lo, você colocar instintivamente a mão no peito, você terá sentido o cheiro do céu. Isso me ocorreu apenas duas vezes na vida.

“Um perfumista era meio alquimista, alguém que faz milagres: assim o queriam as pessoas – e que assim fosse!” (p. 60-61)

– Milagre é uma palavra importante no livro. Quando o for ler, mantenha-a em mente.

“Por que se precisava de um novo perfume a cada estação? Isso era necessário? Antes o público estava muito satisfeito com água-de-violetas e simples essências de flores, que talvez a cada dez anos fossem um pouco alteradas.” (p. 63)

– Como o consumidor de perfumes hoje tem todas as opções que quiser, como as casas de fragrâncias não encontram mais nenhuma molécula nova, lucrativa e revolucionária, vem a indústria e, através do IFRA, enfia tudo que cheira no saco dos alergênicos e obriga as empresas a reformular seus produtos. Assim a venda continua alta.

“Não só se precisava saber destilar como também se precisava ao mesmo tempo ser um produtor de pomadas e um manipulador de drogas, um alquimista e artesão, comerciante, humanista e hortelão.” (p. 64)

– Século XXI: um perfumista é tão somente o cara que cria as fórmulas. Há quem pese os ingredientes, quem o briefe, quem a avalie, quem os destile, que os sintetizem, quem os venda.

“Restava agora apenas a questão de saber em que exata proporção era preciso combiná-los. Para descobrir isso, teria de ficar fazendo experiências dias a fio, um trabalho horrendo, quase pior do que a mera identificação dos componentes, pois era preciso então mensurar e pesar e anotar e ainda tomar um cuidado infernal, pois à menor falta de atenção – um tremor com a pipeta, um engano na contagem das gotas – podia-se estragar tudo. Cada mistura estragada custava uma pequena fortuna.” (p. 83)

– Tem osso também no ofício da perfumaria! Mas pra se criar contra-tipos na perfumaria sintética, aí tudo ficou bem mais simples com o aparato de GC/MS.

“Há um poder de convicção no perfume que é mais forte do que palavras, do que olhar, sentimento e vontade. O poder de convicção do aroma não pode ser descartado, entra dentro de nós como o ar em nossos pulmões, nos toma completamente, não há antídoto contra ele.” (p. 94)

– Talvez o marketing olfativo seja antiético.

“Essa alma aromática, o óleo etéreo, era afinal o melhor que nelas havia, a única coisa pela qual se interessava. Todo o resto – flores, folhas, cascas, fruto, cor, beleza, vida e tudo o mais que houvesse de supérfluo – de nada o interessava. Tratava-se apenas de envoltório e peso morto. Tinha de ser eliminado.” (p. 108-109)

-O curioso a respeito dos óleos essenciais é que as plantas realmente não se utilizam dele como fonte de nutrição. A alma, aquilo que sustenta a vida, engraçado como sempre parece supérfluo.

“Pois as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e poderiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é irmão da respiração. Com esta, ele penetra nas pessoas, e elas não podem escapar-lhe caso queiram viver.” (p. 172)

– Acima o parágrafo mais citado do livro em todo o mundo. (Repito: o marketing olfativo talvez seja antiético.)

 

 

Porque não se volatiliza

“ – É, sim! É sempre questão de dinheiro. Quando batem nesta porta, é questão de dinheiro. (…) Se não é mendigo, é um negociante, e se não é um negociante, é um artesão, e se não quer esmola, apresenta uma conta.” (p. 15)

– Este trecho me lembrou demais a biografia de Balzac, sempre com um cobrador fungando-lhe a nuca.

“(Grenouille) Também poderia, no entanto, ter escolhido, naquela ocasião, a outra possibilidade que lhe estava aberta, calando e deixando o caminho do nascimento para passar direto à morte sem esse desvio pela vida, e assim teria poupado a si e o ao mundo uma porção de desgraças.” (p. 28)

– Escrevi três vezes que Grenouille sobrevive, não escrevi? É porque ele não tinha cheiro nenhum. Só o que tem cheiro se desfaz.

