Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > biografia > O ouvidor do Brasil: 99 vezes Tom Jobim – Ruy Castro
Você já leu todos os livros de Ruy Castro sobre o período da Bossa Nova. Mas sempre quer ler mais. Não porque se trata de um tema inesgotável em revelações e informações, não porque Ruy Castro escreve saborosamente; você quer ler sempre mais porque aqueles anos da bossa nova representaram o que desejamos ser quando jovens: belos, talentosos e prestes a nos tornar mundialmente famosos, sem saber que ficaríamos.
Um de meus amigos dos tempos de faculdade, hoje professor de Literatura Brasileira na UFPR/PR, dizia que Tom era o maior gênio do Brasil. Sempre concordamos com isto, embora meu amigo tenha uma paixão incomensurável pela MPB pós bossa nova, e eu um renitente enfado com o que se produziu de música brasileira depois dela até que as bandas de rock dos anos 80 nos devolvessem novamente um pouco de cosmopolidade.
Nesta coletânea de crônicas que, em comum, citam Jobim de relance ou são inteiramente sobre ele, Ruy Castro revela muito mais o lado protetor da Mata Atlântica de Tom que qualquer outro dos incontáveis papéis que desempenhou – com ciência do chiste – à maestria. Tom falava a língua dos passarinhos, conhecia as plantas por seus muitos nomes, ir ter com os animais onde moravam e por isso foi o ouvidor do Brasil. Quanta tristeza ele não teria de ver o Brasil pegando fogo neste agosto/setembro de 2024, a fumaça encobrindo o pico das serras em 60% de nosso território.
Amar o Brasil é para os fortes. Cantar o que o Brasil tem de melhor é apenas para as almas generosas. Quando estou muito nostálgica de minha adolescência, coloco o CD Urubu no aparelho de som, e fico olhando a capa, ouvindo aquela sinfonia e buscando entender como este homem pôde ter composto o que compôs. Urubu sempre foi meu disco preferido de Tom. Eu tinha 3 anos quando ele o lançou, 13 quando o descobri entre os discos de minha mãe. Há dois motivos não musicais para ser meu álbum preferido: meu pai tocava Lígia no teclado e esta memória é uma das mais emotivas que tenho de quando nos aproximamos graças à música, apenas 2 ou 3 anos antes dele sair de casa; e Ângela é o nome de minha mãe. São também títulos de duas canções do disco. Contudo, Boto e Correnteza são os motivos musicais que me assombram com sua beleza tão incomum.
A foto que estampa a capa de O ouvidor do Brasil é possivelmente uma das mais belas de Tom jovem. Ele olha para cima e para o lado, três mechas de cabelo caem sobre sua testa, cortando perpendicularmente suas rugas. Sua orelha é bem desenhada, colada ao rosto. Seus lábios estão semiabertos, são finos, e a barba está bem aparada. Tom veste uma camisa de algodão com gola, de tecido com listras bem miúdas. O clique é de Mario Coelho Filho para a Agência O Globo. Poucos homens ficam bem neste ângulo, porque um lado do maxilar se une com a dobra do pescoço. Tom, no entanto, ficou esplêndido. Ele não parece apaixonado, não parece sexy demais, nem sonhador demais, nem muito feliz, nem muito melancólico. Há um brilho nos seus olhos que foge rápido quando os contemplamos pela segunda vez. Ele quase sorri, mas não ri. Não tem ironia no semblante, nem prepotência. Mas há uma atenção, uma atenção solícita. Uma generosidade. Tom nos deu tanto, mas tanto, que cortar um pé de árvore que seja é indigno da gratidão que ele merece.
Abaixo as melhores partes comentadas.
Generosidade
“Escrevi certa vez que, sempre que Tom Jobim abria o piano, o mundo melhorava.” (p. 12)
– Haveria alguma ambição maior que esta a um artista, tornar o mundo melhor?
“Todo mundo conhece pelo menos cinco canções de Tom Jobim.” (p. 138)
– Vamos lá: cite as suas cinco.
“E Tom tinha fascínio por duas instituições: a Mata Atlântica e a língua portuguesa. Para ele, tudo era uma coisa só.” (p. 163)
(…)
“Morando sozinho em Nova York em 1963, chegava ao hotel e, depois de passar o dia falando inglês, recitava em voz alta coisas como ‘pão, feijão, alemão, João, me dá um cafezinho, que eu estou fraquinho sentado nesse banquinho’. Era para ‘pôr o maxilar no lugar’, dizia.” (p. 164)
– Todo falante de português deveria ser orgulhar do ditongo ão porque ele é praticamente impronunciável para que não é falante nativo.