“Esse lugar nada vistoso e ao mesmo tempo consciente de sua dignidade era a cidade de Grasse […]” (p. 184)

– Ainda não conheço Grasse 🙁

 

 

Feromônios

(Sobre o cheiro da nuca de bebês) “Quando a gente os cheira aí, então passa a gostar deles, não importa se são nossos ou de outras.” (p. 18-19)

– Conto a meus alunos que, numa curso de perfumaria que fiz com Sonia Corazza, ela inquiriu a sala sobre em que época da vida humanos pretensamente secretavam feromônios, como os animais que conhecemos secretar. Todos chutamos o óbvio: puberdade, na excitação sexual e coisas do gênero. Então vem ela e nos conta que as pesquisas dizem que talvez a única fase da vida em que humanos secretam feromônios é enquanto são bebês de colo, pra que as fêmeas cuidem deles incondicionalmente.

“Com o primitivo órgão do olfato, o mais baixo dos sentidos!” (p. 21)

– Por conta do sexo cheirar tanto, por conta dos animais se cheirarem antes do sexo, o olfato ficou durante séculos de cristianismo relegado ao plano do pecaminoso. Apenas recentemente a ciência se debruça sobre ele, sobretudo depois que Linda Buck e Richar Axel mapearam que 3% de nosso genoma existe apenas pra codificar nossos receptores olfativos.

 

 

Pra falar de cheiros

“Já vira madeira centenas de vezes, tinha ouvido a palavra centenas de vezes. Também a entendia, pois fora com frequência, no inverno, buscar lenha. Mas o objeto nunca lhe parecera suficientemente interessante par se dar o trabalho de dizer o seu nome.” (p. 31)

– É porque Grenouille ainda não tinha sentido o cheiro de oud.

“… todos esses grotestos desacertos entre a riqueza do mundo percebido pelo olfato e a pobreza da linguagem […]” (p. 33)

– Pra entender sobre a dificuldade descomunal de falar sobre o olfato e como um bioquímico australiano transformou a resenha de perfumes, leia, do jornalista Chandler Burr, o livro O Imperador do Olfato.

“Fechou novamente os olhos. Os aromas do jardim caíram sobre ele, nítidos e em contornos precisos como as faixas coloridas do arco-íris.” (p. 188)

– Usar cores pra descrever cheiros é procedimento comum.

 

 

Falando de cheiros

“O mar cheirava como uma vela inflada, dentro da qual água, sal e sol frio estivessem presos.” (p. 43)

– É um descrição ducacete de boa, não é? É aqui que o autor descreve o impacto do cheiro do mar em Grenouille, mas nem o cheiro do mar era ainda, apenas algo que ele captava da Place de Gréve, onde sua mãe fora decapitada, cuja construção avançava pro rio. Como Grenouille manifesta que o cheiro do mar era o único cheiro que fruía sem fragmentá-lo em isolados, pensei que, uma vez que ele estivesse a bordo do navio, o autor traria toda esta atmosfera de volta. Mas não.

“Registrava esses aromas como registrava odores profanos, com curiosidade, mas sem especial admiração.” (p. 44)

– Eis a lista dos odores profanos: “tintura de almíscar mistruada com óleo de nerol e jacinto, jasmim ou canela” (p. 44). Tá vendo, né?

“Esse aroma tinha frescor; mas não o frescor das limas ou das laranjas, não o frescor da mirra ou das folhas de canela ou da hortelã ou da bétula ou da cânfora ou das agulhas de pinheiro, nem da chuva de maio ou do vento da geada ou da água da fonte…” (p. 48)

– É curioso que o autor tenha colocado o aroma das folhas de canela no rol de cheiros frescos. Não conheço nada mais quente.

“[…] e tapetes recendendo a almíscar que podiam perfumar um quarto por mais de cem anos.” (p. 56)

– Bem, então não perfumaria exatamente um quarto, mas uma alcova.

“Mas você, Baldini, não se deixará enganar. Só ficou surpreendido por um momento pela primeira impressão do artefato. Mas será que sabe, entãdo, como isso há de cheirar dentro de uma hora, quando as suas substâncias mais fugazes tiverem se volatilizado e o seu corpo central aparecer? Ou como há de cheirar hoje à noite, quando só forem aina perceptíveis aqueles componentes pesados, obscuros, que agora jazem olfativamente como um lusco-fusco, sob agradáveis véus de florescências? Espere, Baldini!” (p. 72)

– É tão difícil fazer um perfume ruim! Realmente é difícil. Um perfume que, depois de algumas horas, cheire mal é algo que, se achado, deve ser guardado como relíquia. A maior parte dos perfumes cheira simplesmente idêntico.

“Como olhos mortalmente assustados, elas jaziam por um segundo à superfície e murchavam instantaneamente, já que a longa espátula as empurrava para baixo e a banha quente as recobria. E quase no mesmo instante já estavam pálidas e abatidas, sobrevindo-lhes a morte tão rapidamente que não lhes restava outra escolha senão entregar seu último suspiro aromático exatamente àquele meio que as sufocava.” (p. 193)

– No filme se pinçou a passagem que diz que a enfloragem fria faz as flores morrer como se estivessem dormindo; aqui, da quente, diz que elas morrem de olhos abertos. Acho mais chocante.

“[…] o puro óleo das flores, o seu aroma desnudo, concentrado centenas de milhares de vezes em um pequeno volume, essence absolue. Essa essência já não cheirava mais delicada e suavemente, Cheirava de um modo intenso, quase doloroso, agudo e marcante. E, no entanto, bastava uma gota dissolvida em um litro de álcool para ressuscitá-la, dar nova vida a todo um campo de flores.” (p. 196)

– Então é esta a charada: absolutos são dolorosos.

(Dos jasmins e jacintos) “Essas duas mais nobres de todas as flores não deixavam que a alma lhes fosse simplesmente arrancadas; era preciso literalmente seduzi-las e conquistá-las. Numa sala especial de aromatização, eram espalhadas sobre uma chapa pincelada com gordura fria ou envoltas frouxamente em panos embebidos em óleo, adormecendo lentamente até a morte.” (p. 198)

– Aqui o trecho de morrer dormindo.

“Ou seja, no caso do jasmim, parecia que a erótica fragrância adocidada da flor […]” (p. 198-199)

– O jasmim vai nascer, viver e morrer sendo chamado de erótico, não tem jeito.

“[…] consistindo a arte em deixar as cadeias tão frouxas que o perfume preso pareça em liberdade […]” (p. 212-213)

– Gostei do modo como foi descrita a fixação.

 

 

Sustos

“Para onde quer que se olhasse, imperava a correria. Pessoas simples, até mulheres, liam livros. Padres se sentavam em cafés.” (p. 67)

– 🙂

“E por isso tinha de lhe parecer simplesmente um milagre aquilo que ele pôde então contemplar e que no começo observou com zombeteiro distanciamento, depois com perturbação e, finalmente, com nada mais que desamparado espanto.” (p. 91)

– Que gradação de sentimentos fantástica. Terminar com desamparo é, de fato, o mais forte. A solidão sempre é forte.

“Havia apenas paz, se é que se pode dizer, paz olfativa.” (p. 135)

– O final do século XIX e a primeira metade do XX foram épocas de desodorização do humano e do que o cerca. Hoje, de fato, vivemos num mundo desodorizado, planificado em termos olfativos. Se quiser entender mais sobre isso, leia Aroma, uma história cultural dos odores, de Constance Classen e equipe.

“Era como um choro do qual não se pode defender, como um choro retido há muito tempo e que sobe da barriga e maravilhosamente destroça, decompõe e joga fora tudo o que ofereça resistência.” (p. 258-259)

– Como os choros deveriam ser pra cumprir sua função terapêutica.

 

escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2014

 

SÜSKIND, Patrick. O perfume, a história de um assassino. Tradução Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012, 4ª edição.

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