“Como já contei, Tom estava me dizendo que, na noite da véspera, seu pai, morto em 1935, lhe aparecera ao pé da cama, vindo especialmente do Além para conversar com ele. É natural. Quem, vivo ou morto, não gostaria de conversar com Tom?” (p. 203)
– Àquela pergunta comum “se ainda fosse vivo, com quem você gostaria de conversar?” sempre fico ansiosa. O que eu perguntaria para alguém que admiro demais que não parecesse a coisa mais idiota do mundo? Como eu conseguiria ser espontânea e, ao mesmo tempo, impressionar meu ídolo com uma pergunta inteligente? Eu fico tão nervosa pensando nesta hipótese que concluo que a melhor coisa a fazer seria pedir uma selfie e agradecer.
Do sacro ofício
“Porque aos biógrafos compete fazer perguntas, até as mais bobas, desde que nunca tenham sido perguntadas.” (p. 16)
– Os melhores biógrafos são os que não se intimidam e, contudo, estão sempre reverentes à vida daquele humano, por mais certa ou incerta que tenha sido.
“Os tico-ticos, jerebas e patos-pretos o entendiam. Tom era multilíngue – piava todos os pios e conversava até com o macuco, que, exceto ele, ninguém nunca viu.” (p. 25)
– Não é possível culpar a Natureza por ter seus preferidos pra quem se revelar.
“Uma especialidade do ser humano é que ele é o único animal que faz perguntas, embora nem todas relevantes. Exemplos: ‘Quem sou eu?’, ‘De onde vim?’, ‘Para onde vou?’, ‘Deus existe?’, ‘Há vida depois da morte?’, ‘Estamos sozinhos no universo?’ e ‘Por que o espirro vem sempre em pares?’. (p. 112)
– Dizem que você faz 20 anos de psicanálise para descobrir seu complexo. Então o analista lhe dá alta quando você finalmente formula a pergunta: “agora que sei, o que eu faço com isso?” A razão é que esta é a única que ele não sabe responder.
“Outro que aparece periodicamente para seus fãs, inclusive brasileiros, é Michael Jackson. Falecido há não muitos anos, Michael talvez ainda não tenha se habituado a sua condição de ectoplasma, e tal desorientação o faça deixar Neverland, onde foi enterrado, para vir ao Brasil. É bem possível. No Além, as noções de tempo e espaço são diferentes, e as almas podem se confundir. Ademais, Michael tinha grande experiência em andar para a frente como quem anda para trás e vice-versa.” (p. 201)
– Se Tom foi nosso gênio, Michael foi da América lá do Norte.
“Diante dessa história do piano de pau, já me perguntei por que, quando surge uma nova tecnologia, é a mídia antiga que muda de nome, e não a que acabou de chegar. Quando apareceu o CD, feito de metal, o velho LP passou a ser chamado de ‘vinil’, que é o material com que ele era fabricado. Por que não deixaram o nome LP em paz e, em vez disso, chamaram o CD de ‘metal’? (p. 208)
– E não é que é assim mesmo?!
a.BN – d.BN
“Teria sido em 1958, quando João Gilberto gravou, de Tom e Vinicius, ‘Chega de saudade’ e dividiu o átomo?” (p. 16)
– Ser brasileiro e ignorar o que foi a bossa nova é um pecado da mesma monta que dizer que Cabral descobriu o Brasil.
“Por sorte, outro importante endereço de Tom continua de pé e ao alcance dos turistas: o predinho da rua Nascimento Silva, 107, típico da velha Ipanema, onde ele morou nos anos 50. De certa maneira, ali nasceu o Velho Testamente da bossa nova – foi onde Tom compôs as pioneiras ‘Se todos fossem iguais a você’, “A felicidade’, ‘Chega de saudade’, ‘Dindi’, ‘Fotografia’, ‘Brigas nunca mais’ etc., e todas as canções de Canção do amor demais, lançadas por Elizeth Cardoso.” (p. 56)
– Recordo uma participação de Anitta em um daqueles eventos de brasileiros em Harvard. Lá pelas tantas ela disse que quem vive no morro não poderia cantar sobre “um barquinho vai, a tardinha cai”, pois não era sua realidade. Foi aplaudida como apenas brasileiros de classe média alta estudando em Harvard podem aplaudir: efusivamente de modo a extirpar toda a culpa por quererem manter seus privilégios. Em um primeiro momento, achei que Anitta havia se posicionado bem, com a consciência de classe que se espera de uma artista como ela. Depois, no entanto, fiquei triste, porque lá estava novamente o velho vício de imputar o adjetivo “alienante” à bossa nova, esquecendo-se quantas barreiras este gênero quebrou, inclusive a etária, linguística e geográfica. Foi tão inédito o que a bossa nova fez que nunca mais se repetiu: nunca mais pudemos sair do Grammy Latino.
“A bossa nova foi reduzida a um repertório básico que todos gravam e regravam. De vez em quando, uma obra-prima perdida no tempo entra pela janela e nos desperta para o legado que ela construiu.” (p. 117)
– Claro, a obra-prima é lançada fora do Brasil.
Vulgaridade pátria
“Sempre achei que acoplar o nome de Tom Jobim ao do antigo Galeão, o que aconteceu meses depois de sua morte, em 1994, era uma ideia horrível. Uma homenagem mais a propósito teria sido se dessem o seu nome ao jereba, um dos urubus que mais o emocionavam, ou a qualquer ser alado – para ele, os únicos que tinham direito a viajar pelo céu.” (p. 29)
– Nada é mais vulgar na alma política brasileira que esta mania de nomear ruas e estabelecimentos com nome de gente. Quando eu era garota, visitávamos parentes em um bairro novo de São José dos Campos cujas ruas tinham nome de países ou de pássaros. Adorava aquele bairro. Já pequena eu tinha minha sensibilidade ferida pelas horrendas Marechais Deodoros, Afonsos Camargos, 9 de Julhos. Com tantos nomes poéticos em nossa língua portuguesa, eu não entendia como nossas ruas e avenidas podiam ser nomeadas tão feiamente. Hoje entendo que não se trata de feiúra, mas de contumaz complexo de capitanias hereditárias.
“Uma frase muito repetida há algum tempo, ‘O Brasil não é para principiantes’, já entrou para a categoria de móveis e utensílios da língua.” (p. 42)
– Você sabe, Tom é o autor desta frase. Não trago a citação por causa dela, mas pelo inusitado “já entrou para a categoria de móveis e utensílios da língua.” Eu imagino um imenso magazine, como era a Mesbla onde compramos minha primeira bicicleta – ou como é o Printemps hoje, ou qualquer Wal-Mart modesto na Flórida. Ali há uma seção intitulada “O Brasil não é para principiantes” e nela você encontra todo tipo de precação e lamento proferido contra nosso país. Não importa como você esteja emputecido – se com a lentidão da justiça, se com a falta de respeito no trânsito, se com o ônibus lotado, se com o Cerrado em chamas, se com o Fundo Eleitoral – não importa: nesta seção você encontrará uma frase que descreverá lapidarmente como se sente. E você a comprará, sabendo que reclamar é o único consolo ainda não taxado no país – depois que tiver pagado o ICMS/PIS/PASEP da própria compra, obviamente.
“O Brasil é assim. Você vira as costas e ele te faz uma falseta.” (p. 53)
– Não é que eu busque leituras sobre o desprazer do Brasil, é que elas me caem nas mãos. Foi assim que nasceram alguma crônicas que intitulei “O Brasil não anima ninguém”, inspirada nesta frase que foi proferida em uma entrevista por Iberê Camargo a Daniel Piza.
“Para nós, no Brasil, não fazia diferença: se um brasileiro estourasse nos Estados Unidos não podia ser perdoado.” (p. 152)
– A fila é longa: Jobim, Astrud Gilberto, Paulo Coelho… Mas penso que depois de Gisele Bündchen começamos não apenas a perdoá-los, como a aplaudi-los – ou não teríamos enchido as redes sociais na abertura das Olimpíadas de Paris com sua célebre caminhada no Maracanã ao som de Garota de Ipanema apenas para demonstrar como se faz uma abertura de Olimpíadas decente.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024
CASTRO, Ruy. O ouvidor do Brasil: 99 vezes Tom Jobim. E-book. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.